São Paulo, domingo, 08 de abril de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ literatura
O caso do cavaleiro romancista O inglês Dick Francis, autor de best sellers policiais, conseguiu esconder por toda a vida seu duplo literário

por Fernando Savater

Se eu lhes disser que há algumas semanas faleceu aos 76 anos a senhora Mary Brenchley, vocês provavelmente acreditarão em mim, mas não se sentirão particularmente comovidos pela notícia. Nem sequer espero conseguir aumentar sua moderada consternação acrescentando que, meio século atrás, miss Brenchley se tornara a mulher de Dick Francis, o autor de tantos best sellers policiais. Mas, no caso estatisticamente provável de que, como tantos milhões de leitores, vocês alguma vez tenham passado bons momentos com um dos romances de Francis, deveriam derramar uma lágrima de gratidão ao se despedir dessa dama. Porque sua vida foi ocultamente literária e, durante várias décadas, participou de um terno e sigiloso complô, que incluía um cavalo que se portou pior do que o esperado e um jóquei que conseguiu o que ninguém esperaria dele.
Mas é melhor eu contar a história desde o início. Nascido há 80 anos, Dick Francis foi na juventude um notável cavaleiro em corridas de obstáculos, chegando até a ser proclamado, em 1954, campeão inglês de sua especialidade. Mas, apesar de suas várias tentativas, não conseguia realizar seu sonho mais desejado: ganhar o Grand National de Aintree, a popularíssima prova a que todos os anos milhões de pessoas assistem pela TV, mesmo que não ponham os pés num hipódromo durante toda a temporada. Mas, por fim, em 1956, quando foi escolhido para montar o magnífico Devon Loch, de propriedade da rainha-mãe, parecia que Francis tinha o prêmio ao alcance da mão.
Tudo correu bem no duro percurso, onde mais da metade dos participantes costuma cair: Devon Loch saltou com boa vantagem o último obstáculo do National e se aproximou da meta com ares de fácil vencedor. Então, sem nenhuma barreira à sua frente, deu um desajeitado pinote e se estatelou no chão.
Ninguém conseguiu explicar convincentemente o que lhe aconteceu: os mais rebuscados garantem que o que o derrubou estonteado foi a onda sonora provocada pelo clamor entusiasta do público ao ver um cavalo da rainha a ponto de ganhar pela primeira vez o National. O fato é que Dick Francis ficou sem a célebre vitória e, forçado pelas lesões sofridas em outras quedas, teve de abandonar as pistas pouco depois.
Foi então que aconteceu o segunda fato surpreendente desse conto verídico, mas agora com sinal favorável para Francis. Alguém lhe pediu que escrevesse sua autobiografia hípica, pois o desastre de Devon Loch o transformara numa espécie de celebridade (na realidade, ficou mais famoso do que se tivesse ganho a prova!).
Francis cumpriu a encomenda, e seu livro "The Sport of Queens" (O Esporte de Rainhas, ed. Pan, Reino Unido) teve uma boa acolhida. Animado por ela, dois anos mais tarde publicou "Dead Cert", um thriller ambientado no mundo hípico que ele conhecia melhor do que ninguém. Esse segundo livro também foi bem recebido, e, a partir desse momento, com regularidade anual, foi publicando uma série de romances de suspense, sempre com os mesmos ingredientes: o protagonista costuma ser um cavaleiro profissional ou amador, às vezes afastado das pistas por causa de alguma contusão, enfrentando todo tipo de gângsteres e vigaristas que pululam em torno dos hipódromos; uma mocinha ingênua, mas sexy, ajuda-o e se apaixona por ele; não faltam os simpáticos personagens secundários, as intrigas complexas e a violência bem dosada.
Os romances de Dick Francis tiveram um enorme sucesso e lideraram, ano após ano, as listas de mais vendidos, ombreando vantajosamente com os livros de Harold Robbins ou Stephen King. E mais: receberam o elogio de leitores tão ilustres como o romancista Kingsley Amis, o poeta Philip Larkin ou a própria rainha-mãe, que permaneceu fiel a seu cavaleiro em sua nova carreira, agora como romancista.
E justamente aqui está o mais estranho do caso: Dick Francis abandonou os estudos aos 15 anos e nunca mostrou nenhum interesse especial pela literatura nem por assuntos intelectuais. Mas seus romances, embora não possam ser confundidos com os de Thomas Mann ou Vargas Llosa, são bem construídos, narrados com decência. Como foi que ele conseguiu se transformar em um escritor tão famoso que hoje poucos se lembram que um dia foi jóquei?
Quem tinha a resposta, provavelmente, era Mary, sua fiel mulher de toda a vida, pouco afeita aos cavalos e muito aos livros, com uma boa educação em letras. Diga-se em defesa de Dick Francis que ele sempre quis que o nome da mulher aparecesse junto com o dele como autora de seus livros, ao que ela se negou rotundamente. Mas hoje poucos duvidam -ainda mais depois da publicação de uma biografia documentada até a indiscrição, de autoria de Graham Lord: "Dick Francis - A Racing Life" (ed. Little, Brown, Reino Unido)- que ela foi bem mais do que uma ocasional datilógrafa das obras do marido.
Às vezes essas coisas acontecem: Ellery Queen, outro famoso autor de romances policiais, era na realidade o pseudônimo escolhido por dois primos que escreviam em parceria. Sem dúvida o cavaleiro Dick Francis montou seus cavalos sozinho e também sozinho caiu de alguns deles; mas o romancista "Dick Francis" foi, na realidade, duas pessoas, que juntas eram muito mais que duas, como diz a canção. Agora a metade mais literária da equipe morreu, e não haverá mais romances de Dick Francis. O último se intitula "Shattered" (ed. Michael Joseph, Reino Unido) é dedicado justamente à rainha-mãe, a dona daquele Devon Loch que em Aintree certo dia tropeçou com o invisível, como mais cedo ou mais tarde acontecerá com todos nós.


Fernando Savater é filósofo espanhol, autor, entre outros, de "Ética como Amor-Próprio" (ed. Martins Fontes).
Tradução de Sergio Molina.


Texto Anterior: + lacanianas
Próximo Texto: + cinema: Pelas vielas de Havana
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.