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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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"Nenhum Brasil Existe" reúne artigos de especialistas que abordam temas e figuras da cultura do país

O significante vazio da nação

Se "pequena enciclopédia" é uma qualificação confessadamente irônica, o título principal da obra, emprestado de um poema de Drummond, é tomado a sério pelo organizador

Marcelo Coelho
Colunista da Folha

Nenhum Brasil Existe - Pequena Enciclopédia" reúne quase 90 artigos de antropólogos, filósofos, críticos literários e poetas sobre os mais variados temas e figuras da cultura brasileira.
Em torno da "Carta" de Pero Vaz Caminha há quatro textos. A obra de Gilberto Freyre merece seis; mas Florestan Fernandes, José de Alencar e Luís da Câmara Cascudo não foram esquecidos. Na seção "Intermediários Culturais" analisam-se figuras como Ziembinski, Le Corbusier, Debret, Elizabeth Bishop e Stefan Zweig.
Entre os colaboradores, encontramos Walnice Nogueira Galvão (num artigo introdutório sobre "Os Sertões"), Silviano Santiago (Monteiro Lobato e o parasitismo brasileiro), Luís Costa Lima (sobre Oliveira Lima) e João Adolfo Hansen (sobre o padre Vieira). De Gregório de Matos (Adriano Spínola) ao rap (Maria Rita Kehl), da arquitetura de Diamantina (Roberto Conduru) ao papel do rádio no cotidiano brasileiro (Lia Calabre), do visconde de Cairu (Pedro Meira Monteiro) a Roberto Schwarz (Regina Lúcia de Faria), tudo cabe nesta "pequena enciclopédia" -título irônico para uma compilação-mamute de 1.108 páginas-, organizada por João Cezar de Castro Rocha com a colaboração de Valdei Lopes de Araújo.
Difícil dar conta de um livro desses. Trata-se de fenômeno editorial "sui generis". É como se a obra procurasse, ao mesmo tempo, abarcar toda a cultura brasileira e provar a impossibilidade de seu próprio projeto: daí que um panorama sobre o que se pensou sobre o Brasil tenha por título "Nenhum Brasil Existe" e que qualquer totalização interpretativa a respeito de nossa identidade se esfacele em quase uma centena de ensaios monográficos. Se "pequena enciclopédia" é uma qualificação confessadamente irônica, o título principal da obra "Nenhum Brasil Existe", emprestado de um poema de Drummond, é tomado a sério pelo organizador. João Cezar de Castro Rocha acredita que "a nação seria antes um significante vazio ao qual se atribui uma carga semântica segundo as diferentes necessidades geradas pela contingência das circunstâncias históricas". Valeria então saber qual a circunstância histórica-e a que necessidades responde- a própria idéia de que nação seja um "significante vazio"...
São inevitáveis os paradoxos nesse tipo de discussão. Para Castro Rocha, "nem o Brasil nem os brasileiros existem, ou melhor, somente existem através das imagens que deles construímos". Mas basta perguntarmos qual o sentido da palavra "deles" nessa frase para que o raciocínio fique próximo de autodesmentir-se. "Deles" quem? E quem é esse "nós" que constitui o sujeito oculto da frase? O organizador revela de todo modo a correta intenção de não buscar uma identidade nacional única, o "caráter nacional brasileiro", sem dúvida mais o campo para construções míticas do que para investigação cultural aceitável.
O livro pode ser entendido, porém, como sintoma de uma outra lacuna, de uma outra inexistência. "Nenhum Brasil Existe" nasceu originalmente como um número especial da revista "Portuguese Literary and Cultural Studies", dedicado ao Brasil, a que foram acrescentados 25 outros artigos. O que na verdade não existe é uma revista cultural brasileira que pudesse, de três em três meses por exemplo, acolher a imensa variedade de autores e temas tratados neste livro.
A questão não é apenas de economia ou de logística editorial. Assim como o Brasil, o tipo de leitor e o tipo de leitura pressupostos em "Nenhum Brasil Existe" tampouco se totalizam numa única individualidade. A publicação pode atrair o interessado em ler um estudo de Heloísa Toller Gomes a respeito de "Menino de Engenho", de José Lins do Rego -que não será o mesmo leitor do estudo de Lilia Schwarcz a respeito de José Murilo de Carvalho nem o da análise de Paulo Knauss sobre um irrealizado monumento em homenagem ao índio brasileiro, no contexto do centenário da Independência, em 1922. Se uma discussão sobre a "cordialidade do brasileiro", feita pelo organizador do volume, corresponde ao escopo mais amplo de fazer a crítica da noção de identidade nacional, são de foco mais restrito, sem dúvida, o estudo sobre o fichário e o projeto de enciclopédia brasileira de Mário de Andrade ou um artigo sobre a política portuguesa de imposição da homogeneidade linguística no Brasil do século 18.
Pode-se, por fim, aventar uma possibilidade irônica: a de que a inclusão de tantos e tão diversos textos no volume termine representando, sem querer, certa "cordialidade" editorial ou ainda a imagem de um país de dimensões continentais, desordenado e confuso, mas repleto de riquezas a explorar.


Nenhum Brasil Existe
1.108 págs., R$ 113,00 João Cezar de Castro Rocha (org.). UniverCidade/ Uerj/Topbooks (r. Visconde de Inhaúma, 58, CEP 20091-000, RJ, tel. 0/xx/21/2233-8718).



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