São Paulo, domingo, 08 de julho de 2001

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Avanço crescente do capitalismo desde a Segunda Guerra Mundial restringiu potencial de inovação dos designers


design em colete de aço

Ana Luísa Escorel
especial para a Folha

Talvez fizesse sentido tentar refletir sobre algumas das formas assumidas pelo exercício do design no Brasil. Mas como chegar lá sem, antes, nos entendermos acerca da essência da atividade? E, mesmo concordando em que os empenhos classificatórios costumam ser áridos e desinteressantes, como avançar na compreensão de um dado terreno sem defini-lo com clareza, sem situá-lo? Nesta tentativa retomamos o tema até porque, em nosso país, têm sido constantes as afirmações de que o design pressupõe uma prática que se explica mal e cujo campo não se delimita com nitidez. Essa imprecisão costuma esfumaçar contornos que, no entanto, seria essencial preservar, dificultando o entendimento da natureza e do âmbito do ofício. Em meio a tal fluidez, é fácil entender por que os profissionais da área têm transitado com dificuldade, pisando um chão sem dono onde leigos legislam com desenvoltura e ditam normas sobre o que desconhecem. Onde o oportunismo vive fincando suas estacas e os setores que deveriam usar conscientemente os serviços do profissional especializado e comentar seu desempenho, como a empresa e a imprensa, por falta de conhecimento e trato com a atividade, volta e meia provocam verdadeiros desastres, contribuindo para salgar ainda mais um solo inóspito, no qual o design brasileiro tem encontrado dificuldades para fazer germinar suas sementes. O termo inglês "design" significa projeto. Assim como os espanhóis, que também possuem duas palavras próximas para definir atividades diferentes, os ingleses contam em seu repertório linguístico com "design", para traduzir a noção de projeto, e "drawing", a de desenho. Para os espanhóis o conceito de projeto está subtendido na palavra "diseño", e o de desenho, na palavra "dibujo". Em português, desenho equivale ao "drawing" inglês e ao "dibujo" espanhol, ao passo que projeto, respectivamente, a "design" e "diseño". Não possuímos, como os ingleses e os espanhóis, termos semelhantes, gráfica e eufonicamente, que, associados ao mesmo universo, possuam variações de sentido dentro de seu campo. Temos, de um lado, a palavra desenho, que, entendida como meio de representação, remete ao campo do traço livre e está comprometida com a expressão individual de um sentimento, com uma visão de mundo particular; de outro, a palavra projeto, que define uma intenção precisa, a ser desenvolvida e executada no âmbito de limites determinados a priori, econômica, tecnológica, culturalmente. No entanto projeto também é a palavra que exprime a forma de expressão de profissionais que atuam em áreas diferentes da nossa, como os arquitetos e os engenheiros. Sendo assim, o termo projeto, isoladamente, não identifica o que é particular no trabalho do designer. Por outro lado, se acrescentarmos a projeto a palavra industrial, passando a ter projeto industrial, continuaremos afastados daquilo que nos é peculiar, já que, no Brasil, esses nomes foram como que apropriados pelos desenhistas técnicos e pelos engenheiros, remetendo a áreas específicas de seus respectivos campos. Diante desses impedimentos, no nosso e em um número crescente de países, o vocábulo "design" passou a identificar desenho industrial ou "industrial design", desde o final do século 19 e princípio do século 20.

Hegemonia dos EUA
Colaborando para a adoção universal do termo atuou decisivamente a crescente hegemonia econômica, política e cultural que os Estados Unidos passaram a exercer sobre o mundo, a partir da Segunda Guerra Mundial, fato que alçou o inglês à categoria de código universal. Registre-se também que, mesmo antes da industrialização, em países de língua inglesa a palavra "design" era utilizada para definir qualquer atividade artesanal que implicasse projeto, ou seja, intenção a ser formulada, desenvolvida e executada no contexto de condições precisas, num campo tecnológico definido. De fato o vocábulo "design" pressupõe um conjunto de ações organizadas em etapas que se encadeiam, com o objetivo de construir um determinado produto a partir de algum tipo de planejamento. Vem daí a naturalidade com que os povos de língua inglesa até hoje associam "design" a atividades artesanais, já que elas podem perfeitamente estar inseridas em processos nos quais essa sucessão de ações e limites técnicos se repete a cada encomenda, sob a diretriz de um plano: atividades como "architectural design", "interior design", "garden design" e outras. Nesses países, com a chegada e a disseminação das tecnologias para seriação industrial em meados do século 19, se acrescentou ao termo em uso um outro, que viria a exprimir o reordenamento do conceito de fabricação de produtos, até aquele momento, realizada em bases predominantemente artesanais: juntou-se a "design" o termo "industrial". Desse modo, "industrial design" passou a identificar o conjunto de artefatos e informações produzidos industrialmente, por meio da reprodução seriada de matrizes, em média ou larga escala. Ou seja, os ingleses, com o pragmatismo e a objetividade que lhes têm sido peculiares, juntaram numa só expressão duas noções essenciais para que se pudesse entender e definir a natureza dessa nova profissão: uniram o conceito de planejamento, controle, domínio da linguagem e dos processos ao de série reproduzida mecanicamente. Porém, como nem sempre naqueles países se junta "industrial" a "design" para identificar o universo da tecnologia industrial, se instalou lá uma superposição de conceitos diferentes nos limites da mesma palavra: "design" passou a traduzir ora processo artesanal, ora processo industrial de feitura de produtos. No entanto para nós, brasileiros, e para a maioria das economias industrializadas contemporâneas, design sempre subentendeu projeto industrial ou processo de que resultam produtos industriais. Não foi necessário acrescentar-lhe o termo industrial para que, por associação imediata, se soubesse que quando se usa a palavra design, o que está referido é o campo do design industrial. Daí o extraordinário equívoco conceitual de exposições que, no Brasil, se organizam em torno de temas que aludem aos 500 anos da atividade. Há 500 anos não existia reprodução seriada de matrizes por tecnologias industriais em nenhum lugar do planeta. Além do mais, nós não somos ingleses e, portanto, para nós design não é uma forma de projeto que possa se encaixar no domínio do artesanato, conforme procuramos mostrar mais acima.

Design e artesanato
Como então dar a entender que o design está instalado aqui desde o tempo do Descobrimento? Flecha de índio é design? Cesto de palha de babaçu é design? Colar de pedacinho de casca de coco e osso de macaco é design? Cerâmica do vale do Jequitinhonha é design? Renda de bilro é design? Tecido feito em tear manual é design? Não. Nada disso é design. É tudo artesanato. São artefatos concebidos e elaborados em sociedades pré-industriais, indispensáveis à vida cotidiana, à sociabilidade e aos valores culturais de determinados grupos, num dado momento histórico, diferente do nosso. Agora, se, no caso do Brasil, os designers quiserem eleger esses objetos como modelos, campos de reflexão para o projeto de produtos industriais que, partindo de uma experiência estética equivalente, sejam redimensionados pela tecnologia dos modernos meios de reprodução, ótimo. Mesmo porque uma coisa é a apropriação de um dado repertório de base autóctone e seu uso como referência para o design que se quer fazer no Brasil; outra, a dificuldade de enunciar conceitos e diferenciar modos e tecnologias de fabricação.
Insistindo: uma das chaves para a compreensão do design se encontra na distância que o separa dos ofícios de base artesanal. Enquanto isso não for entendido, e aqui no Brasil a resistência tem sido enorme, continuaremos a vê-lo confundido com atividades com as quais nada tem a ver, o que não apenas entrava o aprimoramento de suas linguagens -a do design gráfico e a do design de produto-, mas também retarda os benefícios que nossa sociedade poderia obter se utilizasse mais sistematicamente seu potencial. Aliás, seria importante que se sedimentasse a consciência da particularidade do design, definindo o formato da atividade de uma vez por todas.
Mesmo porque o design fundou uma estética própria, derivada de sua vinculação com as tecnologias industriais e pós-industriais para reprodução seriada de matrizes, estética essa que já se consolidou e se expandiu, definindo um largo espectro de influências nas mais diferentes áreas e formas de expressão: na moda, na arquitetura, nas artes plásticas, na cenografia etc.
Como qualquer forma de expressão, o design sofre influência do meio em que atua, refletindo-lhe as dominantes. Por isso, não se pode esperar dele nem uma linha contínua de desenvolvimento nem uma ênfase uniforme na combinação dos recursos de linguagem que lhe são próprios. O peso dos elementos constitutivos de seu discurso vai variar sempre, estejam em questão o design gráfico ou o design de produto, sendo definido pelos interesses econômicos, pelo potencial tecnológico e pelas tendências estéticas em alta, nos diferentes períodos históricos. Haverá épocas em que a articulação das unidades da linguagem vai privilegiar os dados referentes à inquietação expressiva, por exemplo, em outras, dados que traduzem compromisso com o funcional, com a venda ou com a novidade tecnológica e assim por diante.
Com efeito, logo a partir do surgimento do design, em meados do século 19, os países europeus mais desenvolvidos naquele período o incorporaram ao contexto de sua cultura e de seus respectivos estágios tecnológicos. O design era, então, muito ligado à arquitetura e à sua ideologia. Tanto que, de 1914 a 60, o melhor do design europeu tendia a reproduzir, em seu campo, o mesmo compromisso democrático assumido pela arquitetura em seu campo. O foco era o homem a ser construído por uma nova ordem política, econômica e social, homem esse cujas necessidades cotidianas de conforto, lazer e informação o design e a arquitetura se propunham a suprir, revolucionando velhas formas e velhos hábitos, dissonantes no contexto da sociedade que estava por vir.
Foi no esteio desse impulso que o design se fixou no Brasil a partir de 1963, com a fundação da Esdi (Escola Superior de Desenho Industrial), no Rio. Sua sistematização em nosso país, portanto, parte da tradição européia forjada a partir dos últimos grandes movimentos estéticos do século 19 e dos primeiros do século 20: art nouveau, cubismo, futurismo, construtivismo, De Stijl, funcionalismo -que por muito tempo abrigaram a arquitetura e as artes plásticas.
Tendo como objeto o homem moldado por uma sociedade igualitária, o design, de meados do século 19 a meados do século 20, foi praticado, em sua vertente mais significativa, por uma constelação de profissionais de elite, cujo compromisso com os valores da cultura e com o aprimoramento da linguagem parecia pesar tanto quanto o empenho na luta por formas de vida mais justas e mais humanas, nas quais as ofertas de bem-estar e a melhora dos níveis de informação representassem metas a serem alcançadas. Porém, a partir da vitória dos Aliados, em 1945, a cultura do mundo inteiro passou a ser moldada pelos cacoetes dos americanos.


Os designers se vêem compelidos a usar sua capacidade de invenção para mover uma romaria monocórdica cujo culto gravita na órbita do proveito financeiro


O design de maneira geral, e o design gráfico em particular, começou a refletir na disposição interna dos elementos que compõem sua linguagem uma tendência a buscar mais a cumplicidade das camadas da psique predispostas à sedução fácil do que a daquelas forjadas na reflexão e na sensibilidade. Nessa linha, as coisas vieram vindo num tal crescendo que, atualmente, o padrão passou a ser dado pela ênfase nos elementos do projeto que aguçam as dinâmicas da venda.
De fato é claro que, para as linhas de forças que definem o mercado, tal como se encontra organizado nos dias que correm, importa pouco a correção técnica e conceitual que um dado produto possa oferecer, bem como seu grau de ambiguidade estética. Importa muito, por outro lado, seu poder persuasivo, sua capacidade de mobilizar mecanismos psicológicos que induzam a uma fruição superficial, pouco comprometida com os desafios próprios de qualquer inovação.
Isso é visível no rumo imposto pela economia capitalista ao trajeto das mensagens fabricadas para reprodução em larga escala: sempre que há grandes interesses econômicos envolvidos, a cota de informação do produto tende a cair. Não é por outra razão que o cinema de autor foi praticamente esmagado pela grande indústria, nos últimos 30 anos, ou que a música popular de qualidade tem travado uma luta ferrenha contra a cultura do enlatado, em qualquer latitude, batendo-se por espaço nas rádios, nas gravadoras, nos canais de televisão, nas páginas dos grandes jornais e revistas, tentando romper o cerco dessa solidariedade obscurantista que une o ruim ao péssimo e cujo compromisso é com o desempenho do caixa.
Sabemos todos que os processos industriais para reprodução seriada de matrizes costumam ser caros, assim como os expedientes necessários para o lançamento de produtos no mercado.
Consequentemente os interesses financeiros envolvidos se mostram preponderantes. Como na lógica do capitalismo o montante despendido na fabricação e na divulgação precisa retornar, acrescido do lucro, para que o investimento se justifique, as aventuras com a linguagem acabam ficando restritas a umas poucas ocasiões, seja no design, no cinema, na música ou em qualquer outro campo do que poderia ser identificado como arte industrial, já que os riscos com o capital devem ser evitados a qualquer custo. Mesmo que isso signifique asfixia da invenção.
Ou seja, na medida em que se multiplicam os recursos financeiros destinados às etapas de fabricação e de lançamento do produto, se estreita a faixa de liberdade do designer na condição de criador. A responsabilidade com os custos do processo aumenta, passando a interferir na estrutura profunda do projeto, tanto em seus aspectos conceituais quanto formais. Reduzido o campo para o exercício estético, se decide que o designer deve atuar como um técnico disciplinado, a serviço do capital. Nesse quadro, a cada ano aumenta a potência com que o marketing envolve o design em sua malha de aço, forçando uma tal indiferenciação entre as duas atividades que, no Brasil, já temos vários cursos superiores de design estruturados em torno da valorização da atividade como instrumento de venda, não como instrumento de projeto.
Mas os tempos são outros. Com a afirmação unívoca do sistema capitalista, com a mundialização da economia e o aumento do público comprador, as tiragens dos produtos passaram a atingir cifras inimagináveis, ocorrendo como que um deslocamento de expectativas em relação ao papel do designer, no processo do projeto de produtos. Atualmente, e não apenas em nosso país, a atividade se delineia quase como ferramenta de apoio ao marketing, na busca desenfreada por novos e maiores mercados. No turbilhão dessa conjuntura os designers têm tido que tomar suas decisões éticas e estéticas e, apesar de na origem se terem organizado profissionalmente para colaborar com a construção de uma ordem menos injusta, se vêem agora compelidos a usar sua metodologia e capacidade de invenção para ajudar a mover uma romaria monocórdica cujo culto gravita na órbita do proveito financeiro.
Nem tudo, no entanto, são perdas. Nem seria justo desconhecer que, mesmo com o farol voltado para a via do compromisso quase maníaco com a venda, o design, tanto gráfico quanto de produto, continua preservando bravos redutos de resistência nos quais persiste a busca da invenção e o respeito pelo usuário. O designer é um profissional condenado ao contemporâneo. Sua prática só poderá ser compreendida pela sociedade de seu tempo, no âmbito dessa circunstância. Como é da aderência permanente à inovação tecnológica que tira muito de sua força, poucos estarão aptos, como ele, a uma sintonia tão estreita com questões características da vida moderna e, em decorrência, preparados para enfrentá-las.
Sendo assim, é importante que encontre meios para utilizar essas aptidões de forma que, livre das amarras impostas pela obsessão com a venda, possa atuar tanto como projetista quanto como planejador, tentando retomar uma trajetória interrompida, forjada no compromisso com seu semelhante e suas causas coletivas essenciais.


Ana Luísa Escorel é designer e integra a equipe de projeto do escritório 19 Design. É autora de "O Efeito Multiplicador do Design" (ed. Senac).



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