São Paulo, domingo, 8 de fevereiro de 1998

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O pobre B.B. à contraluz


O biógrafo americano John Fuegi defende que Brecht não escreveu suas peças


MARIA CRISTINA FRIAS
da Equipe de Editorialistas

CHRISTINE ROEHRIG
especial para a Folha

Depois de ter questionado a autoria das peças de Bertolt Brecht com a devastadora biografia "Brecht and Company - The Life and the Lies of Bertolt Brecht" (Brecht e Companhia - A Vida e as Mentiras de Bertolt Brecht), John Fuegi lançou recentemente na Alemanha uma edição ampliada que traz, segundo ele, "novas evidências" de que o escritor alemão não teria redigido nem sequer uma peça sozinho.
Na obra, quase 400 páginas maior que a original, o professor da Universidade de Maryland (EUA) e diretor de cinema reaviva, agora com maior detalhamento e alguma redundância, a imagem de Brecht como um talentoso e oportunista tirano.
O dramaturgo, diretor, poeta e prosador teria, em nome da causa da revolução, explorado suas mulheres para que escrevessem obras cuja autoria acabava ficando dele. Omitidos os nomes dos colaboradores, o reconhecimento pelo trabalho era todo de Brecht.
Suíço naturalizado norte-americano e estudioso da obra do dramaturgo, Fuegi, 61, afirma que as maiores críticas a Brecht vêm da esquerda. O livro, lançado em 1994 e ainda não publicado no Brasil, gerou controvérsia e suscitou o interesse de outras pessoas em revelarem o que sabiam sobre o alemão. Fuegi, porém, ainda reserva alguns poucos elogios ao criador do Berliner Ensemble.
"Coloco Brecht nos céus, como um dos maiores poetas e diretores de teatro deste século. Já como autor de peças, ele pretendia falar às massas, mas não tinha nada de marxista", disse ele à Folha, por telefone, de Maryland.

Folha - Os depoimentos que o senhor colheu eram de pessoas que discordavam de Brecht politicamente?
John Fuegi -
Em se tratando de Brecht, é difícil saber se alguém concordava ou não com ele, porque Brecht estava em todo lugar no mapa político. Ele era simultaneamente, por exemplo, tanto anti-semita quanto "anti-anti-semita". Então, como você concordaria ou não com Brecht? Depende de com qual Brecht você estava lidando em determinado momento. Ele mesmo disse: "Um homem com uma teoria está perdido. Você tem que encher o bolso de teorias e tê-las para todas as ocasiões". Assim, a teoria que ele tirava de seu bolso dependia de quem ele era naquele momento.
Folha - Suas testemunhas foram pessoas de direita?
Fuegi -
Absolutamente, não. Algumas das pessoas que mais relataram fatos negativos a respeito de Brecht foram membros do Partido Comunista da Dinamarca. Quando eles estiveram lá, observaram que Brecht tratava sua mulher e atriz Helene Weigel como uma cozinheira-escrava. A crítica a Brecht frequentemente não vem da direita, mas da esquerda, de pessoas como Erwin Piscator (fundador do Teatro do Proletariado, em Berlim), que afirmou que "Brecht se comportava como um Hitler". Há o testemunho de que as relações de Bertolt com as mulheres eram catastróficas. E isso vindo de três de suas mulheres, membros do PC. Brecht não vivia como um socialista. Ele escrevia sobre ser socialista e poemas sobre como desejava que esse socialismo fosse maravilhoso, mas, em seu cotidiano, aparentemente levava uma vida, como ele mesmo descreveu, "bourgeoise" (burguesa).
Folha - Como o senhor começou a estudar o que chama de "as mentiras de Brecht".
Fuegi -
Não concordo com este título. O verdadeiro é "Brecht and Company", porque Brecht disse a Piscator: "Meu nome é um "copyright'. Quem usá-lo terá que pagar por isso". Esse é o Brecht de quem não se ouve falar nada. Ouvimos falar do Brecht amigo dos pobres. Não ouvimos falar do Brecht que leva um empregado consigo para o exílio para tomar conta dele e trabalhar 24 horas por dia, sete dias por semana. Não ouvimos falar do Brecht que viaja pelos EUA em uma limusine de luxo com um chofer. Ouvimos falar do "pobre B.B.", pois foi assim que ele escreveu o poema autobiográfico, que é magnífico. Eu queria descobrir como as obras foram criadas. Quem fez o trabalho? Quem foi pago por ele? Ele não sabia inglês ou francês. Como escreveu "Ópera dos Três Vinténs" (baseada em obra do inglês John Gay) se na época só sabia seis palavras de idiomas estrangeiros? Seria impossível. Mas Elisabeth Hauptmann, uma de suas mulheres, falava muito bem inglês. Eu a entrevistei nesse idioma. Daí você começa a pensar que pelo menos 80% dessa obra foi escrita por Hauptmann. O que mais ela fez? Por que isso permaneceu esquecido por tanto tempo?
Folha - O que há de novo na edição alemã de seu livro?
Fuegi -
Uma das coisas maravilhosas é que apareceu o dramaturgo que escreveu a "Ópera dos Três Vinténs", o original, em 1928, em Berlim. Ele me escreveu depois que o meu livro saiu e me forneceu novos dados e a indicação de pessoas e coleções que deveria incluir.
Folha - Alguns críticos o acusam de uma certa falta de rigor. As informações foram bem checadas?
Fuegi -
Chequei se o que diziam era verdadeiro. Voltei para conferir. Encontrei uma pessoa que conviveu com Elisabeth Hauptmann e que ainda está viva. Confirmei versões com ela, que me mostrou seu diário.
Folha - Qual a descoberta mais importante?
Fuegi -
Temos certeza de que Brecht não escreveu mais do que 5% da "Ópera dos Três Vinténs". Se pegarmos os 5% que sabemos que ele fez desta e de outras peças, como "Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny" ou "Tambores na Noite", teremos só fragmentos, muito bons, mas que não podem ser encenados. Você tem que acrescentar os 80% que Hauptmann fez e a música de Kurt Weill, no caso da "Ópera". Quando essa peça foi publicada em 1931, em Berlim, tinha três autores: Hauptmann, Brecht e Weill. Depois, quando Brecht quis republicá-la e ficar com o dinheiro para si, ele reduziu o nome dos demais a letras bem pequenas e, de repente, Brecht se tornou o autor principal. Apesar das reclamações privadas dos colaboradores, foi mantida a imagem pública do autor. Isso pode ser provado na primeira edição.
Folha - Sua obra se detém mais no teatro brechtiano que na poesia. Ela escapa das acusações?
Fuegi -
Não, porque Elisabeth Hauptmann também escreveu muita poesia. Letras de canções que foram o grande sucesso quando "Mahagonny" foi lançada são dela, sem sombra de dúvida.
Folha - Mas, se a obra de Brecht é esse patchwork de diferentes colaboradores, como o leitor observa um estilo tão próprio e definido ao longo de seu trabalho?
Fuegi -
Observe os primeiros trabalhos, escritos num círculo homossexual em Augsburg e Munique, como "Baal" (1922) e as primeiras versões de "Um Homem É um Homem" (1927) ou "Eduardo 2º" (1923), esta muito especificamente homossexual , já que o rei é homossexual. Compare-as, a seguir, com obras de 1930, como "Santa Joana dos Matadouros". São completamente diferentes. Há algo desse mundo homossexual, mas tudo mudou. Agora existem mulheres muito fortes no centro. Agora a linguagem é muito mais pura, mais didática. Não há uma continuidade no estilo.
Folha - Na nova versão de seu livro, o senhor menciona as preferências sexuais de Brecht?
Fuegi -
Ele era mais bissexual. Quando interessava, participava do círculo homossexual em Augsburg e Munique. Mas depois pareceu sentir que era melhor abandoná-lo, no momento em que entrou em contato com os mais pudicos da Alemanha Oriental. Havia um certo número de gays no Berliner Ensemble, incluindo atrizes importantes. Apesar disso, a posição oficial do Berliner Ensemble era de negar a homossexualidade.
Folha - O senhor contesta todo o mérito do escritor alemão?
Fuegi -
Não. Considero-o um dos mais importantes poetas e diretores de teatro deste século. Mas, como dramaturgo, não conheço nenhuma peça que ele tenha feito sozinho. Quando ele escrevia para teatro, parecia ter uma necessidade absoluta de escrever com mais alguém. Mas não creditava o nome dos demais autores.
Folha - Como todos esses colaboradores não reclamaram do fato de Brecht se apoderar de suas obras?
Fuegi -
Eles reclamaram, mas eram também comunistas muito engajados e consideravam que algo pessoal não deveria sufocar a causa. Eles acreditavam que o teatro por si só tinha a capacidade de mudar o mundo e que a garantia de encenação das peças era mais importante do que ser dono do próprio trabalho.
Folha - O senhor considera Brecht melhor poeta do que dramaturgo?
Fuegi -
Eu não digo que a "Ópera dos Três Vinténs" teria funcionado sem Brecht. Você pode ver características de seus três autores na peça e coisas maravilhosas que ele lhes ensinou a colocar nela.
Folha - A imagem que o senhor faz de Brecht guarda alguma semelhança com a que ele expressa de si mesmo no poema autobiográfico "Do Pobre B.B."?
Fuegi -
Se pegarmos o poema como um todo, vemos que de repente a máscara cai e se começa a tratar as mulheres como objetos, como seres que basicamente seguem o desejo do mestre. Quanto à pobreza, Brecht nunca foi pobre. Ele é burguês em suas origens. Ganhou dinheiro com suas peças e mandou uma boa quantia para a Suíça. Brecht sempre se sentia "pobre" e reclamava que seu pai e seus amigos não o apoiavam.
Folha - Ao enfocar escândalos sexuais e detalhes da vida de Brecht o senhor não se sente um pouco como o promotor Star em relação ao presidente Bill Clinton? Não haveria uma confusão moralista entre o que é público e privado?
Fuegi -
Eu acredito que a pessoa é o político. Para mim, a forma como você conduz sua vida pessoal é aquela como a política é conduzida nos níveis mais básicos. Há particularidades sexuais que revelam relações de poder e sadomasoquismo. Eu gostaria de separar o poder e não me importar com o modo como a vida é vivida. Mas, na verdade, Brecht andava de limusine, enquanto falava em trabalhar com as massas. Ele ganhava muito dinheiro, em vez de atuar com os trabalhadores nos teatros. Então, onde está essa linha entre o privado e o político?


Christine Roehrig é diretora e organizadora da coleção "Teatro Completo de Bertolt Brecht", pela Ed. Paz e Terra.



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