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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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+ sociedade

O modernista de butique

Alessandro Bianchi - 1º.out.2003/Reuters
Giorgio Armani após a apresentação de sua coleção de verão, em Milão, em outubro passado


Retrospectiva em Londres exibe peças do costureiro italiano Giorgio Armani, que buscou recriar em suas roupas a crise das antigas divisões de classe e gênero

John Harvey
especial para a Folha

Talvez haja certa ironia no modo como as roupas Armani passaram a ser associadas à indumentária dos muito ricos. A família de Armani estava longe de ser abastada -ele diz que gostou do modo como sua mãe fez uma roupa elegante com uma simples saia e um paletó de seu pai. O próprio Armani começou como vitrinista e abriu caminho no "prêt-à-porter", e não na alta-costura. Ele ficou famoso pelo que fez com o paletó masculino. Um conhecido clipe o mostra removendo o forro -depois perdendo a paciência e arrancando os enchimentos, a entretela, toda a estrutura de alfaiataria que tornava o paletó ereto, importante, severo. Que pendesse solto e gracioso em torno de um corpo jovem e bem-feito! Ao despir os homens de sua concha de peito elevado -quando ele começou, o forro dos paletós era preso ao tecido com cola-, estava substituindo "classe", no sentido de qualidade, por classe com um sabor soldadesco, de patente.

Torsos curtos, pernas longas
O próximo passo, inspirado por sua mãe e por Marlene Dietrich, foi adaptar o paletó e os ternos masculinos às mulheres -e então transportar a suavidade dos tecidos femininos para os paletós e ternos masculinos.
Essas mudanças não foram feitas só por ele, mas Armani ainda pode ser considerado o estilista que decididamente transportou para as roupas as mudanças que ocorriam no mundo em geral -a erosão de certas antigas divisões de poder, tanto de classe social como de gênero. E não o fez com gestos contrários à moda, mas empunhando firmemente a carapaça do privilégio e moldando-a em um leve envoltório para todos.
Houve muitos elementos nas mudanças que realizou. Ele parece ser claramente um modernista, por seu apreço pelas linhas retas ousadas e retângulos depositados com leveza sobre as curvas do corpo. Armani também abraça o corpo com hábeis costuras. Sua tendência foi erguer a cintura das calças, dando aos homens torsos mais curtos e pernas mais longas. Nos ternos de peito duplo, alongou o paletó para que o torso duplamente embrulhado ainda se afunilasse. Suas reformas não foram exatamente igualitárias. Seus novos tecidos macios para homens eram tramas caras e especiais, com revestimentos químicos de alta tecnologia. Seu "power suit" sem enchimentos foi criado para um corpo poderoso -para o executivo que tonifica o corpo na academia enquanto mantém o apetite aguçado para os lucros da companhia. Armani rapidamente se tornou o costureiro das estrelas nas premiações do Oscar, e em certa medida seu sucesso se baseia no tato de oferecer aos vencedores da sociedade uma maneira luxuosamente estilosa de mostrar que continuam sendo simples e discretos. Mas um terno masculino é por natureza um uniforme, que afirma silenciosamente sua força pela quantidade. O sentimento de libertação nos desenhos de Armani talvez tenha limitado seu uso por alguns poderosos. Na Inglaterra, um terno Armani será mais provavelmente usado por pessoas nos altos escalões da arte do que nos importantes centros de decisão da City, em Whitehall ou em Westminster. Talvez não seja de surpreender que o tipo britânico de ética no trabalho -seja como uma ética do lucro ou uma ética do serviço público- leve em conta um estilo associado à descontração sensual. A sra. Thatcher recomendava Marks and Spencer -e para qualidade de alto preço sempre há Saville Row. Em outros países, uma roupa Armani é usada de modo mais abrangente. Os diplomatas italianos vestem Armani em honra de seu país, Berlusconi veste Armani quando insulta um deputado alemão. Mas foi em Hollywood que Armani arrasou. Os desfiles de moda são sempre parecidos com a estréia de um filme. Ambos os eventos são formas de teatro, com seu desfile afetado de roupas de sonho. A passarela do próprio Armani, incorporada a sua casa em Milão, é gravemente suave, com paredes refletoras sem janelas, bancos de tecido -cara, cavernosa, criada para causar admiração. Certamente as roupas de Armani são mais vistas do que vestidas -em fotos de moda por toda parte e também em filmes, sendo o mais famoso "Gigolô Americano", em que todos os ternos usados por Richard Gere são de Armani. Talvez as próprias roupas Armani sejam um pouco como astros do cinema e dêem algo a um público que nunca poderá se aproximar delas. A questão é se elas dão mais que glamour -uma fantasia da vida longe das dificuldades, sempre jovem, estilosa, sensual. O que se diz com maior frequência é que as roupas Armani criam uma nova relação entre si mesmas e o corpo em seu interior. Nas fotos de moda que Armani divulga a cada temporada, elas caem graciosamente em torno de modelos que parecem principalmente à vontade. É claro que as roupas Armani caem e se dobram especialmente bem quando a pessoa as usa com as mãos nos bolsos. Os homens-Armani fazem muito pouco, mesmo em "power suits". Eles existem, descontraídos, com uma força gentil.

Coisas de homem
Nisso diferem das mulheres-Armani. Muitas vezes elas também têm as mãos nos bolsos, especialmente quando usam blazers ou conjuntos. Mas também fazem coisas que seus homens jamais fariam, como abraçar-se, levantar um braço acima dos ombros para segurar uma bolsa com um giro no ar. Alguns de seus movimentos têm um romantismo padrão -uma modelo nos fixa com um olhar de sobrancelhas baixas, pressionando a mão na lapela e no coração. Mas também fazem coisas de homens que os homens-Armani não fazem, como ficar paradas com ar truculento, os polegares enfiados nos cintos. A imaginação de Armani se move mais depressa nos trajes femininos. Suas inovações mais radicais em blazers e ternos foram nos femininos -como fazer a lapela de um lado só e talvez dobrada sobre si mesma, como se fossem duas lapelas em uma. Um vestido preto esguio, agarrado ao corpo, tem no busto as duas pontas quadradas de uma faixa de cetim branco, cada qual com uma casa e um botão preto, formando uma gigantesca manga e punho masculinos. O vestido torna-se um grande conjunto-manga preto -fendido no joelho para mostrar um tornozelo. Também é na vestimenta feminina, e não na masculina, que ele faz o jogo da moda de expor parcialmente o corpo. Em um conjunto com calças de risca de giz exageradas, o blazer preto é usado com uma gravata masculina desatada -e sem camisa, blusa ou sutiã. Outra roupa tem o top semelhante a uma casaca de homem, abotoado pela metade como deve ser, tendo por baixo apenas a bela pele da modelo. Esse top, que não tem ombros, é sustentado por uma alça preta ao redor do pescoço, na forma exata de uma gravata-borboleta desfeita. Tanto em seus vestidos baseados em ternos como nas confecções de organza e tafetá, o efeito dessa provocação, ao mesmo tempo expondo e velando a pele, é transformar o corpo firme de uma mulher em um animal mágico e fugaz. Podemos nos perguntar, então, voltando a sua indumentária masculina, o que as roupas dizem sobre os homens e seus corpos. Apesar de toda a inovação, sua linha masculina também é basicamente tradicional, tanto por deixar os homens estáticos, enquanto as mulheres são móveis, como por raramente revelar mais que o rosto e as mãos masculinas. Seus tecidos masculinos são quase sempre opacos. Um smoking Armani revela a figura dentro dele pelo modo como o tecido pesa, sem apertar, no peito e nos membros. Se seus trajes masculinos também têm mais textura que os femininos, com camadas de tramas sobre malha, suponho que seja uma alusão ao fato de que o corpo oculto do homem pode ser cabeludo -esse deve ser um dos motivos pelos quais muitas vezes a moda mantém o corpo masculino embrulhado. Ele já disse que gosta de couro por sua qualidade de "una seconda pelle" e, ao remover os forros dos ternos, lhes dá um caimento mais de segunda pele sobre quem os usa. Mas enquanto um vestido segunda-pele pode ter uma aparência molhada, para um homem ela é enfaticamente uma pele solta. Um paletó de couro Armani pode parecer uma pele de animal bem larga.

O sentimento de libertação nos desenhos de Armani talvez tenha limitado seu uso por alguns poderosos

Falta e excesso de material
O que é marcante em sua linha masculina é que, enquanto ele notoriamente reduziu os enchimentos, acrescentou muito mais do que tirou -no corte largo, em seu confortável excesso de material. Há claramente um prazer na própria amplidão macia. Os homens foram com frequência associados a rigidez e severidade, movendo-se rapidamente em roupas tubulares como robôs revestidos de tecido. Há uma generosidade descontraída nos espaços livres de Armani.
Durante vários séculos as roupas femininas foram marcadas pela largueza -a cauda flutuante atrás de túnicas de cintura justa, as ondas balouçantes de saias sobre anáguas-, e podemos associar essa amplidão ao espaço emocional, que era prerrogativa das mulheres. Pergunto-me se, enquanto desenvolvia conspicuamente o terno masculino para mulheres, Giorgio Armani também transportou silenciosamente da indumentária feminina para a masculina a largueza, a textura e a sutileza da cor que acompanham o espaço emocional e a descontração. Ele teria feito, assim, algo grande, mais do que no sentido literal.
Quando sua mãe vestiu um paletó de homem sobre a saia, habilmente criou liberdade, assim como moda. O próprio Armani se move com inteligência para além e aquém de fronteiras. Às vezes suas roupas são até meio do avesso, como a miniarmação de crinolina que uma modelo usa por cima do "chiffon" -juntamente com um blazer abotoado de aspecto severo, com corte preciso em seda floral. Com todo o seu estilo de luxo, há liberdade no modo como Armani faz os opostos interagirem. Assim as mulheres podem adotar o terno listrado dos homens -e os homens podem finalmente se mover dentro das roupas, em vez de usá-las como um contorno.


"Giorgio Armani - Uma Retrospectiva" está em cartaz na Royal Academy, em Londres, até 15/2.

John Harvey é professor no Emmanuel College, da Universidade de Cambridge, e autor de "Men in Black" (University of Chicago Press).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.



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