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+ memória
O poeta relembra o início de sua amizade e a trajetória intelectual do escritor José Lino Grünewald, morto aos 69 anos em 26 de julho
Zelino vai e vem
por Augusto de Campos
Não sei precisar a data do meu
primeiro encontro com José
Lino Grünewald, que conheci,
em meados dos anos 50, por
intermédio do amigo comum Júlio Cesar
do Prado Leite. Mas Zelino (assim sempre o chamamos todos) o menciona na
carta que iniciou a nossa longa correspondência, em 21 de setembro de 1956, e
certamente terá sido nesse ano. Eu, já casado com Lygia, ia muito ao Rio e passei
a frequentar a mansão da rua Marques
de Pinedo, em Laranjeiras, onde Zelino
morava e a avistar-me com ele, que então
conheceu também Ecila, minha cunhada. Estávamos às vésperas da Exposição
Nacional de Arte Concreta, marcada para dezembro, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. E Ecila fazia a ponte entre, de um lado, os poetas (Décio Pignatari, Haroldo e eu) e os pintores concretos paulistas e, de outro, o crítico Oliveira
Bastos, Ferreira Gullar e os integrantes
do Grupo Frente, que praticavam arte
abstrato-geométrica, prestigiados por
Mário Pedrosa. Zelino logo manifestou
uma queda por Ecila e, tímido postulante
sem muita esperança, alguns anos de
pastor serviu por ela, até finalmente cair
em suas graças. O casamento foi quatro
anos depois, em 1960. Ficaríamos assim
definitivamente entrelaçados, os dois casais, Lygia e eu, Ecila e Zelino.
Eu conhecera Mário Faustino no ano
anterior, numa reunião na casa de Pedrosa, onde travamos uma animada discussão em torno dos poemas longos de
Ezra Pound (1885-1972) e William Carlos
Williams (eu defendendo a supremacia
dos "Cantos" sobre "Patterson", ele o
contrário). Em dezembro, me mandara
o seu livro, pedindo uma cópia de "O Rei
menos o Reino" e dizendo-me que eu lhe
deixara as melhores recordações do nosso encontro, que batizei de "pound's
round", na resposta a ele.
Mas foi através do Zelino, por coincidência seu colega de trabalho na Fundação Getúlio Vargas, que Faustino nos
convidou a mim, Haroldo e Décio para
colaboramos no suplemento literário do
"Jornal do Brasil", que então passava por
uma grande reformulação. Em sua carta,
aquela mesma a que já me referi e que
acabou me entregando pessoalmente,
José Lino mencionava que Faustino acabara de publicar no suplemento uma tradução do ensaio de Pound sobre Camões
e já anunciara a sua famosa página, "Poesia Experiência". Com a carta, José Lino
me entregou um bilhete de Faustino, que
assim terminava: "A página está aberta a
sua colaboração. Se você tiver alguma
coisa -poesia ou artigo- mande logo.
E receba um abração do seu camarada e
"correligionário" Mário Faustino".
Cópias dessa correspondência foram
enviadas por mim, do Rio, a Haroldo,
com vista para o Décio, numa carta de 5
de outubro de 1956, na qual eu escrevia:
"José Lino, amigo de J. Cesar, de quem tinha falado a v., certa vez, é o melhor sujeito deste mundo, modesto e honesto. E
inteligente, futuro candidato ao ideo
(ideograma), talvez. Conhece muito cinema e está formando uma boa cultura
poética". Foi, portanto, através de Mário
Faustino e dele que passamos a colaborar no célebre suplemento literário.
A minha amizade com Zelino estreitou-se rapidamente, porque ele respondeu desde logo com entusiasmo aos nossos projetos literários e, ainda durante o
ano em que se preparava a exposição, me
fez ver os seus primeiros tentames poéticos, alguns já concretos ou paraconcretos, como "vértice" "cesse" e "pomba", o
primeiro de outubro, os dois outros de
dezembro de 1956. Na verdade ele deixou de participar por muito pouco da
nossa mostra e só mesmo porque já estava fechado e equilibrado o número de
seus participantes: os três paulistas e os
outros três, Ferreira Gullar, Ronaldo
Azeredo e Wladimir Dias Pino, que moravam no Rio.
Supercarioca
Ronaldo, irmão de
Lygia e de Ecila, se integrara ao nosso
grupo e já aparecia no terceiro número
da nossa revista-livro "Noigandres", distribuída na exposição de São Paulo. José
Lino, supercarioca, como Ronaldo, alinhou-se conosco desde o início e veio
juntar-se ao grupo, formalmente, na antologia "Noigandres" (nš 5 da revista) de
1962. Seu primeiro livro de poemas, "Um
E Dois", com capa pré-"op" de Décio
Pignatari, foi editado por nós em São
Paulo, em 1958. Prova de que a propalada divisão do movimento entre paulistas
e cariocas, de fato, não existia como tal,
àquela altura.
Vivendo no Rio e frequentando a redação do "Jornal do Brasil", homem extremamente afável, José Lino continuou colaborando no suplemento literário mesmo depois que fomos alijados de suas
páginas. Enquanto pôde, ele encaminhava, com a ajuda de Faustino, o material
que enviávamos de São Paulo e que passava pela rigorosa censura de Gullar e
Reinaldo Jardim, ávidos por pretextos
para se livrarem de nós. E nos defendia
sempre de intrigas e ataques. Entre outras proezas, Zelino contraditou brilhantemente o crítico José Guilherme Merquior, quando este, que estreava no "Jornal do Brasil", para agradar aos nossos
adversários e assim conquistar um espaço no suplemento, tentou demolir o finíssimo poema "caviar o prazer" de Décio Pignatari. Estávamos em 1959.
Sob certos aspectos Zelino era mais
"ortodoxo" do que nós. Permaneceu fiel
à poesia concreta dos primeiros tempos
até os últimos dias, tanto que, em dezembro de 1999, incluiu o poema "LIFE" de
Pignatari, assim como "cidade/city/cité",
duas produções da safra dos anos 50 e 60,
na lista dos dez melhores poemas brasileiros do século, que elaborou para o
Mais! (espírito sumamente lúdico, ele
adorava as listas de dez mais, prática que
remontava aos seus tempos de crítico cinematográfico dos jornais do Rio).
Zelino sempre afirmou jocosamente
que tinha "complexo de Peter Pan". Não
se desligava da infância. E jamais se desvinculou dos seus inícios literários, das
primeiras amizades e... da poesia concreta, a da "fase geométrica", da "idade de
ouro", como a chamava, apesar de alguns desvios e deslizes bem-humorados.
Talvez por isso, quando começou a se intensificar a diáspora do movimento, em
meados dos anos 80, parece que Zelino
se desorientou. Passou por uma crise de
identidade poética e veio a ocupar-se
mais de traduções e antologias do que de
seus próprios poemas. Mas chegou a
reunir as suas criações poéticas numa
edição de bolso, belamente intitulada
"Escreviver", embora de formato acanhado, pouco adequada para abrigar as
elaboradas estruturas gráfico-espaciais
de muitas de suas composições.
Originalíssimo, extravagante até os limites da contradição, José Lino não era
apenas poeta, nem se restringiam à literatura os seus interesses. Crítico de cinema e de música popular, foi pioneiro na
avaliação de Godard e Resnais, Kubrick e
"2001". Lembro-me do imenso entusiasmo com que um então juvenilíssimo crítico de cinema, Rogério Sganzerla, se referiu ao artigo "Viver o Cinema ou Godard ou a Objetividade Total", que Zelino publicara na revista "Invenção" nš 4,
em 1964, com a qual eu presenteei o ainda aspirante a diretor cinematográfico,
que me fora apresentado pelo crítico Almeida Salles. As especulações de José Lino nessa área sintonizavam com a ideologia dos cineastas mais ousados. Foi
também pioneiro na revisitação de, entre
muitos outros, Mário Reis e Orlando Silva, Carlos Gardel e Cole Porter (de cujo
acervo de gravações trouxe à tona uma
raridade: a admirável interpretação do
próprio Porter, cantando ao piano
"You're the Top").
O mel do melhor
Selecionava com
ouvido apurado o mel do melhor -coisas incríveis, que só ele conhecia, como
"Pé de Mulata", de Pixinguinha, com Patrício Teixeira e os Três Batutas, gravação de 1928, "Canção para Inglês Ver",
de Lamartine Babo, com o próprio, e
"Rancho Fundo", com música de Ari
Barroso e letra de Lamartine, no primeiro registro da composição, com a insuperável Elisinha Coelho, ambas as gravações de 1931 (ano em que nascemos os
dois, quase no mesmo dia, ele em 13, eu
em 14 de fevereiro), ou uma das primeiras aparições de Moreira da Silva, seresteiro, antes do breque, em "No Morro de
S. Carlos", de Hervê Cordovil e Orestes
Barbosa (1933), ou ainda aquela que José
Lino considerava talvez a mais perfeita
interpretação de Orlando Silva: um antigo vinil de 1939 com a valsa de Joubert de
Carvalho "Por Quanto Tempo Ainda?",
em que Zelino enfatizava a extensão icônica da palavra "tempo", cantada em voz
de cabeça.
Gostava de frisar essas "pedras de toque" interpretativas: a surpresa da primeira intervenção quase-falada de Mário Reis, contrastando com um melodioso Francisco Alves em "A Razão Dá-Se a
Quem Tem" (1932), de Ismael Silva e
Noel Rosa, um dos maravilhosos discos
da dupla. E apreciava comparações, as
vezes as mais esdrúxulas. Quem senão
ele seria capaz de pôr lado a lado Orlando Silva e Vicente Celestino, em gravações dos anos 30, cantando "Última Estrofe", de Cândido das Neves?
Aristocrata lúmpen
"Zelino's
hits", dizia eu, quando, nos bons tempos,
ele punha essas pérolas na vitrola para
ouvirmos e das quais guardo, entesouradas, duas preciosas fitas cassete. Foi também o primeiro a ler com olhos novos
Nelson Rodrigues, de quem se tornou
amigo e personagem. Era, como me afirmou Décio Pignatari, numa de suas definições provocativas, um paradoxal "aristocrata lúmpen", que transitava sem dificuldade entre o alto e o baixo repertórios. Dentre os seus numerosos artigos e
estudos literários, não recolhidos em livro, são apreciáveis os polêmicos, da primeira hora, em defesa da poesia concreta, e outros tantos, também pioneiros,
como o que reivindica o modernista Luis
Aranha e o que põe em foco os poemas
curtos de García Lorca.
Nos anos 60, colaborava assiduamente
no "Correio da Manhã", onde, ao lado de
Otto Maria Carpeaux e Antonio Houaiss,
escreveu editoriais políticos, antimilitaristas, e dirigiu com Paulo Francis o
quarto "Caderno Cultural". Depois que
os militares liquidaram com o bravo jornal carioca, vendo-se afastado do convívio das redações, que tanto apreciava,
Zelino perdeu muito do seu pique. Por
volta dos anos 70 começou a operar-se
uma grande transformação em sua personalidade. Liberaram-se os duendes da
galhofa e do sarcasmo, escondidos na timidez juvenil do intelectual cordialíssimo que se proclamava docemente um
inveterado pagão, e o ludismo e a irreverência assomaram o primeiro plano, traduzidos em boutades e atitudes engraçadas e paradoxais, em tiradas de efeito,
nem sempre muito consequentes.
Contudo quando voltava a trafegar seriamente pelo universo da alta cultura,
suas referências eram nada menos que
Pound e Mallarmé e... os abomináveis
homens das neves de sempre -os poetas concretos. Goste-se ou não, assim era
o Zelino.
A sua morte vem somar-se, tantos anos
depois, à morte prematura de Mário
Faustino nos anos 60 -e essas são para
mim as perdas literárias mais significativas da minha geração. A elas haveria que
acrescentar o desaparecimento da figura
abnegada, íntegra e generosa de Erthos
Albino de Souza, poeta e pesquisador,
morto poucos dias antes de José Lino, e a
cujo apoio material e intelectual se devem as (re)visões de Sousândrade, Kilkerry e Patrícia Galvão, além da revista
"CÓDIGO", da Bahia, e tantas outras publicações da "margem da margem" que
ele apoiou e financiou (inclusive a "Caixa
Preta", que publiquei com Júlio Plaza).
Foi José Lino Grünewald, em suma,
um grande companheiro e um grande
amigo. Uma das personalidades mais
originais de sua geração, sofisticado demais para ela, tinha poucos interlocutores à sua altura e, nos últimos tempos,
despaisado na cidade natal que continua
linda, disfarçava na euforia de superfície
o seu requintado culto à poesia. Restam
inéditos em livro muitos dos seus importantes estudos literários, assim como os
seus relevantes artigos sobre cinema e
música popular. Urge reuni-los e publicá-los, assim como republicar numa edição condigna o seu livro de poemas, no
qual, entre outras "pedras de toque", figura o seu lapidar "vai e vem", admirado
por Max Bense. Mais folclorizado do que
compreendido, mal medido pela mediocridade do nosso presente, será melhor
lembrado amanhã. Há de inverter o seu
destino, como gostava de fazer pinçando
palíndromos nas mais inventivas letras
de tango: REVÊS. VESRE. Vai e vem.
Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta,
autor de "Expoemas" e "Despoesia", entre outros.
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