São Paulo, domingo, 08 de julho de 2001

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+ moda

Exposição em Nova York reúne 80 trajes de gala usados por um dos grandes mitos do século 20

A roupagem de Jackie Kennedy

Walnice Nogueira Galvão
especial para a Folha

A alta-costura viu-se admitida nas instituições que preservam as obras do passado há mais ou menos duas décadas. O fato ocorreu quando o "prêt-à-porter" a descartou, tornando-a obsoleta, portanto coisa de museu. Para abrigar seus artigos únicos, cheios de aura, resgatando-os da avalanche provinda da linha de montagem, criou-se em Paris o museu Galliéra, estritamente dedicado à especialidade, e em Nova York o Metropolitan inaugurou uma ala designada "The Costume Institute". No momento, a ala tem-se revelado acanhada para conter a visitação pública, extravasando para outra mais vasta em atendimento ao afã geral de conhecer a indumentária da mais elegante primeira-dama que o país já teve, Jacqueline Kennedy. Lá estão 80 de seus trajes de gala, que usava em embaixadas oficiais e países estrangeiros ou então quando recebia chefes de Estado na Casa Branca. Seu costureiro exclusivo no período, o americano Oleg Cassini, mais tarde capitalizaria o privilégio escrevendo "A Thousand Days of Magic - Dressing Jacqueline Kennedy for the White House" (Mil Dias de Mágica - Vestindo Jacqueline Kennedy para a Casa Branca, ed. Rizzoli, EUA). Entre outras indiscrições, o costureiro, uma celebridade do café-society hollywoodiano que se casou com lindas atrizes, informa que o sogro, Joseph Kennedy, subscreveu as contas das 300 peças fornecidas. Todavia Jacqueline abria exceções a esse monopólio, como quando jantou no Elysée com Charles de Gaulle portando, num gesto de cortesia (e para deixar claro que não era provinciana), um vestido de noite francês, encomendado a Hubert de Givenchy. A exposição -que vai até o dia 29-, como era de prever, está fazendo estardalhaço e atraindo hordas de turistas. As roupas ora emprestadas ao Metropolitan foram doadas ao John F. Kennedy Library and Museum, de Boston, consoante o ritual nativo de erigir um museu para guardar o acervo de cada presidente, visando à conservação de seus objetos de uso pessoal, documentos, papéis oficiais. A primeira-dama ficou renomada por seu luxo e bom gosto. Sob sua instigação, a Casa Branca acolheu, única vez na história, escritores, artistas, intelectuais, tendo um papel mais relevante que de hábito no patrocínio das artes e das atividades do espírito. O catálogo lembra seu envolvimento com o Metropolitan em várias oportunidades, em especial como doadora para o Costume Institute. Duas das façanhas de Jacqueline Kennedy na área cultural são particularmente memoráveis. Uma delas foi sua iniciativa, liderança e imposição de um gosto individual nos trabalhos da reforma arquitetônica e decorativa de interiores que se executaram na Casa Branca durante a gestão do marido. A segunda ilustra sua alçada cosmopolita. Nos anos 50, desenrolou-se uma campanha internacional para salvar o templo de Abu Simbel, no sul do Egito, ameaçado pelas águas da represa de Assuã, então em construção. O templo de Ramsés 2º, escavado na rocha onde foi inteiramente construído por dentro, tem como sentinelas quatro colossos representando o faraó e sua mulher, bem como seus duplos, um casal de deuses. Uma das mais notáveis edificações desse legado em que tesouros não faltam bem merece o título de patrimônio da humanidade. Graças à contribuição de várias nações, em recursos financeiros e ajuda técnica, o templo foi desmontado e transportado para local próximo, ficando a salvo para deleite das gerações a vir.

Ídolo caído
Tais contribuições foram recompensadas por antiguidades preciosas oferecidas pelo Egito. Coube a Jacqueline Kennedy ir até lá e escolher pessoalmente uma para seu país, tendo-se decidido pelo gracioso templo de Dendur, desde então um dos carros-chefes da ala egípcia do Metropolitan, uma das melhores do mundo.
Encontram-se na mostra mementos de seu comando da remodelação da Casa Branca bem como os acessórios adequados às ocasiões formais em que usou os trajes de gala. Podem-se admirar a sofisticada simplicidade das linhas e a preciosidade fosca ou opaca, jamais brilhante, dos materiais lã, seda, renda: tudo tendendo à depuração e à sobriedade. Consta que ela preferia o estilo de Balenciaga, de cuja casa Givenchy foi herdeiro e sucessor, estilo que de modo idêntico predominava no que selecionou da grife de Oleg Cassini. Para quem assiste a filmes velhos pela televisão, a referência é Audrey Hepburn, cujo modista predileto era o mesmo Givenchy, que a vestiu em várias produções. Nunca se tinha visto antes nem nunca se viu depois uma mulher de presidente dos Estados Unidos tão elegante, cultivada e com tal traquejo social. Influenciaria o visual do sexo feminino, para quem constituía padrão, pelo planeta afora.
A síndrome de ídolo caído atingiu a ex-primeira-dama quando se casou com Onassis, perdendo de uma hora para outra sua auréola de viúva-mártir e adicionando mais um trauma ao regicídio. A opinião pública americana comportou-se como marido traído. À época, era possivelmente a mulher mais cobiçada do mundo e soube vender-se caro. Os termos de seu contrato matrimonial causaram escândalo ao serem revelados, pois estipulavam milhões de dólares em caso de divórcio e como mesada para vestir-se. Entretanto, quando o casamento chegou ao fim, o favor do público foi-lhe novamente concedido.
E, como se vê até pelo título da exposição, ela voltou a ser chamada de Jacqueline Kennedy, perdendo a alcunha pejorativa, que durante muito tempo atraíra, de Jackie O.: o pejorativo não estava no apelido ("Jack e Jackie" designara o casal presidencial), mas na abreviatura do sobrenome. Constatou-se então o quanto Jacqueline era engrenagem fundamental da "mística Kennedy".
Em lição que aprendemos com Gilda de Mello e Souza em "O Espírito das Roupas" (de 1952) reiterada por Roland Barthes no "Sistema da Moda" (de 1967), podemos ler na vestimenta a leitura que ela própria suscita e está querendo comunicar em clave semiótica.
As toaletes de Jacqueline, despojadas e distintas, enfatizam tanto a pureza das linhas retas ou no máximo drapeadas -quanto ao caimento, enquanto as de outro ícone da moda, a princesa Diana, se tornam com frequência sobrecarregadas, oferecendo por vezes signos conflitantes ou superpostos. Por essa coleção dá para ver que perto de Jacqueline Kennedy, adepta do "less is more", mesmo a tão gabada elegância da princesa Diana assentava mais a uma "mídia star" que a uma grande dama.


Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP e autora de "Folha Explica Guimarães Rosa" (Publifolha), entre outros.



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