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A presença de Drummond foi insubstituível, e ainda hoje muitos de seus versos
se apresentam à minha memória quase diariamente, com a mesma
emoção da primeira leitura
Alguns anos vivi em Itabira
Juan José Saer
Não quero dar ao leitor a impressão de estar pretendendo
exportar bananas para o Brasil,
mas me pareceu que falar da
presença da cultura brasileira na Argentina nos anos 50 e 60 podia ser uma boa
porta de entrada no assunto. Nessa presença, a figura de Carlos Drummond de
Andrade ocupa, sem dúvida alguma, pelo menos nesses anos, o lugar central.
Seus vínculos pessoais com a Argentina
talvez tenham ajudado um pouco, pois
sua filha, casada com um argentino, morava em Buenos Aires, o que lhe permitia
viajar com frequência, dando a muitos
poetas jovens, sobretudo àqueles que
gravitavam em torno da legendária revista "poesia buenos aires", a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente.
Durante a primeira metade do século
20, quando a obra de certos poetas como
Juan L. Ortiz (1896-1978) e até de Jorge
Luis Borges (1899-1986) ainda não era
suficientemente conhecida, a poesia argentina, apesar de suas qualidades inegáveis, demorava a se libertar de certos hábitos acadêmicos, e não existia nela nada
equivalente à obra dos grandes poetas de
vanguarda latino-americanos como César Vallejo (peruano, 1892-1938), Vicente
Huidobro (chileno, 1893-1948) ou Pablo
Neruda (chileno, 1904-1973).
Por volta dos anos 40, em meio a certo
conformismo neoclássico que proliferava na época, começaram a aparecer, como reação, as primeiras revistas de vanguarda que anteciparam a fundação de
"poesia buenos aires" e as gerações dos
anos 50 e 60, que, por sua vez, provocaram uma verdadeira renovação do debate intelectual e literário, cultural e político, em franca dissidência com as pautas
da cultura oficial. Nesse contexto, a cultura brasileira em geral e a obra de Carlos
Drummond de Andrade em particular
tiveram um papel determinante.
Ironia e desengano
O que tornou
sua poesia tão atraente e lhe permitiu
contribuir para a formação de uma nova
linguagem poética no Prata é, na minha
opinião, esse equilíbrio entre espontaneidade e reflexão, entre ironia e desengano, entre lirismo e rebeldia que a caracteriza. Diferentemente da poesia de
outros grandes poetas latino-americanos, como Vallejo ou Neruda, que é de
certo modo conclusiva de um estilo e de
uma época e cuja exacerbação estilística
logo delata seus epígonos, a abertura realista do modernismo brasileiro teve algo
a ver com o aparecimento da poesia coloquial argentina, da antipoesia de Nicanor Parra (1914) e, por meio de uma série de elos intermediários, com a formação de uma linguagem direta e conversada própria da poesia em língua espanhola da segunda metade do século 20.
Claro que sua influência não foi a única, mas já a partir da década de 30 antecipou sem a menor dúvida essa saudável
tendência.
Dizem que Matisse (acho) declarou
certa vez: "Se Cézanne tem razão, eu tenho razão". Qualquer jovem poeta do
Prata da geração dos 50 ou 60, eliminando, com a veemência própria da juventude, a prudência condicional da fórmula, não teria hesitado em afirmar: "Eu tenho razão porque Drummond, Michaux, Char, cummings têm razão".
Entre esses jovens, "Poema de Sete Faces", "Sentimento do Mundo", "Confidência do Itabirano", "Elegia 1938",
"Mundo Grande" eram verdadeiras
contra-senhas, sinais de reconhecimento cuja ignorância constituía uma prova
irrefutável de inautenticidade. Para
mim, nesses anos, a presença de Drummond foi insubstituível, e ainda hoje
muitos de seus versos se apresentam à
minha memória quase diariamente,
com o mesmo frescor e a mesma emoção da primeira leitura.
Presente de amigos
Por exemplo,
"esse amanhecer/ mais noite que a noite", ou o maravilhoso soneto "Carta", do
livro "Lição de Coisas", que uns amigos
que viajaram ao Rio em 1962 me trouxeram de presente justo quando acabava
de sair, o que dá uma idéia da familiaridade dos jovens poetas argentinos com a
poesia de Drummond naqueles anos.
Outras presenças familiares, por volta
de 1960, da cultura brasileira entre as novas gerações de intelectuais e artistas rio-platenses (ou, em todo caso, entre aqueles que eu frequentava): em Santa Fé (onde, em 1938, Drummond participara de
uma memorável mostra de arte contemporânea organizada pela universidade)
circulavam, quando ainda não existiam
em espanhol, a primeira edição de
"Grande Sertão: Veredas", algumas versões datilografadas de poemas de João
Cabral de Melo Neto (1920-1999) e de documentos muito inovadores sobre a poesia concreta; com difusão mais ampla,
um par de antologias de poesia brasileira, que datavam de meados dos anos 50 e
incluíam poemas de Manuel Bandeira,
Mário de Andrade, Murilo Mendes, Cecília Meireles etc. E, já nos anos 60, por
meio do Instituto de Cinema da Universidad del Litoral, os primeiros filmes do
Cinema Novo, entre os quais teria que se
destacar o admirável "Vidas Secas", de
Nelson Pereira dos Santos, que, na minha opinião, é a obra-prima do cinema
latino-americano.
Alguns velhos historiadores nacionalistas costumavam chamar o Brasil de
"nosso inimigo tradicional", como um
resquício de velhas e já rançosas querelas
políticas, territoriais ou coloniais. Às
pessoas de minha geração, o ridículo
dessa fórmula nem chega a indignar: faz-nos rir, pois é mais do que evidente que,
apesar das nossas diferenças linguísticas,
sociais e até étnicas, nossas respectivas
aspirações artísticas, intelectuais e culturais são complementares até em suas
mais inconciliáveis contradições.
Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino,
autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém
Nada Nunca" (ambos pela Companhia das Letras).
Ele passa, a partir desta edição, a escrever mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.
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