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+ política
O Evangelho segundo Marcos
por Fernando Savater
Com o passar dos anos, adquiri
somente um traço da tão propalada sabedoria que vem com a
idade; além do mais, um traço
negativo, uma simples perda que talvez
nem sequer faça de mim uma pessoa
mais sábia, mas apenas menos idiota.
Consiste numa drástica redução de minhas opiniões sobre tudo o que não conheço de primeiríssima mão.
Três décadas atrás, nada do que era humano era para mim já não digo estranho,
mas nem ao menos um pouco obscuro,
por isso eu ostentava idéias claras sobre o
Vietnã (os dois), o peronismo, Lumumba, a Albânia, os bororos e a chegada do
homem à Lua. Conflitos entre árabes e
judeus em territórios bíblicos não encerravam para mim nenhum segredo, e eu
teria dado uma conferência sobre qualquer país da América do Sul para o mesmíssimo Che Guevara, se esse eminente
personagem caísse na besteira de me
consultar a respeito. Depois, como a árvore que vai perdendo folhas com a chegada do outono, minhas certezas inabaláveis foram me abandonando até me
deixar trêmulo de reticências, nua e
cruamente cético. Antes tudo era claro,
agora me parece claro que tudo pode ser
obscuro. Não ocultarei certa nostalgia
daquela época de ouro em que eu era taxativo sem escrúpulos ou competência.
Princípio de prudência
Agora mal
me atrevo a opinar sobre aquilo que vivo
e sofro diretamente. Por isso tenho um
pouco de inveja e muita desconfiança de
meus colegas intelectuais europeus e
suas claras certezas -sejam a favor ou
contra- sobre o subcomandante Marcos e o movimento zapatista. Para não
atolar por completo no pântano da dúvida, construí para mim um princípio de
prudência: não fazer no exterior o elogio
irrestrito daquilo de que não gosto de padecer em casa.
Por exemplo: como me assustaria ao
ver um grupo de encapuzados falar no
Parlamento de meu país, não dou pulos
de alegria nem considero um grande
avanço democrático o fato de que isso
ocorra no México. É possível que existam fortes razões para justificar semelhante procedimento (conheço esse país
há muitos anos e, sem muito esforço,
penso em várias muito plausíveis), mas
em todo caso não estou disposto a abrir
mão de meu direito ao receio nem ocultarei meu sincero desejo de que essa
mascarada deixe de ser necessária o mais
breve possível.
Tampouco acho que os zapatistas sejam a vanguarda que mostra o caminho
revolucionário do futuro, mas sim os indignados contemporâneos, a quem é negada a prosperidade de nosso presente.
Tenho muita simpatia por dom Emiliano Zapata, mas suspeito que o terceiro
milênio preferirá outros guias políticos.
Acabo de ler uma entrevista de Marcos
dada a Pilar del Río, uma jornalista que
sei confiável. Questionado sobre o EZLN
(Exército Zapatista de Libertação Nacional) e o ETA (movimento separatista
basco), o subcomandante, muito mais
jovem do que eu, responde, talvez por isso mesmo, com invejável desembaraço.
Esclarece, com razão, que seu grupo não
realizou ações contra objetivos civis nem
contra pessoas desarmadas, o que constitui uma enorme diferença a seu favor.
Mas em seguida se permite considerações que revelam uma notável desinformação. E agora estou falando de algo que
conheço tão bem quanto Marcos conhece a situação em Chiapas. Segundo Marcos, Aznar (e, antes dele, Felipe González) reduz as aspirações do povo basco às
bombas do ETA. E mais, ambos ignoraram o papel do ETA no final do franquismo. E pronuncia esta grande verdade:
"Não se pode reduzir um movimento de
aspirações históricas a um problema terrorista".
Etnicismo terrorista
Sabe esse bom
senhor do que está falando? Qual foi o
papel do ETA no final do franquismo,
além de servir de pretexto para a perpetuação de práticas repressivas que custaram a desaparecer com a democracia?
Conhece Marcos as instituições políticas
autonômicas, o reconhecimento cultural
e a independência fiscal de que os bascos
desfrutam na democracia espanhola, baseados em aspirações históricas nacionalistas não exatamente imunes à crítica?
Sabe ele como vivem hoje os dissidentes
não-nacionalistas -mais da metade da
população basca- sob a pressão infame
do etnicismo terrorista?
Quando sua interlocutora levanta essas
questões, Marcos encerra o assunto nestes termos: "Acho que é o povo basco
quem deve dizer "até aqui é suficiente".
Não cabe ao reclamado dizer "já te dei o
bastante". É quem reclama que deve dizer "pronto, já está bom'". Isso é válido
para qualquer reclamado diante de qualquer reclamação? Tanto para os israelenses como para os palestinos no Oriente
Médio, tanto para os católicos como para
os protestantes na Irlanda do Norte ou
para as reclamações dos neonazistas na
Alemanha? Acredita Marcos que seja fácil identificar "o povo basco" quando a
maioria dos cidadãos vive sob a ameaça
de assassinos "populares"? O mestre
Sherlock Holmes dizia que certos problemas exigem fumar três cachimbos para serem resolvidos. No que toca ao problema basco, receio que Marcos ainda
esteja tentando acender o primeiro.
Fernando Savater é filósofo espanhol, autor, entre outros, de "Ética como Amor-Próprio" (ed. Martins Fontes).
Tradução de Sergio Molina.
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