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+(L)ivros
Mínima teologia
No livro "Do Pensamento no Deserto", o filósofo Luiz Felipe Pondé faz uma crítica não reacionária
da cultura moderna
OSWALDO GIACOIA JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA
O deserto cresce. Ai daquele
que abriga desertos!
(Friedrich Nietzsche)
Os ensaios de "Do Pensamento no Deserto" marcam a trajetória biográfica e intelectual
de Luiz Felipe Pondé entre 2000 e 2006, por meio de pensamentos que, segundo indica
o título, foram gestados e articulados no deserto.
Ora, desértica é a paisagem sem água e vegetação, um lugar de esterilidade, das mais penosas e agrestes condições em que a vida mal pode se manter à custa de supremo esforço.
A imagem é apropriada para traduzir uma interpretação do mundo despojada de ilusões
éticas consoladoras, embebida de um pessimismo haurido na frequentação de textos gnósticos e místicos, bem como no corpo a corpo com a literatura sobre o niilismo.
Trata-se de um pensamento que, por desacreditar na espécie humana, não partilha a moderna confiança ilustrada na história como progresso moral infinito do gênero humano
-um ideal que, em versão leiga, teria como télos a construção do reino de Deus na Terra.
"No fundo", escreve o autor, "um dos grandes mistérios que
permeiam meu hábito filosófico nos últimos dez anos é a sensação de que, a rigor, o ser humano é uma paixão inútil".
Contudo, no seio das tradições onde radica a experiência reflexiva de Pondé, o deserto é
também a metáfora do lugar onde ocorrem os acontecimentos e as transformações radicais, as mais decisivas de nossa civilização.
As grandes visões e profecias são anunciadas no deserto, é lá que ocorrem as tentações e
também as mais heroicas e sublimes resistências (como as do Cristo, durante o retiro no
deserto, por exemplo).
Mas é também no deserto que o espírito vivencia, de acordo com Zaratustra, o ateu, as
modificações decisivas que o transfiguram de camelo em leão, de leão em criança.
Fé e saber
Os ensaios enunciam questões que se inserem em diferentes campos do conhecimento e da cultura -como filosofia, teologia e literatura- e podem ser considerados uma versão
original, fecunda e agudamente
atualizada da dramática oposição entre fé e saber.
Tal oposição não cessou de
assediar, como uma obsessão, a
moderna consciência científica, desde Descartes e Pascal,
passando por Kant e Hegel, até
Kierkegaard e Nietzsche.
Isso porque o pensamento de
Pondé situa-se na zona de confluência entre o que o autor denomina seu "hábito filosófico",
ou seja, uma formação epistemológica cética, sofística e
pragmática, e as tradições teológicas oriundas do jansenismo, da mística ortodoxa e da filosofia contemporânea judaica.
Trata-se de uma conciliação
problemática entre as vertentes culturais oriundas de Atenas e do monte Sinai.
E é justamente essa rede de
oposições e alianças que impede Pondé de mergulhar na reatividade própria do niilismo
passivo, num quietismo resignado, a que conduz a consciência de que o hedonismo contemporâneo é, em última instância, a ideologia dos últimos
homens, dos inventores de um ideal barateado de felicidade.
Tal ideal, no fundo, é dissipação esterilizante de si próprio e
do tempo, a contraface necessária de uma construção do nada, com a qual jamais sonhou
nem a acídia monástica.
Assim, o pessimismo do autor se torna crítica não reacionária da modernidade cultural
e política. Aliás, no mesmo espírito daquilo que uma vez escreveu profeticamente Kierkegaard [1813-55]:
"Há quem sorria da vida monacal, e, no entanto, nenhum
eremita viveu no irreal como os
homens de hoje."
Dimensões espirituais
Para essa perspectiva antimoderna e abrangente, Pondé é
guiado precisamente por sua abertura para as dimensões espirituais.
Paradoxalmente, elas compõem com o lado epistemológico de suas preocupações: a estética (representada, por exemplo, pela literatura de Dostoiévski) e a religiosa (que, no
livro, se expressa no hassidismo judaico, mas também em
Eckhart [teólogo germânico
processado por heresia no século 14] e na teologia de Hans
Urs von Balthasar [1905-88]).
Essa é a complexa atmosfera
vital na qual vêm à luz as experiências do pensamento enfeixadas nesse livro, a tensão que
emerge de um antagonismo dificilmente suportável.
Nele, os mistérios da beleza,
da misericórdia e da graça,
combinando a perspectiva do
sentido com o absurdo e o paradoxo da fé, vêm se ligar às exigências de rigor e consequência
próprias da racionalidade lógica, num eloquente testemunho
do caráter produtivo da negatividade na teologia e na filosofia.
Os 11 ensaios estabelecem
uma proporção muito bem
equilibrada entre os diferentes
campos de questões e problemas, bem como de seus desdobramentos e entrecruzamentos essenciais.
Esse é um efeito obtido pelo
autor não propriamente seguindo uma ordem cronológica
precisa, mas por inspirados ajustamentos temáticos.
Pensamentos no deserto brotam da noite da alma, da angústia singular diante das possibilidades do ser e do nada, que são a sofrida e incontornável condição de onde pode emergir
um si-próprio suficiente íntegro e forte para uma abertura para o sagrado e para o amor.
É nesse sentido que Pondé identifica como "objeto supremo" de sua coletânea o esforço
para compor uma "mínima teologia" (na chave da dialética negativa que inspira a "minima
moralia" de Adorno), radicalmente consciente do nada que
nos habita e dos limites da finitude no interior dos quais temos que viver.
OSWALDO GIACOIA JR. é professor de filosofia
na Universidade Estadual de Campinas (SP) e
autor do "Pequeno Dicionário de Filosofia Contemporânea" (Publifolha).
DO PENSAMENTO NO DESERTO
Autor: Luiz Felipe Pondé
Editora: Edusp (tel. 0/xx/11/3091-4008)
Quanto: R$ 52 (264 págs.)
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