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Excesso de caricatura faz "O Azul do Filho
Morto", de Marcelo Mirisola, girar em falso
A gôndola do consumo
Heitor Ferraz
especial para a Folha
Nos dois primeiros livros de Marcelo Mirisola, as personagens basicamente se repetem em suas características, como também várias situações
e elementos composicionais da narrativa.
Seus contos são quase todos narrados em
primeira pessoa, num tom que pula do deboche para um certo sentimentalismo, retoma o tom desabusado e cravado de ironia,
cai numa autocontemplação piedosa, esbofeteia-se verbalmente, se ama e se odeia ao
mesmo tempo, sempre com o objetivo de
contar a sua vida e se ver livre da culpa ("lavar a alma", como se diz). Esses traços marcantes -como muitos outros, evidentemente- que podem ser encontrados nos
livros de contos "Fátima Fez os Pés para
Mostrar na Choperia" (ed. Estação Liberdade) e "O Herói Devolvido" (ed. 34) reaparecem neste primeiro romance de Mirisola:
"O Azul do Filho Morto".
Agora não é um recorte de uma determinada situação que aparece, mas sim a vida
contada de forma cronológica, indo dos
anos 70, passando pelo vazio dos anos 80 e
caindo na falta de perspectiva dos anos 90.
Pode-se até mesmo dizer que o romance é
uma espécie de condensação de todos os
episódios ou situações que já estavam nos
contos. Como se Mirisola apostasse mais
uma vez nessa personagem criada numa família de classe média, com todas as neuroses potencializadas e exageradas.
Sobre a família, diz o personagem-narrador (que também se chama Marcelo Mirisola): "Um avô desossador. Outro metafísico. Um pai etéreo. Uma mãe dominadora
que, mãos trêmulas, acendia cigarros e às
baforadas entregava todos seus sexos, impiedosamente. Eu tinha meus bagos triturados no espremedor de nozes. Os sonhos
desmanchados às cutiladas, em vão. Eis os
ingredientes -havia me esquecido das faxineiras cavalgadas- de que
disponho para contar quem
sou".
Esse anti-herói de Mirisola
tem todas as características
de seus familiares, a grosseria do avô, o lado etéreo e
metafísico, a libido em alta
(que o faz frequentar tanto prostitutas como ralos e azulejos de banheiro). Ele se coloca como fruto moral dessa família. Cada
época da história gerou seu próprio "herói",
determinado pelas forças sociais.
O de Mirisola encarna uma complexidade
que tem interesse: ele é, de um lado, o sujeito mais repugnante que nossa sociedade
pôde criar -racista, nazista (como o próprio personagem se define), autoritário (a
própria composição da narrativa tem um
tom sempre marcado por opiniões autoritárias), movido por um desejo infantilizado
etc.; do outro lado, ele se quer culto, informado pelos meios de comunicação, alguém
que lê Proust ou John Fante e que ouve
Adoniran Barbosa.
Mas é curioso como até mesmo as citações de escritores são rebaixadas pelo liquidificador do discurso eivado de informações -e não de conhecimento. A personagem pode misturar em sua escrita o nome
de Simone Greco (jovem romancista paulistana) com a linha de esmaltes Marú, colônia
Deo para homens com Alberto Moravia,
poesia de Adília Lopes com Maioneggs etc.
Tudo entra em seu rol de informações. Algo
de que a cultura pop abusou na utilização e
que, aqui, reaparece.
Ou seja, toda a sua formação tende a ser
feita por lembrança de produtos. E até o que
não é um produto de mercado acaba por
entrar na gôndola do consumo. Nada mais
acertado sobre nossa época, pelo menos como percepção de um sintoma.
Sem dúvida há aí uma vontade de mostrar
que tanto a personagem quanto a sociedade
que a gerou são obscuras. Até aí, não há como contestar a qualidade de sua obra. Porém o exagero dos traços, a escrita que acaba por ser subjetivante e caricatural, faz
com que o feitiço se volte contra o feiticeiro.
Ou seja, o deboche e a escrita virulenta delimitam demais a personagem e reduzem o poder de alcance da obra. A falta de sutileza
cria apenas uma caricatura, algo que é dado
ao público leitor como uma piada. Desopila, é verdade, mas anula qualquer possibilidade de inquietação. Nem
toda boa obra precisa ter essa
intenção, mas a contemplação obsessiva das próprias
feridas corre sempre o perigo
de girar em falso.
Heitor Ferraz é poeta, autor de "A
Mesma Noite" (7 Letras).
O Azul do Filho Morto
172 págs., R$ 18,00
de Marcelo Mirisola. Ed. 34 (r.
Hungria, 592, CEP 01455-000,
SP, tel. 0/xx/11/3816-6777).
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