São Paulo, domingo, 6 de dezembro de 1998

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Dissertações de "Genealogia da Moral" tratam dos ideais cristãos, das origens da culpa e da psicologia do homem contemplativo
As fantasias de Nietzsche

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Tendo morrido completamente louco no ano de 1900, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche livrou-se de ter alguma obra sua incluída nas listas dos "livros mais importantes deste século". Mas há sempre espíritos ousados o suficiente para imaginar uma "lista do milênio", e nesta é possível que "Genealogia da Moral" encontre um lugar de destaque.
"Até hoje", diz Nietzsche no prólogo desse livro escrito em 1887, "não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao "bom' valor mais elevado que ao "mau', mais elevado no sentido da promoção, utilidade, influência fecunda para o homem (não esquecendo o futuro do homem). E se o contrário fosse a verdade? E se no "bom' houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico (...)?".
Assim se explicita o propósito do livro. Seguem-se três "dissertações". A primeira combate as idéias cristãs de bondade, compaixão, amor ao próximo. Nietzsche identifica-as à "moral do rebanho", à moral dos escravos, aos "valores judeus" (pág. 27), que são fruto "da mais entranhada sede de vingança sacerdotal" contra a estirpe nobre dos conquistadores, dos senhores, dos dominantes.
A segunda dissertação trata das origens da "culpa" e da "má consciência". Todos os instintos "que não se descarregam para fora", diz Nietzsche, "voltam-se para dentro: (...) é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua "alma' (...). A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na destruição (...) -tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência".
Por fim, Nietzsche trata do ideal ascético e da psicologia dos homens contemplativos: "Criaturas descontentes, arrogantes e repulsivas, que jamais se livram de um profundo desgosto de si, da terra, de toda a vida".
Citar trechos deste livro é um exercício perigoso, uma vez que sempre se pode ser acusado de estar distorcendo o "verdadeiro" pensamento do autor. Empreendeu-se um enorme esforço de reabilitação da imagem de Nietzsche, acusado de ser a principal fonte inspiradora dos nazistas. Predomina atualmente uma leitura "de esquerda": o Nietzsche desmistificador e libertário, que inspirou Foucault, Deleuze, Freud. Mas é forçoso lembrar a famosa passagem sobre a "besta loura", que consta da primeira dissertação.
"Na raiz de todas as raças nobres é difícil não reconhecer o animal de rapina, a magnífica besta loura que vagueia ávida de espólios e vitórias". Os nobres, "que se mostram tão pródigos em consideração, autocontrole, delicadeza, lealdade, orgulho e amizade nas relações entre si, para fora, ali onde começa o que é estranho, o estrangeiro (...), retornam à inocente inconsciência dos animais de rapina, como jubilosos monstros que deixam atrás de si, com ânimo elevado e equilíbrio interior, uma sucessão horrenda de assassínios, incêndios, violações e torturas, como se tudo não passasse de brincadeira de estudantes".
Segundo Nietzsche, foi para vingar-se dessa nobre e alegre opressão que os escravos inventaram os conceitos de "maldade" e de "bondade". A moral cristã é fruto do ressentimento dos oprimidos, determinando a vitória do "homem manso", "o incuravelmente medíocre e insosso", sobre as "estirpes nobres e seus ideais". Idéias como socialismo e democracia seriam, talvez, consequência de um atavismo racial dos dominados de pele escura. E por aí vai.
Não adianta. "Nunca consegui falar de Nietzsche com calma", confessa o filósofo André Comte-Sponville no livro "Por Que Não Somos Nietzschianos" (Ed. Ensaio), e este resenhista se encontra na mesma situação. Talvez possamos deslocar um pouco o problema, desistindo de contrapor o Nietzsche "mau" ao Nietzsche "bonzinho", "mestre da modernidade".
Estamos tão impregnados de preconceitos morais que é difícil não ler Nietzsche "moralmente" -isto é, pensando a todo momento: "Mas então o que é que ele quer que a gente faça? Devo -e esta palavra complica tudo-, devo ser então mais espontâneo, alegre, menos cristão?". O próprio tom de Nietzsche mistura a prédica à provocação; quando vai denunciar algum dever, parece estar exortando o leitor a outro.
E aqui faço uma pergunta simplória. O código de conduta dos "nobres" nietzschianos seria essencialmente diverso do código de um "escravo", como afirma a "Genealogia da Moral"? Ou é simplesmente mais restrito o âmbito de sua aplicação? Será que a moral do rebanho não exige, apenas, que se universalizem aquelas virtudes da "lealdade, delicadeza e amizade" que Nietzsche atribui à sua querida "besta loura"?
Esqueçamos isto e adotemos uma hipótese diversa. Nietzsche não está agindo como defensor de um ideal, e sim como psicólogo, cientista, descrevendo fatos, desvelando a verdade. Mas é o próprio Nietzsche quem afirma que o cientista é apenas uma nova versão do ideal ascético, superestimando o "valor da verdade"; a ciência empobrece a vida.
É contra a diminuição da vitalidade européia, e contra a sua própria neurastenia, que Nietzsche erige a vasta fantasia compensatória da "besta loura" alemã. Não importa que seja uma fantasia de mau gosto, pois estaria a serviço da "vida". Acontece que esse conceito atinge em Nietzsche alturas puramente metafísicas. Bondade, culpa, ascetismo são características dos "doentios", que negam a "vida". "Os doentios são o grande perigo do homem: não os maus, os animais de rapina. Aqueles já de início desgraçados, vencidos, destroçados -são eles, os mais fracos, os que mais corroem a vida entre os homens, os que mais perigosamente envenenam e questionam nossa confiança na vida, no homem, em nós."
Acima de qualquer prurido ou escândalo moral que tivermos, seria simplesmente o caso de perguntar se essa tese se comprova empiricamente. Massacres podem "exaltar", sem dúvida, a sensação de vitalidade pessoal de quem os comete; mas por que seriam mais úteis à "vida" do que a infeliz, ascética e desvitalizada neurose do biólogo europeu que passa os dias procurando uma nova vacina? Vejo que vou ficando simplório de novo.
Mas é como se Nietzsche quisesse "naturalizar" e "objetificar" no conceito de "vida" o que é apenas uma sensação subjetiva. Esta ficção permite-lhe ao mesmo tempo fazer o elogio da mentira e o elogio da veracidade, uma defesa do desvelamento psicológico e uma igual defesa da mistificação, a ponto de sempre se poder dizer que aquilo que ele escreveu não é bem aquilo que ele escreveu.
E o que seria uma jovial, nobre e pagã condenação da religião e da moral acaba assumindo um tom furibundo, histérico, em seus escritos. O famoso estilo de Nietzsche, ainda que agudíssimo e fascinante (a tradução de Paulo César Souza é, como sempre, excepcional), parece-me, no fundo, de um plebeísmo atroz. Esse defensor dos supostos ideais "nobres" cospe muito quando fala.
Infelizmente, é um autor indispensável. Só que precisa ser lido com paciência, e o presente resenhista não é tão abúlico e exangue quanto seria necessário.





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