São Paulo, domingo, 08 de julho de 2001

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+ política

O Evangelho segundo Marcos

por Fernando Savater

Com o passar dos anos, adquiri somente um traço da tão propalada sabedoria que vem com a idade; além do mais, um traço negativo, uma simples perda que talvez nem sequer faça de mim uma pessoa mais sábia, mas apenas menos idiota. Consiste numa drástica redução de minhas opiniões sobre tudo o que não conheço de primeiríssima mão. Três décadas atrás, nada do que era humano era para mim já não digo estranho, mas nem ao menos um pouco obscuro, por isso eu ostentava idéias claras sobre o Vietnã (os dois), o peronismo, Lumumba, a Albânia, os bororos e a chegada do homem à Lua. Conflitos entre árabes e judeus em territórios bíblicos não encerravam para mim nenhum segredo, e eu teria dado uma conferência sobre qualquer país da América do Sul para o mesmíssimo Che Guevara, se esse eminente personagem caísse na besteira de me consultar a respeito. Depois, como a árvore que vai perdendo folhas com a chegada do outono, minhas certezas inabaláveis foram me abandonando até me deixar trêmulo de reticências, nua e cruamente cético. Antes tudo era claro, agora me parece claro que tudo pode ser obscuro. Não ocultarei certa nostalgia daquela época de ouro em que eu era taxativo sem escrúpulos ou competência.

Princípio de prudência
Agora mal me atrevo a opinar sobre aquilo que vivo e sofro diretamente. Por isso tenho um pouco de inveja e muita desconfiança de meus colegas intelectuais europeus e suas claras certezas -sejam a favor ou contra- sobre o subcomandante Marcos e o movimento zapatista. Para não atolar por completo no pântano da dúvida, construí para mim um princípio de prudência: não fazer no exterior o elogio irrestrito daquilo de que não gosto de padecer em casa. Por exemplo: como me assustaria ao ver um grupo de encapuzados falar no Parlamento de meu país, não dou pulos de alegria nem considero um grande avanço democrático o fato de que isso ocorra no México. É possível que existam fortes razões para justificar semelhante procedimento (conheço esse país há muitos anos e, sem muito esforço, penso em várias muito plausíveis), mas em todo caso não estou disposto a abrir mão de meu direito ao receio nem ocultarei meu sincero desejo de que essa mascarada deixe de ser necessária o mais breve possível. Tampouco acho que os zapatistas sejam a vanguarda que mostra o caminho revolucionário do futuro, mas sim os indignados contemporâneos, a quem é negada a prosperidade de nosso presente. Tenho muita simpatia por dom Emiliano Zapata, mas suspeito que o terceiro milênio preferirá outros guias políticos. Acabo de ler uma entrevista de Marcos dada a Pilar del Río, uma jornalista que sei confiável. Questionado sobre o EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional) e o ETA (movimento separatista basco), o subcomandante, muito mais jovem do que eu, responde, talvez por isso mesmo, com invejável desembaraço. Esclarece, com razão, que seu grupo não realizou ações contra objetivos civis nem contra pessoas desarmadas, o que constitui uma enorme diferença a seu favor. Mas em seguida se permite considerações que revelam uma notável desinformação. E agora estou falando de algo que conheço tão bem quanto Marcos conhece a situação em Chiapas. Segundo Marcos, Aznar (e, antes dele, Felipe González) reduz as aspirações do povo basco às bombas do ETA. E mais, ambos ignoraram o papel do ETA no final do franquismo. E pronuncia esta grande verdade: "Não se pode reduzir um movimento de aspirações históricas a um problema terrorista".

Etnicismo terrorista
Sabe esse bom senhor do que está falando? Qual foi o papel do ETA no final do franquismo, além de servir de pretexto para a perpetuação de práticas repressivas que custaram a desaparecer com a democracia? Conhece Marcos as instituições políticas autonômicas, o reconhecimento cultural e a independência fiscal de que os bascos desfrutam na democracia espanhola, baseados em aspirações históricas nacionalistas não exatamente imunes à crítica? Sabe ele como vivem hoje os dissidentes não-nacionalistas -mais da metade da população basca- sob a pressão infame do etnicismo terrorista?
Quando sua interlocutora levanta essas questões, Marcos encerra o assunto nestes termos: "Acho que é o povo basco quem deve dizer "até aqui é suficiente". Não cabe ao reclamado dizer "já te dei o bastante". É quem reclama que deve dizer "pronto, já está bom'". Isso é válido para qualquer reclamado diante de qualquer reclamação? Tanto para os israelenses como para os palestinos no Oriente Médio, tanto para os católicos como para os protestantes na Irlanda do Norte ou para as reclamações dos neonazistas na Alemanha? Acredita Marcos que seja fácil identificar "o povo basco" quando a maioria dos cidadãos vive sob a ameaça de assassinos "populares"? O mestre Sherlock Holmes dizia que certos problemas exigem fumar três cachimbos para serem resolvidos. No que toca ao problema basco, receio que Marcos ainda esteja tentando acender o primeiro.


Fernando Savater é filósofo espanhol, autor, entre outros, de "Ética como Amor-Próprio" (ed. Martins Fontes).
Tradução de Sergio Molina.



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