São Paulo, domingo, 06 de dezembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+(L)ivros

Mínima teologia

No livro "Do Pensamento no Deserto", o filósofo Luiz Felipe Pondé faz uma crítica não reacionária da cultura moderna

OSWALDO GIACOIA JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

O deserto cresce. Ai daquele que abriga desertos!
(Friedrich Nietzsche)

Os ensaios de "Do Pensamento no Deserto" marcam a trajetória biográfica e intelectual de Luiz Felipe Pondé entre 2000 e 2006, por meio de pensamentos que, segundo indica o título, foram gestados e articulados no deserto.
Ora, desértica é a paisagem sem água e vegetação, um lugar de esterilidade, das mais penosas e agrestes condições em que a vida mal pode se manter à custa de supremo esforço.
A imagem é apropriada para traduzir uma interpretação do mundo despojada de ilusões éticas consoladoras, embebida de um pessimismo haurido na frequentação de textos gnósticos e místicos, bem como no corpo a corpo com a literatura sobre o niilismo.
Trata-se de um pensamento que, por desacreditar na espécie humana, não partilha a moderna confiança ilustrada na história como progresso moral infinito do gênero humano -um ideal que, em versão leiga, teria como télos a construção do reino de Deus na Terra.
"No fundo", escreve o autor, "um dos grandes mistérios que permeiam meu hábito filosófico nos últimos dez anos é a sensação de que, a rigor, o ser humano é uma paixão inútil".
Contudo, no seio das tradições onde radica a experiência reflexiva de Pondé, o deserto é também a metáfora do lugar onde ocorrem os acontecimentos e as transformações radicais, as mais decisivas de nossa civilização.
As grandes visões e profecias são anunciadas no deserto, é lá que ocorrem as tentações e também as mais heroicas e sublimes resistências (como as do Cristo, durante o retiro no deserto, por exemplo).
Mas é também no deserto que o espírito vivencia, de acordo com Zaratustra, o ateu, as modificações decisivas que o transfiguram de camelo em leão, de leão em criança.

Fé e saber
Os ensaios enunciam questões que se inserem em diferentes campos do conhecimento e da cultura -como filosofia, teologia e literatura- e podem ser considerados uma versão original, fecunda e agudamente atualizada da dramática oposição entre fé e saber. Tal oposição não cessou de assediar, como uma obsessão, a moderna consciência científica, desde Descartes e Pascal, passando por Kant e Hegel, até Kierkegaard e Nietzsche.
Isso porque o pensamento de Pondé situa-se na zona de confluência entre o que o autor denomina seu "hábito filosófico", ou seja, uma formação epistemológica cética, sofística e pragmática, e as tradições teológicas oriundas do jansenismo, da mística ortodoxa e da filosofia contemporânea judaica.
Trata-se de uma conciliação problemática entre as vertentes culturais oriundas de Atenas e do monte Sinai. E é justamente essa rede de oposições e alianças que impede Pondé de mergulhar na reatividade própria do niilismo passivo, num quietismo resignado, a que conduz a consciência de que o hedonismo contemporâneo é, em última instância, a ideologia dos últimos homens, dos inventores de um ideal barateado de felicidade.
Tal ideal, no fundo, é dissipação esterilizante de si próprio e do tempo, a contraface necessária de uma construção do nada, com a qual jamais sonhou nem a acídia monástica.
Assim, o pessimismo do autor se torna crítica não reacionária da modernidade cultural e política. Aliás, no mesmo espírito daquilo que uma vez escreveu profeticamente Kierkegaard [1813-55]: "Há quem sorria da vida monacal, e, no entanto, nenhum eremita viveu no irreal como os homens de hoje."

Dimensões espirituais
Para essa perspectiva antimoderna e abrangente, Pondé é guiado precisamente por sua abertura para as dimensões espirituais.
Paradoxalmente, elas compõem com o lado epistemológico de suas preocupações: a estética (representada, por exemplo, pela literatura de Dostoiévski) e a religiosa (que, no livro, se expressa no hassidismo judaico, mas também em Eckhart [teólogo germânico processado por heresia no século 14] e na teologia de Hans Urs von Balthasar [1905-88]).
Essa é a complexa atmosfera vital na qual vêm à luz as experiências do pensamento enfeixadas nesse livro, a tensão que emerge de um antagonismo dificilmente suportável.
Nele, os mistérios da beleza, da misericórdia e da graça, combinando a perspectiva do sentido com o absurdo e o paradoxo da fé, vêm se ligar às exigências de rigor e consequência próprias da racionalidade lógica, num eloquente testemunho do caráter produtivo da negatividade na teologia e na filosofia.
Os 11 ensaios estabelecem uma proporção muito bem equilibrada entre os diferentes campos de questões e problemas, bem como de seus desdobramentos e entrecruzamentos essenciais. Esse é um efeito obtido pelo autor não propriamente seguindo uma ordem cronológica precisa, mas por inspirados ajustamentos temáticos.
Pensamentos no deserto brotam da noite da alma, da angústia singular diante das possibilidades do ser e do nada, que são a sofrida e incontornável condição de onde pode emergir um si-próprio suficiente íntegro e forte para uma abertura para o sagrado e para o amor.
É nesse sentido que Pondé identifica como "objeto supremo" de sua coletânea o esforço para compor uma "mínima teologia" (na chave da dialética negativa que inspira a "minima moralia" de Adorno), radicalmente consciente do nada que nos habita e dos limites da finitude no interior dos quais temos que viver.

OSWALDO GIACOIA JR. é professor de filosofia na Universidade Estadual de Campinas (SP) e autor do "Pequeno Dicionário de Filosofia Contemporânea" (Publifolha).


DO PENSAMENTO NO DESERTO
Autor: Luiz Felipe Pondé
Editora: Edusp (tel. 0/xx/11/3091-4008)
Quanto: R$ 52 (264 págs.)




Texto Anterior: Cães poluidores
Próximo Texto: Entre o banal e o sublime
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.