UOL


São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Em "O Olhar e a Cena", Ismail Xavier recupera os fundamentos teatrais e literários da representação cinematográfica para analisar obras de Hitchcock a Nelson Rodrigues

Os cacos da quarta parede

Silviano Santiago
especial para a Folha

Por ter sido confundido desde as suas origens com o alicerce técnico e industrial que o possibilita, o cinema sempre recorreu a notáveis reflexões de caráter teórico e formal para sustentar dignidade artística. Sem a notável geração de teóricos russos, em que sobressaem Eisenstein ("A Forma do Filme", lançada no Brasil pela ed. Jorge Zahar), Pudóvkin ("O Ator no Cinema") e Lev Kulechóv, o filme mudo teria sobrevivido ao advento do som? O moderno cinema europeu teria existido sem a sofisticada reflexão que nos foi legada por André Malraux ("Esboço de uma Psicologia do Cinema"), por André Bazin (o realismo "ontológico" do plano-sequência) e pelos redatores dos "Cahiers du Cinéma" e de "Cinema Nuovo"? Glauber Rocha me disse que não teria feito os filmes que fez sem a leitura, nos anos de 1950, da provinciana e atualizadíssima "Revista de Cinema" (de Belo Horizonte). Ao amparar-se na singularidade formal do filme e na autonomia teórica dela derivada, e não no peso constrangedor das regras pragmáticas da indústria cultural, a linguagem cinematográfica foi articulando também e paradoxalmente relações sólidas e duradouras com as demais e tradicionais linguagens artísticas da modernidade. Como pensar as relações entre o cinema e o romance da geração perdida norte-americana (Dos Passos, Faulkner, Hemingway etc.) sem a teorização sobre behaviorismo, feita com tanta competência e elegância pela esquecida Claude-Edmonde Magny ("L'Âge du Roman Américain")? Sem suas análises, o que seria dos filmes de Sam Packinpah e Quentin Tarantino?

Herança do século 18
Como pensar a composição assindética (não-discursiva) da "poesia concreta" sem a teoria de Eisenstein sobre montagem? Como não reconhecer que Eisenstein e os irmãos Campos são devedores, por seu turno, da pesquisa de Ernest Fenollosa sobre o ideograma chinês, aclimatada à poesia por Ezra Pound? O notável na contribuição de "O Olhar e a Cena", de Ismail Xavier, é que, a essa multifacetada visão horizontal da arte cinematográfica, ele soma a verticalidade da indagação de caráter histórico sobre a "representação" nos tempos modernos. Para analisar, entre outros, os filmes de Hitchcock ou as transposições para o cinema das peças de Nelson Rodrigues, dá vida aos esquecidos fundamentos teatrais e literários da representação cinematográfica. Na página de abertura da coletânea, Ismail Xavier escreve que a interpretação, na crítica de filmes que faz, "se enriquece a partir do cotejo com formas da encenação teatral herdadas pelo cinema". Aviso que não estará se referindo a adaptações de peças de teatro ao cinema (embora na última parte do livro também se refira à questão), mas ao fundamento canônico -teatral e literário- do filme. Em miúdos: falar sobre a sétima arte é falar sobre a "herança" do século 18 e dos escritos sobre teatro do filósofo Denis Diderot. É falar ainda da "herança" legada pelos prefácios do romancista Henry James, escritos na virada do século 19, e pelo romance clássico de Marcel Proust. O filme enquanto arte foi montado em cima de, ou a partir de, capitanias hereditárias. São elas que servem de alicerce a sustentar os vários andares horizontais da indagação teórica, que instituiu a singularidade do cinema. Esse alicerce recauchutou a crítica especializada do filme com empréstimos tomados à estética da arte nos tempos modernos. Do iluminista Denis Diderot Ismail Xavier absorve o conceito teatral de "quarta parede". Das quatro paredes do palco, é a que "ignora o olhar externo [da platéia] a ela dirigido". Com competência e sob a supervisão técnica de Peter Szondi ("On Textual Understanding and Other Essays"), Ismail Xavier recompõe e atualiza o conceito de Diderot sob o prisma da emancipação do palco (do trabalho do diretor, dos atores etc.), a fim de remetê-lo à arte da composição, tal como se encontra numa obra de arte pictórica. Ou a fim de remetê-lo, acrescentemos, à "psicologia da composição", tal como expressa na arte literária. Não há espetáculo teatral, cinematográfico ou literário sem mise-en-scène, acrescentaria Ismail Xavier com um dos olhos na hegemonia das artes plásticas. O seriíssimo Diderot não teria de ser contra os "golpes de teatro"? Descoberto isso, o outro olho de Ismail Xavier, mais original e ousado, se lança sobre as relações da representação visual com a literatura.

Ponto de vista
De trecho de "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust, e principalmente dos prefácios do romancista Henry James, via Percy Lubbock (pena que tenha se esquecido de Wayne Booth, leitor mais atual da tradição ficcional jamesiana), Ismail Xavier toma de empréstimo a questão crucial do "ponto de vista" narrativo. Este serve para acoplar o "olhar" à "cena", como está no título da coletânea de ensaios.
Acopla-os, sim, ao mesmo tempo em que instaura a descontinuidade entre cena e olhar como fundamento do fechamento libertário do palco e da abertura para as emoções "selvagens" (Virginia Woolf) na platéia. Não há representação modelar como não há espectador total. Há infinitas e monstruosas (diria o argentino Borges) combinações. Liberdade, igualdade, fraternidade.
A teorização de Ismail Xavier, devedora do iluminismo de Diderot e do puritanismo de Henry James, aqui e ali pode parecer asséptica (principalmente quando se desvencilha da perversidade de Proust ou do nosso Nelson). Sua reflexão sobre o teatro e o cinema pode pecar pela falta do avesso, ao não querer absorver manifestações populares e sujas, ou seja, "exibicionistas" (refiro-me, por exemplo, ao já citado horror de Diderot ao "coup de théâtre"). Um pequeno exemplo. Segundo Béla Balász, citado por Ismail Xavier, a descontinuidade entre olhar e cena pode ser desconstruída de um lado e do outro. Escreve ele: "A força das emoções [olhar], o dinamismo da imagem [cena] e o processo de projeção-identificação criam no espectador cinematográfico um senso "de estar dentro da cena'". No teatro e no cinema populares, emoções sem força e imagens sem dinamismo podem gerar, de improviso, fascinantes processos de projeção-identificação. O olhar de Caetano Veloso, direcionando do palco a reação na platéia de x, y ou z: "E quero que você venha comigo". Aproveito a deixa e falo apenas de um processo exibicionista -o "caco". Por um lado, transgressão do ator ao texto que diz, ao diretor que o dirige e à quarta parede; por outro, ponte risonha (e, nos melhores casos, irônica) entre a cena e o seu espectador.

Torta de chantilly
Ao inverso da pergunta feita pelo literato pedante a Joseph Cotten no filme "O Terceiro Homem", pergunto a Ismail Xavier "onde colocar" Procópio Ferreira (Dercy Gonçalves...) e Mazaroppi (Grande Otelo...)? Como conseguem eles se posicionar junto da platéia a fim de levar o espectador para dentro da cena? Ao falar de Nelson Rodrigues, o texto de Ismail Xavier tem de se abrir para "dissolver" o "homem honesto" (homem probo, traduziria assim a expressão "honnête homme") de Diderot. Continua ele, negando o que tinha sido construído como "teatro": "O comportamento se desdobra e envolve construção de imagem, exibicionismo, presença do teatro onde ele não pareceria estar". Não dizem que foi pelo caco de Buster Keaton que a comédia descobriu a torta de chantilly atirada na cara do outro? O que seria do pastelão sem o caco? O que seria da minha vida sem os filmes de Buster Keaton? Será por isso que, em "O Olhar e a Cena", onde se esperavam considerações oportunas e justas sobre gêneros híbridos como a ópera (ver nota na pág. 64), onde se esperavam especulações sobre o exterminador definitivo do teatro que se apoiava nas artes poéticas clássicas, ou seja, o "drama romântico" (a não ser confundido com "melodrama", capítulo 3), ali, existe apenas a alusão ou, simplesmente, o interdito. Tento explicar-me melhor, dando um exemplo. Naquele duplo movimento do pensamento crítico de Ismail Xavier (o vertical que se soma ao horizontal), posteriormente instalado com competência na particularidade teatral e literária da estética cinematográfica, é que reside o privilégio conferido ao "drama sério", sempre adjetivado por ele de "burguês". Pergunto-me se a mão forte da ideologia é o melhor instrumento para descrever e analisar transições históricas delicadas, que se passam no campo da estética (teatral, no caso). Explico-me. As ramificações posteriores ao que Diderot chamou de drama sério não estarão também no questionamento radical da noção de gênero ("genre") no teatro clássico, feita principalmente pelos dramaturgos românticos franceses? Todos lemos "Racine e Shakespeare", de Stendhal, e o "Prefácio" ao "Cromwell", de Victor Hugo. Lemos também descrições da "batalha de "Hernani'". O drama romântico, compósito por natureza-e não mais a tragédia ou a comédia, consideradas como entidades puras e autônomas-, traduz uma busca alvissareira de realismo (não sei mais se "sério", se "burguês"), certamente irônico. O homem, como diz Hugo, não é só trágico ou só cômico, ele é "duplex", isto é, ao mesmo tempo trágico e cômico, tendendo para o ridículo. Da concepção do "homo duplex" ("Prefácio" ao "Cromwell"), fissura corrosiva na seriedade burguesa, estaremos a um passo das "duas postulações" de Charles Baudelaire (o homem dilacerado entre Satã e Deus), ou seja, em plena modernidade. Mais um passo e chegamos às formas de representação chamadas por Northrop Frye de "low mimetic" ("Teoria dos Modos", em "Anatomia da Crítica"). O grande cinema.

Deslizamento de sentido
Numa curta resenha, não há como dar conta das minuciosas, esmeradas e definitivas análises de filmes nacionais e estrangeiros que Ismail Xavier faz. Aliás, estamos cometendo um engano. "A Cena e o Olhar" se organiza mais em razão dos filmes, cineastas e teledramaturgos analisados e discutidos e menos em razão de um encaminhamento histórico e esmagador da argumentação teórica.
Trata-se duma "coletânea" de ensaios. Muitas vezes, na linearidade da leitura, a repetição de um argumento vale como reafirmação de uma vontade crítica. Nas pequenas traições à memória textual, que toda repetição interna acarreta, as afirmações se reabrem como feridas. Estavam a merecer por parte do autor (ou do usurpador) tratamento mais preciso ou menos ortodoxo. E o merecem.
Vale a pena ler também o deslizamento de sentido -ou o movimento do queijo "camembert" sob o efeito do calor ambiente (Alain Robbe-Grillet), que traduz, numa outra perspectiva, o desenrolar do brilhante pensamento crítico de Ismail Xavier, de 1988 aos nossos dias.


Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico, autor de, entre outros, "Stella Manhattan" e "Uma Literatura nos Trópicos" (editora Rocco).


O Olhar e a Cena
382 págs., R$ 55 de Ismail Xavier. Ed. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, São Paulo, SP, tel. 0/xx/ 11/3218-1444).



Texto Anterior: + sociedade: O modernista de butique
Próximo Texto: O significante vazio da nação
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.