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BRASIL 500 D.C.
É hora de os brasileiros fazerem a autocrítica de sua sociedade injusta,
desigual e violenta
500 anos de ilusão
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
especial para a Folha
Há cem anos, por ocasião do
quarto centenário da chegada dos
conquistadores portugueses a
Pindorama, o conde de Afonso
Celso publicou o "Por Que me
Ufano de Meu País". O livro, dedicado aos filhos, visava a despertar
neles e, por extensão, em toda a
juventude brasileira, um ilimitado amor à pátria. O lema "right or
wrong, my country", em inglês
mesmo, foi colocado na primeira
página, logo abaixo do título. Êxito editorial, o livro e, mais especificamente, a palavra ufanismo
passaram a denotar o patriotismo
acrítico, ingênuo, incondicional.
Por que deveriam os brasileiros
ufanar-se de seu país? O conde
apresentou 11 motivos para a superioridade de nosso país em relação aos outros. Os cinco primeiros retomavam a tradição edênica
inaugurada por Pedro Álvares
Cabral, continuada pelo autor dos
"Diálogos das Grandezas do Brasil" e mantida até hoje: a grandeza
territorial, a beleza da terra (a cachoeira de Paulo Afonso, o Amazonas, a baía do Rio de Janeiro, a
floresta virgem), as riquezas naturais, a amenidade do clima e a ausência de calamidades naturais.
Os outros tinham a ver com o
caráter do povo (bom, pacífico,
caridoso, ordeiro, sensível, sem
preconceitos), as relações cavalheirescas e generosas com os outros países e a história do país. O
brasileiro, segundo o conde, devia
ufanar-se por morar em um país
privilegiado, dom da providência,
superior a todos os outros. O que
ainda não tínhamos, poderíamos
conquistar, transformando-nos
eventualmente na primeira potência do orbe.
Cem anos depois do livro do
conde, às vésperas do quinto centenário do evento que entre nós
muitos ainda chamam de descoberta, já pululam os novos ufanistas, oficiais ou semi-oficiais, ingênuos ou espertos, beneficiados todos pela eficiência dos modernos
meios de comunicação. A onda
do oba-oba ufano-turístico só fará aumentar nos próximos meses.
Convém, por isso, retomar os motivos de ufanismo do conde e examinar sua pertinência cem anos
depois.
Alguns deles continham inverdades, como a afirmação de termos sido o primeiro país autônomo da América Latina ou de nunca termos sido derrotados (o conde esqueceu-se da derrota de Ituzaingó, que acabou com a pretensão de incorporar o Uruguai a
nosso território). Outros continham tolices, como dizer que desfrutávamos liberdades desconhecidas em outras nações (não fosse
o conde muito católico, poder-se-ia talvez pensar que se referia à liberdade de pecar). Ou afirmar
que os ex-escravos se incorporaram à população em perfeito pé
de igualdade.
Quanto a considerar a natureza
como motivo de orgulho, poderíamos responder com Machado
de Assis que ela não é obra nossa e
que, portanto, não nos cabe dela
nos orgulharmos. Mas temos que
acrescentar que, se não fizemos a
natureza, muito a desfizemos.
Nossa grandeza física continua
intacta, apesar do receio de alguns
do que chamam de cobiça internacional sobre a Amazônia. Também ainda não temos terremotos,
vulcões e furacões. Mas as belezas
naturais, o paraíso em que Deus
nos colocou, já foram quase todas
destruídas: as florestas foram e
continuam a ser queimadas, as
praias, as baías (a da Guanabara à
frente), as suaves brisas e os céus
foram poluídos. Só mesmo os milagreiros autores do hino encomendado pelo ministro do Esporte e Turismo para o quinto centenário conseguem beber água fresca nas cacimbas do sertão. As riquezas naturais, por sua vez, foram vítimas de predação incansável e ininterrupta.
A bondade, caridade e doçura
de nosso caráter não impediram
que construíssemos uma das sociedades mais desiguais e injustas
do globo, na qual os descendentes
dos escravos, contradizendo a
afirmação do conde sobre as condições de igualdade de sua incorporação, são discriminados e ocupam os estratos mais baixos da
hierarquia social. Não impediram
também que nos tornássemos
campeões de violência na casa e
na rua, que os massacres se generalizassem nas grandes cidades,
que a tortura -depois de ser rotina no tratamento de escravos-
se integrasse à prática policial e,
por 20 anos, tivesse a cobertura
das próprias Forças Armadas.
Primeira potência do orbe? Talvez no futebol e no Carnaval. Mas
é preciso perguntar se um gol de
Pelé ou uma Copa do Mundo valem a Copa que também ganhamos da desigualdade social e da
pobreza; se um carnaval de Joãosinho Trinta ou um desfile da
Mangueira valem os 15% de brasileiros analfabetos, os 35% com
menos de quatro anos de educação, os 36% infectados por parasitas. Nossa história nos últimos
cem anos? Deles, 41 foram de governo oligárquico sem participação popular. Mais 15 foram de ditadura civil. Outros 21 de ditadura
militar. Sobram apenas 23 de democracia assustada e tímida, que
tem sido muito lenta e pouco eficaz na solução do problema da
desigualdade.
Ao final do quinto século, é preciso admitir que nossos melhores
sonhos têm sido sistematicamente frustrados por nossa incapacidade de torná-los realidade. A retórica do ufanismo só serve para
encobrir nossa frustração como
povo e como nação. Povo e nação
que, como disse Renan, só existem devido à realização de grandes obras comuns no passado e
da vontade de fazer outras tantas
no presente.
Os brasileiros que julgam não
ser este o país de seus sonhos, que
acham não haver nada a celebrar
no quinto centenário, enfrentarão
a agitação ruidosa do oba-oba
ufanista e aproveitarão a data para uma profunda autocrítica e para a busca de novos rumos que
nos dêem no futuro melhores razões para nos orgulharmos de nós
mesmos. Nesse distante futuro
talvez deixemos de ser o país do
futuro que hoje desapontaria Stefan Zweig.
José Murilo de Carvalho é professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de "Pontos e Bordados" (Ed. da UFMG), entre outros. Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
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