São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2000

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A presença de Drummond foi insubstituível, e ainda hoje muitos de seus versos se apresentam à minha memória quase diariamente, com a mesma emoção da primeira leitura
Alguns anos vivi em Itabira

Juan José Saer

Não quero dar ao leitor a impressão de estar pretendendo exportar bananas para o Brasil, mas me pareceu que falar da presença da cultura brasileira na Argentina nos anos 50 e 60 podia ser uma boa porta de entrada no assunto. Nessa presença, a figura de Carlos Drummond de Andrade ocupa, sem dúvida alguma, pelo menos nesses anos, o lugar central. Seus vínculos pessoais com a Argentina talvez tenham ajudado um pouco, pois sua filha, casada com um argentino, morava em Buenos Aires, o que lhe permitia viajar com frequência, dando a muitos poetas jovens, sobretudo àqueles que gravitavam em torno da legendária revista "poesia buenos aires", a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente. Durante a primeira metade do século 20, quando a obra de certos poetas como Juan L. Ortiz (1896-1978) e até de Jorge Luis Borges (1899-1986) ainda não era suficientemente conhecida, a poesia argentina, apesar de suas qualidades inegáveis, demorava a se libertar de certos hábitos acadêmicos, e não existia nela nada equivalente à obra dos grandes poetas de vanguarda latino-americanos como César Vallejo (peruano, 1892-1938), Vicente Huidobro (chileno, 1893-1948) ou Pablo Neruda (chileno, 1904-1973). Por volta dos anos 40, em meio a certo conformismo neoclássico que proliferava na época, começaram a aparecer, como reação, as primeiras revistas de vanguarda que anteciparam a fundação de "poesia buenos aires" e as gerações dos anos 50 e 60, que, por sua vez, provocaram uma verdadeira renovação do debate intelectual e literário, cultural e político, em franca dissidência com as pautas da cultura oficial. Nesse contexto, a cultura brasileira em geral e a obra de Carlos Drummond de Andrade em particular tiveram um papel determinante.

Ironia e desengano
O que tornou sua poesia tão atraente e lhe permitiu contribuir para a formação de uma nova linguagem poética no Prata é, na minha opinião, esse equilíbrio entre espontaneidade e reflexão, entre ironia e desengano, entre lirismo e rebeldia que a caracteriza. Diferentemente da poesia de outros grandes poetas latino-americanos, como Vallejo ou Neruda, que é de certo modo conclusiva de um estilo e de uma época e cuja exacerbação estilística logo delata seus epígonos, a abertura realista do modernismo brasileiro teve algo a ver com o aparecimento da poesia coloquial argentina, da antipoesia de Nicanor Parra (1914) e, por meio de uma série de elos intermediários, com a formação de uma linguagem direta e conversada própria da poesia em língua espanhola da segunda metade do século 20. Claro que sua influência não foi a única, mas já a partir da década de 30 antecipou sem a menor dúvida essa saudável tendência. Dizem que Matisse (acho) declarou certa vez: "Se Cézanne tem razão, eu tenho razão". Qualquer jovem poeta do Prata da geração dos 50 ou 60, eliminando, com a veemência própria da juventude, a prudência condicional da fórmula, não teria hesitado em afirmar: "Eu tenho razão porque Drummond, Michaux, Char, cummings têm razão". Entre esses jovens, "Poema de Sete Faces", "Sentimento do Mundo", "Confidência do Itabirano", "Elegia 1938", "Mundo Grande" eram verdadeiras contra-senhas, sinais de reconhecimento cuja ignorância constituía uma prova irrefutável de inautenticidade. Para mim, nesses anos, a presença de Drummond foi insubstituível, e ainda hoje muitos de seus versos se apresentam à minha memória quase diariamente, com o mesmo frescor e a mesma emoção da primeira leitura. Presente de amigos Por exemplo, "esse amanhecer/ mais noite que a noite", ou o maravilhoso soneto "Carta", do livro "Lição de Coisas", que uns amigos que viajaram ao Rio em 1962 me trouxeram de presente justo quando acabava de sair, o que dá uma idéia da familiaridade dos jovens poetas argentinos com a poesia de Drummond naqueles anos.
Outras presenças familiares, por volta de 1960, da cultura brasileira entre as novas gerações de intelectuais e artistas rio-platenses (ou, em todo caso, entre aqueles que eu frequentava): em Santa Fé (onde, em 1938, Drummond participara de uma memorável mostra de arte contemporânea organizada pela universidade) circulavam, quando ainda não existiam em espanhol, a primeira edição de "Grande Sertão: Veredas", algumas versões datilografadas de poemas de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e de documentos muito inovadores sobre a poesia concreta; com difusão mais ampla, um par de antologias de poesia brasileira, que datavam de meados dos anos 50 e incluíam poemas de Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Cecília Meireles etc. E, já nos anos 60, por meio do Instituto de Cinema da Universidad del Litoral, os primeiros filmes do Cinema Novo, entre os quais teria que se destacar o admirável "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, que, na minha opinião, é a obra-prima do cinema latino-americano.
Alguns velhos historiadores nacionalistas costumavam chamar o Brasil de "nosso inimigo tradicional", como um resquício de velhas e já rançosas querelas políticas, territoriais ou coloniais. Às pessoas de minha geração, o ridículo dessa fórmula nem chega a indignar: faz-nos rir, pois é mais do que evidente que, apesar das nossas diferenças linguísticas, sociais e até étnicas, nossas respectivas aspirações artísticas, intelectuais e culturais são complementares até em suas mais inconciliáveis contradições.


Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém Nada Nunca" (ambos pela Companhia das Letras). Ele passa, a partir desta edição, a escrever mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.


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