|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O pobre B.B. à contraluz
O biógrafo americano John Fuegi defende
que Brecht não escreveu suas peças
|
MARIA CRISTINA FRIAS
da Equipe de Editorialistas
CHRISTINE ROEHRIG
especial para a Folha
Depois de ter questionado a autoria das peças de Bertolt Brecht
com a devastadora biografia
"Brecht and Company - The Life
and the Lies of Bertolt Brecht"
(Brecht e Companhia - A Vida e as
Mentiras de Bertolt Brecht), John
Fuegi lançou recentemente na
Alemanha uma edição ampliada
que traz, segundo ele, "novas evidências" de que o escritor alemão
não teria redigido nem sequer
uma peça sozinho.
Na obra, quase 400 páginas
maior que a original, o professor
da Universidade de Maryland
(EUA) e diretor de cinema reaviva, agora com maior detalhamento e alguma redundância, a imagem de Brecht como um talentoso
e oportunista tirano.
O dramaturgo, diretor, poeta e
prosador teria, em nome da causa
da revolução, explorado suas mulheres para que escrevessem obras
cuja autoria acabava ficando dele.
Omitidos os nomes dos colaboradores, o reconhecimento pelo trabalho era todo de Brecht.
Suíço naturalizado norte-americano e estudioso da obra do dramaturgo, Fuegi, 61, afirma que as
maiores críticas a Brecht vêm da
esquerda. O livro, lançado em
1994 e ainda não publicado no
Brasil, gerou controvérsia e suscitou o interesse de outras pessoas
em revelarem o que sabiam sobre
o alemão. Fuegi, porém, ainda reserva alguns poucos elogios ao
criador do Berliner Ensemble.
"Coloco Brecht nos céus, como
um dos maiores poetas e diretores
de teatro deste século. Já como autor de peças, ele pretendia falar às
massas, mas não tinha nada de
marxista", disse ele à Folha, por
telefone, de Maryland.
Folha - Os depoimentos que o senhor colheu eram de pessoas que
discordavam de Brecht politicamente?
John Fuegi - Em se tratando de
Brecht, é difícil saber se alguém
concordava ou não com ele, porque Brecht estava em todo lugar
no mapa político. Ele era simultaneamente, por exemplo, tanto anti-semita quanto "anti-anti-semita". Então, como você concordaria
ou não com Brecht? Depende de
com qual Brecht você estava lidando em determinado momento. Ele
mesmo disse: "Um homem com
uma teoria está perdido. Você tem
que encher o bolso de teorias e
tê-las para todas as ocasiões". Assim, a teoria que ele tirava de seu
bolso dependia de quem ele era
naquele momento.
Folha - Suas testemunhas foram
pessoas de direita?
Fuegi - Absolutamente, não.
Algumas das pessoas que mais relataram fatos negativos a respeito
de Brecht foram membros do Partido Comunista da Dinamarca.
Quando eles estiveram lá, observaram que Brecht tratava sua mulher e atriz Helene Weigel como
uma cozinheira-escrava. A crítica
a Brecht frequentemente não vem
da direita, mas da esquerda, de
pessoas como Erwin Piscator (fundador do Teatro do Proletariado,
em Berlim), que afirmou que
"Brecht se comportava como um
Hitler". Há o testemunho de que as
relações de Bertolt com as mulheres eram catastróficas. E isso vindo
de três de suas mulheres, membros do PC. Brecht não vivia como
um socialista. Ele escrevia sobre
ser socialista e poemas sobre como
desejava que esse socialismo fosse
maravilhoso, mas, em seu cotidiano, aparentemente levava uma vida, como ele mesmo descreveu,
"bourgeoise" (burguesa).
Folha - Como o senhor começou
a estudar o que chama de "as mentiras de Brecht".
Fuegi - Não concordo com este
título. O verdadeiro é "Brecht and
Company", porque Brecht disse a
Piscator: "Meu nome é um "copyright'. Quem usá-lo terá que pagar
por isso". Esse é o Brecht de quem
não se ouve falar nada. Ouvimos
falar do Brecht amigo dos pobres.
Não ouvimos falar do Brecht que
leva um empregado consigo para o
exílio para tomar conta dele e trabalhar 24 horas por dia, sete dias
por semana. Não ouvimos falar do
Brecht que viaja pelos EUA em
uma limusine de luxo com um
chofer. Ouvimos falar do "pobre
B.B.", pois foi assim que ele escreveu o poema autobiográfico, que é
magnífico. Eu queria descobrir como as obras foram criadas. Quem
fez o trabalho? Quem foi pago por
ele? Ele não sabia inglês ou francês.
Como escreveu "Ópera dos Três
Vinténs" (baseada em obra do inglês John Gay) se na época só sabia
seis palavras de idiomas estrangeiros? Seria impossível. Mas Elisabeth Hauptmann, uma de suas
mulheres, falava muito bem inglês. Eu a entrevistei nesse idioma.
Daí você começa a pensar que pelo
menos 80% dessa obra foi escrita
por Hauptmann. O que mais ela
fez? Por que isso permaneceu esquecido por tanto tempo?
Folha - O que há de novo na edição alemã de seu livro?
Fuegi - Uma das coisas maravilhosas é que apareceu o dramaturgo que escreveu a "Ópera dos Três
Vinténs", o original, em 1928, em
Berlim. Ele me escreveu depois
que o meu livro saiu e me forneceu
novos dados e a indicação de pessoas e coleções que deveria incluir.
Folha - Alguns críticos o acusam
de uma certa falta de rigor. As informações foram bem checadas?
Fuegi - Chequei se o que diziam
era verdadeiro. Voltei para conferir. Encontrei uma pessoa que
conviveu com Elisabeth Hauptmann e que ainda está viva. Confirmei versões com ela, que me
mostrou seu diário.
Folha - Qual a descoberta mais
importante?
Fuegi - Temos certeza de que
Brecht não escreveu mais do que
5% da "Ópera dos Três Vinténs".
Se pegarmos os 5% que sabemos
que ele fez desta e de outras peças,
como "Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny" ou "Tambores
na Noite", teremos só fragmentos,
muito bons, mas que não podem
ser encenados. Você tem que
acrescentar os 80% que Hauptmann fez e a música de Kurt Weill,
no caso da "Ópera". Quando essa
peça foi publicada em 1931, em
Berlim, tinha três autores: Hauptmann, Brecht e Weill. Depois,
quando Brecht quis republicá-la e
ficar com o dinheiro para si, ele reduziu o nome dos demais a letras
bem pequenas e, de repente,
Brecht se tornou o autor principal.
Apesar das reclamações privadas
dos colaboradores, foi mantida a
imagem pública do autor. Isso pode ser provado na primeira edição.
Folha - Sua obra se detém mais
no teatro brechtiano que na poesia. Ela escapa das acusações?
Fuegi - Não, porque Elisabeth
Hauptmann também escreveu
muita poesia. Letras de canções
que foram o grande sucesso quando "Mahagonny" foi lançada são
dela, sem sombra de dúvida.
Folha - Mas, se a obra de Brecht é
esse patchwork de diferentes colaboradores, como o leitor observa
um estilo tão próprio e definido ao
longo de seu trabalho?
Fuegi - Observe os primeiros
trabalhos, escritos num círculo
homossexual em Augsburg e Munique, como "Baal" (1922) e as primeiras versões de "Um Homem É
um Homem" (1927) ou "Eduardo
2º" (1923), esta muito especificamente homossexual , já que o rei é
homossexual. Compare-as, a seguir, com obras de 1930, como
"Santa Joana dos Matadouros".
São completamente diferentes. Há
algo desse mundo homossexual,
mas tudo mudou. Agora existem
mulheres muito fortes no centro.
Agora a linguagem é muito mais
pura, mais didática. Não há uma
continuidade no estilo.
Folha - Na nova versão de seu livro, o senhor menciona as preferências sexuais de Brecht?
Fuegi - Ele era mais bissexual.
Quando interessava, participava
do círculo homossexual em Augsburg e Munique. Mas depois pareceu sentir que era melhor abandoná-lo, no momento em que entrou
em contato com os mais pudicos
da Alemanha Oriental. Havia um
certo número de gays no Berliner
Ensemble, incluindo atrizes importantes. Apesar disso, a posição
oficial do Berliner Ensemble era de
negar a homossexualidade.
Folha - O senhor contesta todo o
mérito do escritor alemão?
Fuegi - Não. Considero-o um
dos mais importantes poetas e diretores de teatro deste século. Mas,
como dramaturgo, não conheço
nenhuma peça que ele tenha feito
sozinho. Quando ele escrevia para
teatro, parecia ter uma necessidade absoluta de escrever com mais
alguém. Mas não creditava o nome
dos demais autores.
Folha - Como todos esses colaboradores não reclamaram do fato
de Brecht se apoderar de suas
obras?
Fuegi - Eles reclamaram, mas
eram também comunistas muito
engajados e consideravam que algo pessoal não deveria sufocar a
causa. Eles acreditavam que o teatro por si só tinha a capacidade de
mudar o mundo e que a garantia
de encenação das peças era mais
importante do que ser dono do
próprio trabalho.
Folha - O senhor considera
Brecht melhor poeta do que dramaturgo?
Fuegi - Eu não digo que a "Ópera dos Três Vinténs" teria funcionado sem Brecht. Você pode ver
características de seus três autores
na peça e coisas maravilhosas que
ele lhes ensinou a colocar nela.
Folha - A imagem que o senhor
faz de Brecht guarda alguma semelhança com a que ele expressa
de si mesmo no poema autobiográfico "Do Pobre B.B."?
Fuegi - Se pegarmos o poema
como um todo, vemos que de repente a máscara cai e se começa a
tratar as mulheres como objetos,
como seres que basicamente seguem o desejo do mestre. Quanto à
pobreza, Brecht nunca foi pobre.
Ele é burguês em suas origens. Ganhou dinheiro com suas peças e
mandou uma boa quantia para a
Suíça. Brecht sempre se sentia
"pobre" e reclamava que seu pai e
seus amigos não o apoiavam.
Folha - Ao enfocar escândalos sexuais e detalhes da vida de Brecht
o senhor não se sente um pouco
como o promotor Star em relação
ao presidente Bill Clinton? Não haveria uma confusão moralista entre o que é público e privado?
Fuegi - Eu acredito que a pessoa é o político. Para mim, a forma
como você conduz sua vida pessoal é aquela como a política é conduzida nos níveis mais básicos. Há
particularidades sexuais que revelam relações de poder e sadomasoquismo. Eu gostaria de separar o
poder e não me importar com o
modo como a vida é vivida. Mas,
na verdade, Brecht andava de limusine, enquanto falava em trabalhar com as massas. Ele ganhava
muito dinheiro, em vez de atuar
com os trabalhadores nos teatros.
Então, onde está essa linha entre o
privado e o político?
Christine Roehrig é diretora e organizadora da
coleção "Teatro Completo de Bertolt Brecht", pela
Ed. Paz e Terra.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|