São Paulo, domingo, 07 de abril de 2002

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Excesso de caricatura faz "O Azul do Filho Morto", de Marcelo Mirisola, girar em falso

A gôndola do consumo

Heitor Ferraz
especial para a Folha

Nos dois primeiros livros de Marcelo Mirisola, as personagens basicamente se repetem em suas características, como também várias situações e elementos composicionais da narrativa. Seus contos são quase todos narrados em primeira pessoa, num tom que pula do deboche para um certo sentimentalismo, retoma o tom desabusado e cravado de ironia, cai numa autocontemplação piedosa, esbofeteia-se verbalmente, se ama e se odeia ao mesmo tempo, sempre com o objetivo de contar a sua vida e se ver livre da culpa ("lavar a alma", como se diz). Esses traços marcantes -como muitos outros, evidentemente- que podem ser encontrados nos livros de contos "Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia" (ed. Estação Liberdade) e "O Herói Devolvido" (ed. 34) reaparecem neste primeiro romance de Mirisola: "O Azul do Filho Morto".
Agora não é um recorte de uma determinada situação que aparece, mas sim a vida contada de forma cronológica, indo dos anos 70, passando pelo vazio dos anos 80 e caindo na falta de perspectiva dos anos 90. Pode-se até mesmo dizer que o romance é uma espécie de condensação de todos os episódios ou situações que já estavam nos contos. Como se Mirisola apostasse mais uma vez nessa personagem criada numa família de classe média, com todas as neuroses potencializadas e exageradas.
Sobre a família, diz o personagem-narrador (que também se chama Marcelo Mirisola): "Um avô desossador. Outro metafísico. Um pai etéreo. Uma mãe dominadora que, mãos trêmulas, acendia cigarros e às baforadas entregava todos seus sexos, impiedosamente. Eu tinha meus bagos triturados no espremedor de nozes. Os sonhos desmanchados às cutiladas, em vão. Eis os ingredientes -havia me esquecido das faxineiras cavalgadas- de que disponho para contar quem sou".
Esse anti-herói de Mirisola tem todas as características de seus familiares, a grosseria do avô, o lado etéreo e metafísico, a libido em alta (que o faz frequentar tanto prostitutas como ralos e azulejos de banheiro). Ele se coloca como fruto moral dessa família. Cada época da história gerou seu próprio "herói", determinado pelas forças sociais.
O de Mirisola encarna uma complexidade que tem interesse: ele é, de um lado, o sujeito mais repugnante que nossa sociedade pôde criar -racista, nazista (como o próprio personagem se define), autoritário (a própria composição da narrativa tem um tom sempre marcado por opiniões autoritárias), movido por um desejo infantilizado etc.; do outro lado, ele se quer culto, informado pelos meios de comunicação, alguém que lê Proust ou John Fante e que ouve Adoniran Barbosa.
Mas é curioso como até mesmo as citações de escritores são rebaixadas pelo liquidificador do discurso eivado de informações -e não de conhecimento. A personagem pode misturar em sua escrita o nome de Simone Greco (jovem romancista paulistana) com a linha de esmaltes Marú, colônia Deo para homens com Alberto Moravia, poesia de Adília Lopes com Maioneggs etc. Tudo entra em seu rol de informações. Algo de que a cultura pop abusou na utilização e que, aqui, reaparece.
Ou seja, toda a sua formação tende a ser feita por lembrança de produtos. E até o que não é um produto de mercado acaba por entrar na gôndola do consumo. Nada mais acertado sobre nossa época, pelo menos como percepção de um sintoma.
Sem dúvida há aí uma vontade de mostrar que tanto a personagem quanto a sociedade que a gerou são obscuras. Até aí, não há como contestar a qualidade de sua obra. Porém o exagero dos traços, a escrita que acaba por ser subjetivante e caricatural, faz com que o feitiço se volte contra o feiticeiro. Ou seja, o deboche e a escrita virulenta delimitam demais a personagem e reduzem o poder de alcance da obra. A falta de sutileza cria apenas uma caricatura, algo que é dado ao público leitor como uma piada. Desopila, é verdade, mas anula qualquer possibilidade de inquietação. Nem toda boa obra precisa ter essa intenção, mas a contemplação obsessiva das próprias feridas corre sempre o perigo de girar em falso.


Heitor Ferraz é poeta, autor de "A Mesma Noite" (7 Letras).


O Azul do Filho Morto
172 págs., R$ 18,00 de Marcelo Mirisola. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/3816-6777).


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