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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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Sai no Brasil nova tradução do primeiro volume das "Notas de Literatura", em que o filósofo alemão discute temas como o papel do artista e lírica e romance

A ferida Adorno submersa no indizível

Intransigência e firmeza, agudeza e estranhamento confluem no "aguilhão social", ímpeto e energia de seus escritos

Leopoldo Waizbort
especial para a Folha

Inicialmente "palavras sem canções", por sugestão do editor Theodor W. Adorno acabou por intitular "Notas de Literatura" suas "partituras com respeito à literatura", cujo primeiro volume acaba de ser publicado, iniciando a edição da série (em 4 volumes). O livro reúne, em centena e meia de densas páginas, nove ensaios escritos logo após seu retorno à Alemanha, nos anos 50 (com uma exceção, um fragmento do início dos anos 40). Discutindo temas aparentemente muito variados -lírica e romance, ensaio e pontuação, significação do artista e de movimentos artísticos-, o livro possibilita mergulhar fundo no pensamento de Adorno [1903-69], multifacetado, rigoroso e provocativo, quando não polêmico.
Do conjunto, três textos já haviam sido divulgados entre nós anteriormente, mas a reunião enfatiza a variedade, ao mesmo tempo em que cada um dos ensaios estabelece linhas de continuidade e tensão com os demais, formando uma constelação que, a seguir, se espraia para o conjunto da obra. Cada um deles possui lugar próprio, e, todos, um lugar comum, desafio de dupla face que o leitor é convidado a decifrar. Essa tarefa remete às especificações históricas da obra de Adorno, cristalizadas nos ensaios; o volume, então, exige ponderá-las.
Para que o livro possa ser compreendido como o que pretende ser, crítica, e não simples opinar descompromissado, é preciso levar a sério as considerações do autor acerca da impotência do indivíduo: onde buscar energia para que o possamos ler e pensar? Para lê-lo não é preciso a liberdade que ele mesmo mostrou tolhida? Assim, a verdade ou inverdade de seus objetos e suas interpretações não resta impassível diante das condições de seus leitores, mas deles depende, a não ser que convertamos Adorno em um "guru", como ele mesmo surpreendentemente alertou.
É por essa razão que Adorno é uma ferida, tal como argumentou com relação a Heine. Em ambos os desterrados permanecia viva a "imagem de uma sociedade justa" e de uma "felicidade irrestrita", cujo meio era a fidelidade a "um conceito não diluído de Iluminismo". Intransigência e firmeza, agudeza e estranhamento confluem no "aguilhão social", ímpeto e energia de seus escritos.

Dor sem expressão
Contudo a lírica de Heine, embora mediada, ainda pôde usufruir da imediatidade -uma força de comunicação e experiência comum- que permanece interdita ao ensaísta do século seguinte. Sua capacidade de comunicar, assim como a possibilidade de referir-se a experiências comuns, se acha obstruída pela tendência histórica: violência, reificação e alienação; mesmice, atrofia da fantasia e indiferença; "falta de cultivo da cultura", "sociedade socializada" e "eliminação do sujeito" compõem um diagnóstico e situação que não se confunde com a hora histórica de Heine. Daí que a ferida Adorno sangre de modo próprio, imersa em um mundo no qual a dor já não encontra expressão, por ter se tornado indizível e por termos nos tornado insensíveis. Adorno tentou alinhar-se a Heine, reconhecendo que "toda expressão é vestígio de sofrimento" e transformando toda a insuficiência comunicativa, de experiência comum em expressão da fratura, como aprendera na música na qual se educou, da "segunda escola de Viena". Não por acaso, compreende o ensaio como "destinado a ver o iluminado, não a luz", e o volume se oferece como uma série de "iluminações", pensando seus objetos em uma multiplicidade de camadas que se relacionam entre si e em cujo conflito pode relampejar, por um instante, o possível, superando sua própria impossibilidade. Essas a utopia e a promessa adornianas, reiteradas a cada ensaio. Mas quais são os seus meios? A linguagem aparece sempre como algo estranho, que se desdobra em dupla dimensão (e desdobramento, aqui, é figura da dialética): na obra literária, que Adorno inquire, e no seu próprio procedimento crítico, linguagem estranhada que desentranha o estranho, a ferida e a dor da obra de arte. Linguagem, portanto, é uma certa experiência, que emerge lançando mão de momentos característicos de sua dialética: contradição, mediação, determinação e negação.

"Palco da experiência"
Cada um deles, como uma corrente submersa e convulsa, articula o pensamento no interior de cada ensaio e para além, em rigorosa construção expressiva. A busca do núcleo histórico da verdade faz da experiência o cerne do ensaio, pois que "a experiência individual já é mediada ela mesma pela experiência mais abrangente da humanidade histórica". Daí a idéia de que não só o artista, mas o próprio ensaísta, se torna "palco da experiência intelectual", "representante", "sujeito social coletivo". É nessa direção que se deve compreender o sentido enfático que Adorno adjudica à "experiência". Ademais, como na linguagem confluem os impulsos subjetivos, por um lado, e ela é o medium dos conceitos, por outro, ela se torna mediação e determinação do particular e do universal; nesse movimento passa a valer, para o ensaio adorniano, a "proposição especulativa, segundo a qual o individual é mediado pelo universal e vice-versa". Em seu impulso crítico, almeja a crítica recíproca do particular pelo universal e do universal pelo particular, assim como a determinação do positivo se faz pela via do negativo (é "representando um mundo que rejeita a paz que o poema reafirma que, apesar de tudo, há paz"). O mergulho no objeto, buscando desvendar seus pontos cegos, fulcros de seu teor de verdade, desemboca sempre, de algum modo, na sociedade. Nas mediações históricas dos objetos "está sedimentada a sociedade como um todo". Entretanto como aparece a sociedade neste livrinho? Uma série de determinações negativas (não-liberdade, não-cultura, não-autonomia, não-comunicação, não-espontaneidade etc.) se acumula sem cessar, forçando o conceito ao máximo, intervertendo-o até tornar-se não-sociedade. Esse movimento, de contradição e interversão, revela o potencial crítico do conceito, no qual reluz um momento utópico de reconciliação.

Camadas históricas
É preciso notar, contudo, que tudo isso depende do movimento histórico da sociedade, que, como um secreto motor e mola, está por trás de cada determinação sua. Se o ímpeto histórico arrefece, se o presente se eterniza, essa força atrofia e o movimento pára. Por essa razão, ler Adorno hoje exige uma ponderação muito acurada do movimento histórico e das forças que o impulsionam ou paralisam. Não obstante a complexa e praticamente inesgotável semântica do movimento que impregna todo o processo do moderno e que ainda hoje conduz cegamente, é preciso refletir se não há aqui uma interversão, verdadeiro acontecimento histórico, no qual dinâmica se torna estática e o movimento histórico, em desaceleração brutal, não se converte em mesmice. Ler Adorno exige considerar não somente seus objetos e interpretações, mas as camadas históricas que perpassam e determinam tudo isso, nós leitores inclusive. O que leva a perguntar, parafraseando-o, se o princípio de individuação que se concretiza em seus escritos não permanece na contingência de uma existência cindida e isolada. Pois pretender a universalidade ou mesmo uma comunicação produtiva é algo mais complexo do que a boa tradução e edição de seus escritos, de sua reprodução mais ou menos correta em outros textos e discursos. Trata-se, antes, do movimento que neles desemboca e que continua para além deles, sem deixar de ser aquele momento inicial e, ao mesmo tempo, deixando-o para trás.

O contexto alemão
No entender de Adorno, uma vez que o pensamento é impulsionado pela obra de arte, dela se liberta e traça seu próprio desdobrar. Toda "configuração linguística", seja poema, romance ou ensaio, clama por reflexão, atribuindo ao leitor uma tarefa essencial, que é tornar vivo o pensamento. Segundo ele, "a atualidade do ensaio é a do anacrônico", o que remete ao seu núcleo temporal, cujo teor de verdade é intrínseca e enfaticamente histórico. Evidentemente, um dos sedimentos históricos dos ensaios é seu contexto alemão, como intervenções de um intelectual no debate cultural na Alemanha Ocidental dos anos 50.
Contudo não é apenas esse o anacronismo que vive nesses ensaios, hoje. Compreender sua substância, vale dizer, sua transformação histórica, é condição para que eles se tornem legíveis para seus leitores de outros tempos e lugares, sob pena de se petrificarem. Para que sejam mais do que documentos, exigem reflexão. Hoje, quando os anestésicos são muito mais eficazes, terá a ferida Adorno deixado de doer e sangrar?


Leopoldo Waizbort é professor de sociologia na USP e autor de "As Aventuras de Georg Simmel" (editora 34).


Notas de Literatura 1
176 págs., R$ 27 de Theodor W. Adorno. Tradução de Jorge de Almeida. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/ xx/11/3816-6777).



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