São Paulo, domingo, 08 de julho de 2001

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+ trabalho

Programas do tipo "qualidade total" são instrumentalizados pelo capital para reduzir a vida útil de produtos e do próprio emprego

A desmedida empresarial

Ricardo Antunes
especial para a Folha

Estamos vivenciando a plenitude da sociedade involucral, geradora do descartável e do supérfluo. Foi contra ela que os recentes movimentos sociais urbanos estamparam sua repulsa e seu descontentamento, cujo significado parece cristalino: a sociedade do consumo destrutivo e supérfluo, ao mesmo tempo em que cria necessidades múltiplas de consumo fetichizado e estranhado, impede que os verdadeiros produtores da riqueza social participem até mesmo do universo (restrito e manipulado) do consumo. Parece que os homens e mulheres sem-trabalho, os despossuídos do campo e das cidades, os assalariados precarizados -as chamadas "classes perigosas"- começam a questionar a lógica que preside a sociedade atual. Vieram para mostrar à sociedade sua injustiça, desigualdade, iniquidade e superfluidade. E para (re)conquistar seu sentido de humanidade e de dignidade. Algo similar vem ocorrendo em tantas partes do mundo. Desde a explosão de Seattle (EUA) contra a Organização Mundial do Comércio, "protestos antiglobalização e anticapitalismo têm se tornado rotina durante encontros intergovernamentais", conforme noticiou "The Guardian" (em 8/12/2000, pág. 6). Essa destrutividade se expressa também quando descarta e torna supérflua uma enorme parcela da força humana mundial que trabalha, da qual cerca de um terço se encontra ou realizando trabalhos parciais, precarizados, ou desempregada. Isso porque o capital necessita cada vez menos de trabalho estável e cada vez mais de trabalho "part-time", terceirizado, que se encontra em enorme crescimento no mundo produtivo industrial e de serviços. Como o capital não pode se reproduzir sem alguma forma de interação entre trabalho vivo e trabalho morto, se eleva a produtividade do trabalho ao limite, intensificando os mecanismos de extração do sobretrabalho em tempo cada vez menor, por meio da ampliação do trabalho morto corporificado no maquinário técnico-científico, traços esses constitutivos do processo de "liofilização organizativa" da "empresa enxuta", como sugestivamente denominou o sociólogo espanhol Juan J. Castillo. Aqui vale uma similitude entre o descarte e a superfluidade do trabalho e o descarte e a superfluidade da produção em geral, presente por exemplo na questão da chamada "qualidade total". Como pude desenvolver mais longamente em "Os Sentidos do Trabalho", na presente fase de intensificação da taxa de utilização decrescente do valor de uso das mercadorias, a falácia da qualidade se torna evidente: quanto mais "qualidade total" os produtos alegam ter, menor é o seu tempo de duração. A necessidade imperiosa de reduzir o tempo de vida útil dos produtos, visando a aumentar a velocidade do ciclo reprodutivo do capital, faz com que a "qualidade total" seja, na maior parte das vezes, o invólucro, a aparência ou o aprimoramento do supérfluo, uma vez que os produtos devem durar cada vez menos para que tenham uma reposição ágil no mercado. A "qualidade total", por isso, deve se adequar ao sistema de metabolismo sociorreprodutivo do capital, afetando desse modo tanto a produção de bens e serviços como as instalações, maquinários e a própria força humana de trabalho.

Valor de uso decrescente
Desse modo, o apregoado desenvolvimento dos processos de "qualidade total" converte-se na expressão fenomênica, involucral, aparente e supérflua de um mecanismo produtivo gerador do descartável e do supérfluo, condição para a reprodução ampliada do capital e seus imperativos expansionistas e destrutivos.
Não falamos aqui somente do fast food (do qual o Mc Donald's é exemplar), a marca da sociedade do "entertainment", que depeja toneladas de descartáveis no lixo, após um lanche produzido sobre o ritmo seriado e fordizado. Poderíamos lembrar também do tempo médio de vida útil estimada para os automóveis mundiais, cuja durabilidade é cada vez mais reduzida. Ou ainda a indústria de computadores, expressão dessa tendência depreciativa e decrescente do valor de uso das mercadorias, onde um sistema de softwares se torna obsoleto e desatualizado em tempo bastante reduzido, obrigando o consumidor a adquirir a nova versão.


O apregoado desenvolvimento dos processos de "qualidade total" converte-se em um mecanismo produtivo gerador do descartável e do supérfluo


As empresas, na competitividade travada entre elas, visando a reduzir o tempo entre produção e consumo, incentivam essa tendência restritiva do valor de uso das mercadorias. Precisando acompanhar a competitividade existente em seu ramo produtivo, os capitais desencadeiam uma lógica que se intensifica crescentemente, da qual a "qualidade total" é um mecanismo intrínseco e funcional. Com a redução dos ciclos de vida útil dos produtos, os capitais não têm outra opção senão "inovar" ou correr o risco de serem ultrapassados pelas empresas concorrentes (1).
Como o capital tem uma tendência expansionista intrínseca ao seu sistema produtivo, a "qualidade total" deve tornar-se inteiramente compatível com a lógica da produção supérflua e destrutiva. Por isso o capitalismo, ao mesmo tempo em que reitera sua suposta capacidade de elevação da "qualidade total", se converte de fato em inimigo da durabilidade dos produtos, desencorajando e mesmo inviabilizando práticas produtivas orientadas para as reais necessidades humano-sociais (2). Quanto mais "qualidade" as mercadorias aparentam (e aqui novamente a aparência faz a diferença), menor tempo de duração elas devem efetivamente conter.
Claro que aqui não se está questionando o que seria um efetivo avanço técnico-científico, quando pautado pelos reais imperativos humano-societais (o que não é o caso da lógica contemporânea), mas sim a engrenagem de um sistema de metabolismo social do capital que converte em descartável e supérfluo tudo o que poderia ser preservado e reorientado tanto para o atendimento efetivo dos valores de uso sociais quanto para evitar uma destruição incontrolável e degradante da natureza, do ambiente, da relação metabólica entre homem e natureza.
Estamos presenciando o afloramento de um desses momentos de rebeldia, das lutas e ações que emergem das forças sociais do trabalho e das vítimas mais penalizadas desse sistema destrutivo e excludente. O sensível filme "Pão e Rosas", de Ken Loach, é uma feliz expressão, no plano estético, desse momento de rebeldia. Se parte dos anos 70 e 80 talvez possa ser vista como anos que mesclaram (contraditoriamente) fascínio, resignação e desencanto, as décadas seguintes, a de 90 e a que agora se inicia, por certo serão muito diferentes.
O que pode possibilitar a retomada do que Goethe, em "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", assim sintetizou: "Tão propenso anda o homem a se dedicar ao que há de mais vulgar, com tanta facilidade se lhe embotam o espírito e os sentidos para as impressões do belo e do perfeito, que por todos os meios deveríamos conservar em nós essa faculdade de sentir.
Pois não há quem possa passar completamente sem um prazer como esse, e só a falta de costume de desfrutar algo de bom é a causa de muitos homens encontrarem prazer no frívolo e no insulto, contanto que seja novo. Deveríamos diariamente ouvir ao menos uma pequena canção, ler um belo poema, admirar um quadro magnífico e, se possível, pronunciar algumas palavras sensatas".

Notas 1. Conforme Martin Kenney, "Value Creation in the Late Twentieth Century - The Rise of the Knowledge Worker", em Davis, Hirschl e Stack, "Cutting Edge", Verso, Londres/Nova York, 1997, pág. 92;
2. Ver István Mészáros, "Beyond Capital", Merlin Press, Londres, 1995, caps. 15 e 16.

Ricardo Antunes é professor de sociologia do trabalho no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Os Sentidos do Trabalho" (ed. Boitempo).



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