São Paulo, domingo, 07 de abril de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ literatura

O homem de lugar nenhum

Um dos principais intelectuais italianos, Claudio Magris fala de "Microcosmos ", que está saindo no Brasil, e diz que "Grande Sertão: Veredas" é "inacreditável"

Betty Milan
especial para a Folha

Claudio Magris nasceu em Trieste, na Itália, em 1939. Estudou língua e literatura alemãs em Turim. É professor, conferencista, autor de ensaios, romances e peças de teatro, além de inúmeros artigos publicados na imprensa italiana e internacional. Especialista na cultura da Europa Central, traduziu autores como Kleist, Ibsen, Schnitzler, Büchner.
Nesta entrevista, feita no Salão do Livro de Paris, em março passado, Magris fala de seu livro "Microcosmos", que está sendo publicado no Brasil pela editora Rocco. Na tradição dos clássicos, faz também a apologia da viagem e diz ainda que Guimarães Rosa é um dos seus autores preferidos -e "Grande Sertão: Veredas", a maior história de homossexualidade já escrita.

O senhor é um especialista em Europa Central. Quais os limites dessa Europa e suas características culturais?
A Mitteleuropa -e não Europa Central- é como um chiclete. Trata-se no entanto de um espaço cultural com uma certa unidade. A história da palavra Mitteleuropa é curiosa. Foi inventada no século 19 por economistas da Áustria para designar um espaço econômico do Danúbio, dominado por húngaros e alemães. Dezenas de anos mais tarde, a palavra designava uma literatura que tinha a ver com uma mistura de nacionalidades, e não com o domínio de uma sobre outra. Um escritor amigo meu disse que ele era "hinter-nationale", ou seja, situava-se além da nacionalidade.
O "hinternacionalismo" é mais interessante do que o internacionalismo?
Claro. Após designar uma literatura, a palavra Mitteleuropa designou um projeto nacionalista alemão, um projeto nazista e um projeto supranacional, contrário ao nazismo. Nesse caso, a palavra funciona como metáfora de negação. Na época do poder soviético, indicava uma resistência cultural ao regime, uma cultura que era um verdadeiro laboratório do mal-estar na civilização e que agora talvez desapareça, porque o capitalismo vai destruir as diferenças.
Numa de suas entrevistas o sr. disse que é originário de "lugar nenhum", ou seja, de Trieste. O que significa ser originário de lugar nenhum?
Quando disse que sou originário de "lugar nenhum", me vali de uma metáfora, claro, um recurso literário. A função da metáfora é fazer um aspecto da realidade aparecer de maneira indireta. Kafka não escreveu "A Metamorfose" porque alguém se transformou em inseto, e sim para mostrar a terrível perda de humanidade que ameaça os indivíduos.
Nasci e cresci em Trieste, que eu deixei aos 18 anos. Trata-se de uma cidade italiana que pertenceu durante quase toda a sua história ao império dos Habsburgos, com uma arquitetura que não é italiana, com uma minoria eslovaca, com judeus, com pessoas que chegaram de todos os países da Europa e se tornaram italianas. Uma cidade com pessoas que morreram lutando pela Itália, verdadeiros patriotas, mas originárias de outros lugares. Trieste tem uma identidade que não pode ser definida, à qual nós podemos apenas fazer alusão. É um lugar onde se tem o sentimento de estar na periferia da história. Quando era criança, depois da Segunda Guerra, vivíamos numa grande incerteza. Não sabíamos se a cidade pertenceria à Itália ou à Iugoslávia, o que significaria ficar sob o domínio de Stálin.
Qual a importância da amizade no seu trabalho?
Trata-se de uma questão essencial. Não teria escrito o livro se um amigo meu, diretor do jornal "Corriere della Sera", não tivesse me dito que eu tinha outras coisas, além de crítica literária, a escrever. Sugeriu que eu fosse a Viena não para escrever sobre isto ou aquilo, mas para escrever o que me passasse pela cabeça. A amizade teve um papel fundamental na minha vida. E não só a amizade com os homens. Também com as mulheres. Porque temos o sentimento de fazer o caminho com o amigo. De fazer isso com solidariedade e severidade. Porque os amigos não são indulgentes. Constatei isso num momento da minha vida em que me perdi. Os amigos me indicaram que eu estava no caminho errado.
E qual a importância da viagem na sua literatura?
A viagem é tudo, ela é a vida, a odisséia, a descoberta do outro, a experiência da alteridade. Por meio dela a gente experimenta o mundo e a própria capacidade ou incapacidade de encontrar os outros. É disso que trata "Danúbio" (ed. Rocco).
Depois da morte da sua mulher o sr. publicou "Microcosmos", livro que recebeu o prestigioso prêmio Strega. O texto é feito de fragmentos e o sr. observa universos mínimos. Algo a ver com o minimalismo?
Eu me interesso pelo que é pequeno para extrair dele o grande. O minimalismo pode ser redutor.
O seu procedimento então é análogo ao de Freud. De um simples lapso ele extraía uma epopéia.
Sim, é disso que se trata.
E o sr. é ou não contrário ao minimalismo?
Não sou contrário, mas a teoria minimalista tende a considerar que as coisas podem ser substituídas, que uma equivale a outra, e eu não acredito nisso.
O sr. tem um livro que se chama "Utopia e Desencantamento". Por que ter focalizado o tema da utopia e do desencantamento, que parecem contraditórios?
Acho que só a união da utopia e do desencantamento permite uma visão justa do mundo. A utopia significa que o mundo pode ser melhorado. O desencantamento é a descoberta da necessidade de corrigir. Não é algo que desencoraja, mas que ajuda a construir.
É por isso que o sr. fala no livro de uma forma de esperança "irônica, melancólica e corajosa"?
Sim, é como Dom Quixote e Sancho Pança. Para Sancho os moinhos de vento não são gigantes. Aldonça não é a princesa Dulcinéia -e nós precisamos da sua visão desencantada. Só que Sancho Pança segue o Quixote e, quando este deixa de ser cavaleiro andante, o "louco", Sancho se pergunta: "E agora, o que eu vou fazer?".
Quais livros e autores prefere?
"A Odisséia", o "Antigo" e o "Novo Testamento," Tolstói, Dostoiévski, Kafka, Guimarães Rosa...
Por que Guimarães Rosa?
"Grande Sertão: Veredas" é, para mim, um livro de referência.
O sr. o leu em italiano?
Em italiano e alemão. Trata-se de um livro inacreditável. Temos o sentimento da unidade da vida, da amizade. E, ao mesmo tempo, nos deparamos com uma incrível capacidade de inventar a linguagem sem deixar de ser compreensível. Acho que o "Grande Sertão" não é ainda suficientemente conhecido. É homérico. É inacreditável. Quem me mostrou o livro foi minha mulher. Trata-se da maior história de amor homossexual escrita no mundo. O amor casto do narrador por Diadorim me fez perceber que a gente não se apaixona por um sexo e sim por uma pessoa. Percebi que eu inclusive podia ser tomado por algo assim.



Texto Anterior: Et + cetera
Próximo Texto: A América Latina joga a toalha
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.