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Dissertações de "Genealogia da Moral" tratam dos ideais cristãos, das origens da culpa e da psicologia do homem contemplativo
As fantasias de Nietzsche
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Tendo morrido completamente
louco no ano de 1900, o filósofo
alemão Friedrich Nietzsche livrou-se de ter alguma obra sua incluída nas listas dos "livros mais
importantes deste século". Mas
há sempre espíritos ousados o suficiente para imaginar uma "lista
do milênio", e nesta é possível
que "Genealogia da Moral" encontre um lugar de destaque.
"Até hoje", diz Nietzsche no
prólogo desse livro escrito em
1887, "não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao "bom' valor
mais elevado que ao "mau', mais
elevado no sentido da promoção,
utilidade, influência fecunda para
o homem (não esquecendo o futuro do homem). E se o contrário
fosse a verdade? E se no "bom'
houvesse um sintoma regressivo,
como um perigo, uma sedução,
um veneno, um narcótico (...)?".
Assim se explicita o propósito do
livro. Seguem-se três "dissertações". A primeira combate as
idéias cristãs de bondade, compaixão, amor ao próximo. Nietzsche
identifica-as à "moral do rebanho", à moral dos escravos, aos
"valores judeus" (pág. 27), que
são fruto "da mais entranhada sede de vingança sacerdotal" contra
a estirpe nobre dos conquistadores, dos senhores, dos dominantes.
A segunda dissertação trata das
origens da "culpa" e da "má
consciência". Todos os instintos
"que não se descarregam para fora", diz Nietzsche, "voltam-se
para dentro: (...) é assim que no
homem cresce o que depois se denomina sua "alma' (...). A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na destruição
(...) -tudo isso se voltando contra
os possuidores de tais instintos:
esta é a origem da má consciência".
Por fim, Nietzsche trata do ideal
ascético e da psicologia dos homens contemplativos: "Criaturas
descontentes, arrogantes e repulsivas, que jamais se livram de um
profundo desgosto de si, da terra,
de toda a vida".
Citar trechos deste livro é um
exercício perigoso, uma vez que
sempre se pode ser acusado de estar distorcendo o "verdadeiro"
pensamento do autor. Empreendeu-se um enorme esforço de reabilitação da imagem de Nietzsche,
acusado de ser a principal fonte
inspiradora dos nazistas. Predomina atualmente uma leitura "de
esquerda": o Nietzsche desmistificador e libertário, que inspirou
Foucault, Deleuze, Freud. Mas é
forçoso lembrar a famosa passagem sobre a "besta loura", que
consta da primeira dissertação.
"Na raiz de todas as raças nobres é difícil não reconhecer o animal de rapina, a magnífica besta
loura que vagueia ávida de espólios e vitórias". Os nobres, "que
se mostram tão pródigos em consideração, autocontrole, delicadeza, lealdade, orgulho e amizade
nas relações entre si, para fora, ali
onde começa o que é estranho, o
estrangeiro (...), retornam à inocente inconsciência dos animais
de rapina, como jubilosos monstros que deixam atrás de si, com
ânimo elevado e equilíbrio interior, uma sucessão horrenda de
assassínios, incêndios, violações e
torturas, como se tudo não passasse de brincadeira de estudantes".
Segundo Nietzsche, foi para vingar-se dessa nobre e alegre opressão que os escravos inventaram os
conceitos de "maldade" e de
"bondade". A moral cristã é fruto do ressentimento dos oprimidos, determinando a vitória do
"homem manso", "o incuravelmente medíocre e insosso", sobre
as "estirpes nobres e seus ideais".
Idéias como socialismo e democracia seriam, talvez, consequência de um atavismo racial dos dominados de pele escura. E por aí
vai.
Não adianta. "Nunca consegui
falar de Nietzsche com calma",
confessa o filósofo André Comte-Sponville no livro "Por Que
Não Somos Nietzschianos" (Ed.
Ensaio), e este resenhista se encontra na mesma situação. Talvez
possamos deslocar um pouco o
problema, desistindo de contrapor o Nietzsche "mau" ao Nietzsche "bonzinho", "mestre da
modernidade".
Estamos tão impregnados de
preconceitos morais que é difícil
não ler Nietzsche "moralmente"
-isto é, pensando a todo momento: "Mas então o que é que ele
quer que a gente faça? Devo -e
esta palavra complica tudo-, devo ser então mais espontâneo, alegre, menos cristão?". O próprio
tom de Nietzsche mistura a prédica à provocação; quando vai denunciar algum dever, parece estar
exortando o leitor a outro.
E aqui faço uma pergunta simplória. O código de conduta dos
"nobres" nietzschianos seria essencialmente diverso do código de
um "escravo", como afirma a
"Genealogia da Moral"? Ou é
simplesmente mais restrito o âmbito de sua aplicação? Será que a
moral do rebanho não exige, apenas, que se universalizem aquelas
virtudes da "lealdade, delicadeza
e amizade" que Nietzsche atribui
à sua querida "besta loura"?
Esqueçamos isto e adotemos
uma hipótese diversa. Nietzsche
não está agindo como defensor de
um ideal, e sim como psicólogo,
cientista, descrevendo fatos, desvelando a verdade. Mas é o próprio Nietzsche quem afirma que o
cientista é apenas uma nova versão do ideal ascético, superestimando o "valor da verdade"; a
ciência empobrece a vida.
É contra a diminuição da vitalidade européia, e contra a sua própria neurastenia, que Nietzsche
erige a vasta fantasia compensatória da "besta loura" alemã. Não
importa que seja uma fantasia de
mau gosto, pois estaria a serviço
da "vida". Acontece que esse
conceito atinge em Nietzsche alturas puramente metafísicas. Bondade, culpa, ascetismo são características dos "doentios", que negam a "vida". "Os doentios são o
grande perigo do homem: não os
maus, os animais de rapina. Aqueles já de início desgraçados, vencidos, destroçados -são eles, os
mais fracos, os que mais corroem
a vida entre os homens, os que
mais perigosamente envenenam e
questionam nossa confiança na vida, no homem, em nós."
Acima de qualquer prurido ou
escândalo moral que tivermos, seria simplesmente o caso de perguntar se essa tese se comprova
empiricamente. Massacres podem
"exaltar", sem dúvida, a sensação de vitalidade pessoal de quem
os comete; mas por que seriam
mais úteis à "vida" do que a infeliz, ascética e desvitalizada neurose do biólogo europeu que passa
os dias procurando uma nova vacina? Vejo que vou ficando simplório de novo.
Mas é como se Nietzsche quisesse "naturalizar" e "objetificar"
no conceito de "vida" o que é
apenas uma sensação subjetiva.
Esta ficção permite-lhe ao mesmo
tempo fazer o elogio da mentira e
o elogio da veracidade, uma defesa
do desvelamento psicológico e
uma igual defesa da mistificação, a
ponto de sempre se poder dizer
que aquilo que ele escreveu não é
bem aquilo que ele escreveu.
E o que seria uma jovial, nobre e
pagã condenação da religião e da
moral acaba assumindo um tom
furibundo, histérico, em seus escritos. O famoso estilo de Nietzsche, ainda que agudíssimo e fascinante (a tradução de Paulo César
Souza é, como sempre, excepcional), parece-me, no fundo, de um
plebeísmo atroz. Esse defensor
dos supostos ideais "nobres"
cospe muito quando fala.
Infelizmente, é um autor indispensável. Só que precisa ser lido
com paciência, e o presente resenhista não é tão abúlico e exangue
quanto seria necessário.
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