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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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"Máquina de Escrever" reúne a produção poética completa de Armando Freitas Filho, desde "Palavra", de 1963, até "Numeral Nominal", de 2003

Reflexão na verdade sólida do corpo

Alcides Villaça
especial para a Folha

Nesta reunião de 13 livros está toda a poesia, até agora, de Armando Freitas Filho -analisada com empatia por Viviana Bosi (estudo introdutório) e Sebastião Uchoa Leite (orelhas). Da estréia, em "Palavra" (1963), até o momento mais recente de "Numeral Nominal" (2003), expõe-se o longo percurso das formas, temas e atitudes que responderam e continuam a responder aos desafios da expressão poética de toda uma vida. A regularidade da produção e da publicação não deixa dúvida quanto à motivação vital e permanente -que se confirma, lendo-se os poemas, no diálogo mantido entre os parâmetros orgânicos de uma composição disciplinada e as reiteradas obsessões de quem se dispõe, a par de se deixar tocar pelos fatos, a "sofrer o livro". Menos que bruscas rupturas internas, há deslizamentos e variações na história constituída pela poesia de Armando Freitas Filho. Ele deseja captar tanto a verdade sólida do corpo como a mobilidade nervosa da especulação auto-reflexiva; mas, para reproduzir ambas, vale-se de um espelho -a linguagem- de cuja fidelidade logo desconfia e em cujos limites tanto se compõe como se desfigura. Essa operação dramática, a um tempo construtiva e destrutiva, é uma das tendências dominantes da lírica contemporânea, de que esta "Máquina de Escrever" é uma expressiva formalização.

Abertura da linguagem
A matriz construtiva começa afirmando-se enquanto tal, armada de compromisso e projeto (como nos livros iniciais, "Palavra" e "Dual"), mas aos poucos o sentimento da insuficiência da vida e das palavras a ela se agrega e a corrói. Se por um lado os obstinados procedimentos da paronomásia, da fragmentação discursiva e da seriação nominal apontam para o manejo e a domesticação das palavras, por outro as imagens e os ritmos vão-se imprimindo de modo mais afetivo e, portanto, mais problemático -o que talvez permita que falemos numa progressiva abertura da linguagem para o plano das emoções vividas. Entre Drummond e Cabral, o poeta costura em sua máquina de escrever as operações divergentes do segmento reflexivo -"palavra puxa palavra"- e das aparas do tríduo "silepse, lapso e síncope". No livro mais recente -"Numeral Nominal"-, o sentimento do tempo surge como "resíduo/ relutante da estrela que restou": não traduzirá esse apontamento, como em última versão, a persistência de algum mito surdo, secreto, apenas pressentido, que sempre terá animado as arremetidas da linguagem? As incontáveis epígrafes, dedicatórias e citações compõem um sugestivo universo de afeições eletivas -Gullar, Cabral, Drummond, Nerval, Valéry, Baudelaire, Godard, Jacques Tati, Webern, Ravel etc. etc.-, convocando uma ampla constelação de artes e cânones da modernidade em que o poeta explicitamente se inscreve. É nessa explicitação continuada, posta tanto no manejo ostensivo de recursos quanto nas alusões a um progressivo vazio, que residem a conquista e o risco da poesia de Armando Freitas Filho -pois às vezes o exercício da variação cai na cilada do baixo-contínuo. É sintomático que tenha ido buscar em Clarice Lispector, mestra na arte de expor, multiplicar e enfeixar os nervos da vida e da escritura, a epígrafe geral da obra reunida e o título do livro: "O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as teclas secas na úmida e escura madrugada (...)".

Espelho
Já a multipresença de Ana Carolina César, a partir do livro "3 x 4" (1985), encena a um tempo a amada musa da arte, da vida e da morte e oferece ao poeta, qual espelho contíguo, os critérios de uma poesia similar, em que o refinamento do literário, o riso da farsa e o mergulho do corpo no vazio se transfundiram. Como numa gravura de Escher, o poeta diagnostica: "Doente de mim/ desde que a escrita/ juntou-se à vida, com as linhas/ da mão misturadas às do papel". Nem tudo se passa no palco exclusivo da consciência de artífice, embora essa seja a força condutora da poesia de Freitas Filho: há os cenários do quarto, da cidade do Rio; há muitas pessoas, objetos e fatos apanhados numa rede sensitiva, mas exigente, a que não falta a ironia de quem, íntimo das facas de Cabral, considera também o "porta-facas/ da Tok&Stok, em bloco maciço"; há a necessidade de quem, no tempo do regime militar, exercita vingativamente a linguagem "à mão livre", cifrada em poesia. Distante do cotidiano cheio de promessas dos modernistas, mas tendo ainda na cabeça o "Abro a Cidade como um Jornal", de Oswald de Andrade, o poeta está mais próximo da poesia urbana de um impactado Gullar ou de um deslocado Drummond e incorpora com estranhamento os luminosos, a televisão, as "gritarras [sic] elétricas", as manchetes dos jornais. Mas o pacto essencial é feito com o leitor, irmão e hipócrita: sabem ambos que a cidade, os eflúvios da tarde, os seres e as coisas mais urgentes não salvam ninguém e que tudo se passaria entre os arrepios do prazer corporal e os da cotidiana anunciação da morte, não os intermediasse essa arquiamante, sublimada na plena insuficiência, que é a linguagem da poesia moderna.

Movimento essencial
O poema "Matéria", do livro "De Cor" (1988), diz muito do movimento essencial que venho buscando reconhecer: "Parece que os séculos/ cuidam dos castelos/ que no alto das montanhas/ são os sonhos das pedras/ ou o desejo das nuvens./ Escrever é uma pedreira./ Se me atirasse daqui/ de uma de suas torres de marfim/ cairia, talvez/ inteiro/ em corpo reduzido/ na página de qualquer jornal./ Escrever é uma pedraria". Entre os sonhos das pedras e o desejo das nuvens, entre a pedra bruta e a preciosa, entre os castelos e a página de um jornal, entre o trabalho da pedreira e o capricho da pedraria, há largo espaço para ascensões e quedas repetidas, para o espelhamento dialético entre o céu e a página.
Dos poemas iniciais, em que o poeta se aproximou da poesia Práxis (talvez pela necessidade juvenil de conjugar a rigidez formal e a ideológica), até os versos da alta maturidade, Armando Freitas Filho veio alargando seus ritmos e adensando suas imagens, sem abdicar da atitude do poeta que sofre a criação.
Como nos projetos de um Mallarmé ou um Mário Faustino, tudo poderia se converter num livro único, contínuo, totalizado em cada fragmento e fragmentado de um Todo. A palpitação dos teclados das máquinas há tempos vem soando como uma imitação de um ritmo que gostaríamos de trazer de cor.


Alcides Villaça é professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo.


Máquina de Escrever
608 págs., R$ 64 de Armando Freitas Filho. Ed. Nova Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/ xx/ 21/ 2537-8770).



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