São Paulo, domingo, 8 de fevereiro de 1998

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O gesto na era bioeletrônical


Inquietações de Brecht e Eisenstein passaram pela biomecânica de Meyerhold


GERALD THOMAS
especial para a Folha, de Nova York

Numa de suas primeiras experimentações com o teatro, o escultor Tadeuz Kantor montou uma cena que lidava, unicamente, com o acender e o apagar dos refletores. Não havia atores no palco, só bonecos e alguma mobília. Durante os 90 minutos de espetáculo, somente os refletores davam um ocasional sinal de vida. Assim como toda sua obra, esse "O Berro" de Kantor também foi autobiográfico, mas seu dilema expressava uma urgência universal. O acender e apagar das luzes de Kantor foi ecoado em todas as partes do mundo.
Era em plena década de 60, e o teatro, na condição de réu, passava por um de seus mais dolorosos julgamentos. Seu crime? Perda de identidade. Afinal, o teatro das décadas anteriores havia inventado fórmulas, concretizado gestos, formado fileiras de pensadores e se tornado um poderoso instrumento, contra ou a favor da política. Por que então seu "corpo" estava tão irreconhecível, tão dissolvido?
O que faltava ao teatro naquela década -como em todas as décadas- era ter cabeça, corpo e membros que refletissem, de alguma forma, os defeitos e virtudes do seu tempo. O que faltava ao teatro, escrevia Jean-Jacques Lebel num manifesto, era uma "transformação tão rebelde e radical quanto aquela evidenciada pela, assim chamada, "vida real'±". O que faltava ao teatro era uma revolução.
Todos aqueles que "pensavam" o teatro estavam inquietos. Peter Brook buscava uma resposta para o silêncio deixado após o aplauso e não se conformava com o tempo e o espaço ocupados por um espetáculo, enquanto que Grotovski "libertava" seus atores do confinamento físico de um teatro.
Julian Beck, ao som altíssimo de rock, tentava abolir o conceito de "encenação e atuação" e peregrinava com seu Living Theater pelo mundo, criando "happenings". Nenhuma forma era definitiva e qualquer conteúdo debatível. O teatro estava vivendo o apreensivo instante entre o apagar e o acender das luzes. O teatro vivia o vácuo causado pela morte de Bertolt Brecht.
Brecht havia feito no teatro aquilo que seu "gêmeo" letão, Eisenstein, havia aprontado no cinema. Ambos transformaram em "gesto" artístico as confusas e profusas equações sociais de seu tempo. Brecht e Eisenstein formulavam, cada um em sua área, um novo vocabulário cênico. Mas o que os dois tinham em comum? Se fizermos um cruzamento (arbitrário) entre eles, possivelmente chegaremos a um denominador comum: o encenador russo Wsewolod Meyerhold (1874-1940).
Foi Meyerhold quem trouxe a Revolução Industrial para o teatro. Seu conceito radical jogava no lixo, literalmente, o cartesianismo que predominava nos palcos da virada do século e fazia do espaço cênico um lugar tão ativo (e impessoal) quanto um engenho, uma fábrica. Meyerhold redimensionou o homem e seu eterno desejo de um desfecho feliz. Meyerhold transformou o texto numa partitura, aumentou o espaço físico de cena e diminuiu o tamanho do homem. Agrupou atores de formas estranhas, artificializou-lhe as falas e deu-lhe movimentos robóticos. Meyerhold enxergou, como ninguém, que o teatro tinha que ser um veículo ativo da modernidade, da era industrial, mecânica, e dava à luz a um princípio que iria mudar o curso da história do teatro: a biomecânica.
Se Brecht e Eisenstein, assim como Chaplin, Fritz Lang e tantos outros, usaram, abusaram e inverteram os princípios da biomecânica, alguns chegaram ao requinte de paralisá-la por completo. Bob Wilson exagerou o exercício rítmico e rápido de Meyerhold, impondo um tempo lento, lentíssimo a cada cena. Na prática, Wilson era o cruzamento ideal entre Brecht e Eisenstein. Seu senso de estática -frio, distante e calculadamente sedutor, como Brecht queria- predominava acima de qualquer coisa. O texto, na maioria das vezes propositalmente inaudível, era engolido pela música alta ou pela troca de cena tão rápida que parecia um filme de Eisenstein. Wilson, assim como seus predecessores, achou o "gesto" teatral para seu tempo.
Num dos seus primeiros espetáculos, "Death, Destruction in Detroit", Wilson previa com clarividência o nascimento do evento "multimídia" e usava tudo o que tinha direito. Pegou emprestado das fontes mais diversas e deixou claro que o teatro dos sucessores de Brecht estava chegando ao fim. Wilson caricaturou o tradicional gesto de "submissão" do ator trágico, encenando-o com animais. Foi ele o primeiro a usar a iluminação com a meticulosidade de um cinematógrafo em busca de seu foco.
Essa semana, curiosamente, fecha um ciclo. Bob Wilson estreará uma nova produção no "templo" fundado por Brecht, o Berliner Ensemble. O texto, "Ozeanflug" (Vôo sobre o Oceano), não foi escrito para o teatro e sim para o rádio e lida com o vôo histórico de Charles Lindbergh. Exatamente como quer a sua época, Wilson não encena dramas nem comédias. Suas encenações são fragmentos de personagens ou situações históricas e não há desfecho em seus espetáculos, pois Wilson eliminou de sua dramaturgia, o bem e o mal. "A estante não briga com a geladeira" é uma fala do texto de seu célebre "Einstein on the Beach".
Mas o que vai acontecer quando as luzes de "Ozeanflug" se apagarem e o público tiver ido embora do teatro? Qual "gesto" teatral fará a revolução do nosso mundo globalizado e biotecnológico? Qual será a postura do ator do futuro? Como será o seu corpo e qual será o som de sua voz? Será, de novo, um cochicho de Wilson, um barulho enigmático de Kantor ou será um renascimento da voz empostada do passado? O encenador que não estiver pensando e roendo as unhas com essas questões não está fazendo teatro.
Confesso que sinto um certo arrepio quando desligo o computador e a tela fica escura.


Gerald Thomas é diretor de teatro e dramaturgo.



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