São Paulo, domingo, 8 de fevereiro de 1998

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Memória corrompida


Diretor do Arquivo Brecht afirma que Fuegi falsificou documentos


Da Equipe de Editorialistas e

especial para Folha

"John Fuegi apresentou ampla documentação, mas as chaves que oferece são corruptas. Ele falsifica documentos". A afirmação é do diretor do Arquivo Brecht, Erdmut Wizisla. Segundo ele, documentos da instituição, localizada em Berlim, podem comprovar que faltou rigor científico ao autor de "Brecht and Company".
Em entrevista à Folha, Wizisla apresenta ainda, a partir da documentação existente, uma imagem diversa de um escritor taciturno e de um "ato aproveitador, "bon vivant'±". Bertolt Brecht teria tido dificuldades financeiras diante do Berliner Ensemble, diferentemente do que apregoam alguns críticos, para os quais o dramaturgo teria tido seu apoio e complacência ao regime comunista recompensados com um teatro para suas experiências.
(MARIA CRISTINA FRIAS e CHRISTINE ROEHRIG)

Folha - No polêmico livro "The Life and Lies of Bertolt Brecht", John Fuegi tenta provar que as obras de Brecht nada mais são do que apropriações de trabalhos feitos por seus colaboradores. O que o senhor acha do livro e do retrato que ele faz de Brecht?
Erdmut Wizisla -
Veja, eu acho que o livro de Fuegi não é desinteressante, o que não quer dizer que seja interessante. É verdade que ele coloca questões que têm de ser respondidas e que, em parte, não são abordadas pelos pesquisadores de Brecht. Essa história sobre os colaboradores, por exemplo. Ainda não sabemos até onde vai a colaboração de Ruth Berlau, Elisabeth Hauptmann e dos homens, como Benjamin, Eisler, Feuchtwanger.
A outra questão que surge no livro de Fuegi, e que ainda precisa ser pesquisada, é como Brecht se comportou sob as diferentes formas de regime -na verdade, como se comporta um intelectual crítico dentro de diferentes sistemas políticos. Infelizmente Fuegi mostrou-nos caminhos, mas seus resultados não têm utilidade alguma. Ele reuniu enorme quantidade de fatos e materiais, apresentou ampla documentação, mas as chaves que oferece são corruptas, ele falsifica os documentos.
Folha - Que documentos ele falsifica?
Wizisla -
Simples, tirando coisas do contexto e transformando-as no contrário. Ele conduz os fatos em uma linha, fazendo surgir uma perspectiva pequeno-burguesa e pseudofeminista, ou seja, o que há de pior na ensaística norte-americana. Considero o livro como algo irritante. Contém muitos erros, apesar de o autor ter corrigido inúmeros que constavam na versão em inglês. Veja, não quero dizer que o livro não contenha acertos, mas ele está repleto de erros.
Por exemplo, Fuegi afirma que Helene Weigel era do Partido Comunista, inclusive no tempo da Alemanha Oriental, e que, após a invasão da Hungria (em 1956), ela teria saído. A verdade é que Weigel não pertenceu ao partido depois de seu retorno à Europa. Não é um ponto de vista sem importância, porque Fuegi acrescenta várias interpretações a partir deste falso fato.
Outro erro que comete é ao afirmar que a irmã de Margaret Steffin não se lembra de ter recebido alguma carta de Brecht comunicando a morte da irmã. Essa carta existe no Arquivo Brecht, e o curioso é que nós, do Arquivo, compramos a carta exatamente da irmã de Margareth Stefin. E isso é algo que Fuegi poderia ter checado com muita facilidade. Daí você pode imaginar o resto. É um livro impreciso, pseudocientífico.
Folha - Qual é a atualidade de Brecht?
Wizisla -
Na minha opinião, Brecht continua tendo uma atualidade espantosa. Dois ou três pontos bastam para comprovar isso. Mas, primeiro, é importante ressaltar que a imagem que temos de Brecht é totalmente diferente do que ele realmente era. As pessoas que trabalharam com o dramaturgo e seus alunos são unânimes em afirmar que Brecht era uma pessoa extremamente irônica, colorida e leve. Uma imagem muito diferente daquele homenzinho cinza, tabagista de botas, forjada pela Alemanha Oriental.
Por outro lado, muitos críticos tentam nos passar a idéia de um rato aproveitador, "bon vivant", que usava as pessoas à sua volta e as descartava quando não tinham mais utilidade. Isso não é verdade. Certamente Brecht apreciava pequenos prazeres, mas antes de mais nada ele era um trabalhador fanático e obsessivo, que não parava de fabricar idéias. Um artista muito consciente da importância da sua obra e da necessidade de levá-la até o fim a qualquer preço.
Outro ponto é obviamente em relação à política. Muitos comentadores tentam anular o lado político de Brecht a fim de salvar o caráter estritamente artístico da obra. Isto é um erro. Brecht é um autor político. Ele registrou melhor do que qualquer outro os impasses de seu tempo, reconhecendo os momentos históricos cruciais.
Isso não quer dizer que ele não tenha se enganado em muitas coisas ou não tenha cometido graves erros. Afinal, ele não é um político e sim um artista com consciência política. É verdade que o seu silêncio em relação aos crimes de Stálin é um grande problema, mas não podemos esquecer que sua obra demonstra um perpétuo espírito de insatisfação com a situação político-social.
Posso mesmo afirmar que o grande legado de Brecht é a idéia de que você deve e pode transformar sua realidade. E quando pensamos nos novos impasses que tanto a Europa quanto o Brasil atravessam, tais como desemprego, preconceito social, veremos que os textos de Brecht ganham uma atualidade com a qual ninguém contava. Não é à toa que sua obra tem ainda uma abrangência mundial. Sei por Willy Bolle que no Brasil, por exemplo, Brecht é amplamente encenado e discutido.
Folha - O que o Arquivo Brecht preparou para a comemoração do centenário do nascimento do dramaturgo?
Wizisla -
Preparamos uma exposição na Akademie der Künste cujo título é uma frase recém-descoberta nos manuscritos do jovem Brecht. Em 1920, ele escreveu em seu diário: "Quarenta anos e a minha obra irá encerrar o milênio". Isso é muito interessante pois mostra um Brecht visionário.
Para a exposição abrimos o escritório de Brecht e pesquisamos sua forma de trabalho. A partir daí, selecionamos muitos de seus inúmeros manuscritos, principalmente os textos iniciais que acabaram ficando muito diferentes de sua forma final... A exposição, além de inédita, não será repetida em razão da fragilidade dos manuscritos.
Folha - Que condições materiais Brecht dispunha para trabalhar na Alemanha Oriental?
Wizisla -
O material que temos no arquivo demonstra que as condições eram precárias. Brecht utilizava um papel muito fino e usava a fita da máquina de escrever até o último milímetro. Isso porque a burocracia, para se conseguir algum material na Alemanha Oriental dos anos 50, era infindável. Primeiro era necessário comprovar que se era escritor. Feito isso, o "escritor", quando reconhecido como tal, deveria se dirigir a um determinado departamento e dizer: "Eu preciso de algumas fitas". Só que às vezes elas não chegavam. Brecht chegou a ter que datilografar cartas sem fita utilizando carbono e enviando a cópia, até porque o original estava em branco.



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