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Memória corrompida
Diretor do Arquivo Brecht afirma que Fuegi falsificou documentos
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Da Equipe de Editorialistas e
especial para Folha
"John Fuegi apresentou ampla documentação, mas as chaves que
oferece são corruptas. Ele falsifica
documentos". A afirmação é do
diretor do Arquivo Brecht, Erdmut Wizisla. Segundo ele, documentos da instituição, localizada
em Berlim, podem comprovar que
faltou rigor científico ao autor de
"Brecht and Company".
Em entrevista à Folha, Wizisla
apresenta ainda, a partir da documentação existente, uma imagem
diversa de um escritor taciturno e
de um "ato aproveitador, "bon vivant'±". Bertolt Brecht teria tido
dificuldades financeiras diante do
Berliner Ensemble, diferentemente do que apregoam alguns críticos, para os quais o dramaturgo
teria tido seu apoio e complacência ao regime comunista recompensados com um teatro para suas
experiências.
(MARIA CRISTINA FRIAS e
CHRISTINE ROEHRIG)
Folha - No polêmico livro
"The Life and Lies of Bertolt
Brecht", John Fuegi tenta provar
que as obras de Brecht nada mais
são do que apropriações de trabalhos feitos por seus colaboradores.
O que o senhor acha do livro e do
retrato que ele faz de Brecht?
Erdmut Wizisla - Veja, eu acho
que o livro de Fuegi não é desinteressante, o que não quer dizer que
seja interessante. É verdade que ele
coloca questões que têm de ser respondidas e que, em parte, não são
abordadas pelos pesquisadores de
Brecht. Essa história sobre os colaboradores, por exemplo. Ainda
não sabemos até onde vai a colaboração de Ruth Berlau, Elisabeth
Hauptmann e dos homens, como
Benjamin, Eisler, Feuchtwanger.
A outra questão que surge no livro de Fuegi, e que ainda precisa
ser pesquisada, é como Brecht se
comportou sob as diferentes formas de regime -na verdade, como se comporta um intelectual
crítico dentro de diferentes sistemas políticos. Infelizmente Fuegi
mostrou-nos caminhos, mas seus
resultados não têm utilidade alguma. Ele reuniu enorme quantidade
de fatos e materiais, apresentou
ampla documentação, mas as chaves que oferece são corruptas, ele
falsifica os documentos.
Folha - Que documentos ele falsifica?
Wizisla - Simples, tirando coisas do contexto e transformando-as no contrário. Ele conduz os
fatos em uma linha, fazendo surgir
uma perspectiva pequeno-burguesa e pseudofeminista, ou seja, o
que há de pior na ensaística norte-americana. Considero o livro
como algo irritante. Contém muitos erros, apesar de o autor ter corrigido inúmeros que constavam na
versão em inglês. Veja, não quero
dizer que o livro não contenha
acertos, mas ele está repleto de erros.
Por exemplo, Fuegi afirma que
Helene Weigel era do Partido Comunista, inclusive no tempo da
Alemanha Oriental, e que, após a
invasão da Hungria (em 1956), ela
teria saído. A verdade é que Weigel
não pertenceu ao partido depois
de seu retorno à Europa. Não é um
ponto de vista sem importância,
porque Fuegi acrescenta várias interpretações a partir deste falso fato.
Outro erro que comete é ao afirmar que a irmã de Margaret Steffin
não se lembra de ter recebido alguma carta de Brecht comunicando a
morte da irmã. Essa carta existe no
Arquivo Brecht, e o curioso é que
nós, do Arquivo, compramos a
carta exatamente da irmã de Margareth Stefin. E isso é algo que Fuegi poderia ter checado com muita
facilidade. Daí você pode imaginar
o resto. É um livro impreciso,
pseudocientífico.
Folha - Qual é a atualidade de
Brecht?
Wizisla - Na minha opinião,
Brecht continua tendo uma atualidade espantosa. Dois ou três pontos bastam para comprovar isso.
Mas, primeiro, é importante ressaltar que a imagem que temos de
Brecht é totalmente diferente do
que ele realmente era. As pessoas
que trabalharam com o dramaturgo e seus alunos são unânimes em
afirmar que Brecht era uma pessoa
extremamente irônica, colorida e
leve. Uma imagem muito diferente
daquele homenzinho cinza, tabagista de botas, forjada pela Alemanha Oriental.
Por outro lado, muitos críticos
tentam nos passar a idéia de um
rato aproveitador, "bon vivant",
que usava as pessoas à sua volta e
as descartava quando não tinham
mais utilidade. Isso não é verdade.
Certamente Brecht apreciava pequenos prazeres, mas antes de
mais nada ele era um trabalhador
fanático e obsessivo, que não parava de fabricar idéias. Um artista
muito consciente da importância
da sua obra e da necessidade de levá-la até o fim a qualquer preço.
Outro ponto é obviamente em
relação à política. Muitos comentadores tentam anular o lado político de Brecht a fim de salvar o caráter estritamente artístico da
obra. Isto é um erro. Brecht é um
autor político. Ele registrou melhor do que qualquer outro os impasses de seu tempo, reconhecendo os momentos históricos cruciais.
Isso não quer dizer que ele não
tenha se enganado em muitas coisas ou não tenha cometido graves
erros. Afinal, ele não é um político
e sim um artista com consciência
política. É verdade que o seu silêncio em relação aos crimes de Stálin
é um grande problema, mas não
podemos esquecer que sua obra
demonstra um perpétuo espírito
de insatisfação com a situação político-social.
Posso mesmo afirmar que o
grande legado de Brecht é a idéia
de que você deve e pode transformar sua realidade. E quando pensamos nos novos impasses que
tanto a Europa quanto o Brasil
atravessam, tais como desemprego, preconceito social, veremos
que os textos de Brecht ganham
uma atualidade com a qual ninguém contava. Não é à toa que sua
obra tem ainda uma abrangência
mundial. Sei por Willy Bolle que
no Brasil, por exemplo, Brecht é
amplamente encenado e discutido.
Folha - O que o Arquivo Brecht
preparou para a comemoração do
centenário do nascimento do dramaturgo?
Wizisla - Preparamos uma exposição na Akademie der Künste
cujo título é uma frase recém-descoberta nos manuscritos do jovem
Brecht. Em 1920, ele escreveu em
seu diário: "Quarenta anos e a minha obra irá encerrar o milênio".
Isso é muito interessante pois
mostra um Brecht visionário.
Para a exposição abrimos o escritório de Brecht e pesquisamos
sua forma de trabalho. A partir
daí, selecionamos muitos de seus
inúmeros manuscritos, principalmente os textos iniciais que acabaram ficando muito diferentes de
sua forma final... A exposição,
além de inédita, não será repetida
em razão da fragilidade dos manuscritos.
Folha - Que condições materiais
Brecht dispunha para trabalhar na
Alemanha Oriental?
Wizisla - O material que temos
no arquivo demonstra que as condições eram precárias. Brecht utilizava um papel muito fino e usava a
fita da máquina de escrever até o
último milímetro. Isso porque a
burocracia, para se conseguir algum material na Alemanha Oriental dos anos 50, era infindável. Primeiro era necessário comprovar
que se era escritor. Feito isso, o
"escritor", quando reconhecido
como tal, deveria se dirigir a um
determinado departamento e dizer: "Eu preciso de algumas fitas".
Só que às vezes elas não chegavam.
Brecht chegou a ter que datilografar cartas sem fita utilizando carbono e enviando a cópia, até porque o original estava em branco.
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