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São Paulo, domingo, 06 de julho de 2003

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Ponto de fuga

Caminhos de Roma

Jorge Coli
especial para a Folha

A Academia de França em Roma é uma velha instituição. Tem mais de quatro séculos. Este ano, comemora um bicentenário: sua instalação na Villa Médicis, palácio do século 16, situado no alto do Pincio, uma das sete colinas. A vista é esplêndida.
A Academia acolheu um grande número de jovens artistas vindos da França, que passavam pelo crivo do "Prix de Rome", severo concurso. Pintores, arquitetos, escultores, gravadores, músicos puderam, graças a ele, aperfeiçoar-se na Cidade Eterna.
A idéia era expô-los às grandes tradições clássicas da Antiguidade e da Renascença, aos magníficos tesouros artísticos ali criados e acumulados ao longo da história. Deviam impregnar-se de uma idéia elevada de belo, um belo soberbo, vinculado aos faustos dos imperadores ou dos papas.
O aniversário inspirou aos franceses uma exposição que fizesse o balanço dos pensionistas da Villa Médicis no século 19, de Ingres a Degas. Por sua vez, os italianos pensaram que seria também ótimo mostrarem o papel de Roma no mesmo período, como produtora de arte e como formadora de artistas. Disso tudo resultou a mostra "Maestà di Roma", dividida em três partes: na Villa Médicis, os artistas franceses; na Galleria Nazionale d'Arte Moderna, Roma como centro de formação para artistas italianos e internacionais; nas "Scuderie", do palácio do Quirinal (que, faz pouco, se transformaram em salas de exposições concebidas pela arquiteta Gae Aulenti), temas e questões prevalentes no clima artístico romano daqueles tempos.

Galáxias - Pedro Américo e Victor Meirelles viveram na Itália. Esta frase é verdadeira, mas induz a uma falsa identidade.
Florença, para onde foi Américo, era vibrante, de um ponto de vista político e artístico, onde os "macchiaoli" inventavam uma pintura com pinceladas claras e livres, que cantava o heroísmo do "Risorgimento". Roma, onde Meirelles se formou, não se tornara ainda a capital da Itália: provinciana, arcaica, rural, católica, fechava-se para a modernidade. Oferecia seus camponeses como modelos pitorescos aos artistas, que se imbuíam de espiritualismo cristão, buscando uma eternidade fora do mundo: o desenho clássico se dissolvia num platonismo etéreo. Não existe arte mais difícil de ser amada e compreendida. Tudo se levanta contra ela: nos temas, a religiosidade de outros tempos ou o pitoresco fácil das cenas rurais; na forma, os valores voluntariamente antimodernos; no etos, o amor pela contemplação e a recusa da energia. Stefano Susinno, que morreu há pouco, foi o grande conhecedor dessas obras deslembradas. Tinha razão: vencidos os preconceitos, elas impõem suas qualidades sutis.

Mundos - Os franceses contaram, no terço que lhes coube da mostra "Maestà di Roma", com uma plêiade de artistas maiores: Ingres, Carpeaux, Gustave Moreau, Géricault, Degas, entre vários. Outros, menos conhecidos, revelam força e invenção.
As duas partes restantes, ideadas pelos italianos, são mais secretas. Os Nazarenos, pintores alemães que vieram a Roma procurando uma santidade medieval; os Puristas, concebendo a figuração como uma consequência secundária das belas formas abstratas; os norte-americanos e ingleses, fascinados pela sensualidade própria ao mundo mediterrâneo; os russos, trazendo um cromatismo vertiginoso, formam alguns dos pólos ali reunidos.
Faltou ao menos uma tela de Meirelles ("A Degolação de São João Batista", por exemplo), demonstrando que a irradiação da arte romana atingiu estes trópicos. Seu mentor, Tommaso Minardi, foi, na Roma do século 19, uma figura central. Gênio meticuloso, era sublime desenhista e pintor mágico nas dosagens de luz.

Suor - No estio romano, tudo se embebe de lentidão e torpor. Stendhal conta uma historinha de um desses verões escaldantes: no século 18, sob um caramanchão, a jovem princesa romana toma um sorvete. Diz: "Que delícia!". Lambe a colher. Suspira e completa: "Pena que não seja um pecado...".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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