São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2000

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+ memória
O poeta relembra o início de sua amizade e a trajetória intelectual do escritor José Lino Grünewald, morto aos 69 anos em 26 de julho
Zelino vai e vem

por Augusto de Campos

Não sei precisar a data do meu primeiro encontro com José Lino Grünewald, que conheci, em meados dos anos 50, por intermédio do amigo comum Júlio Cesar do Prado Leite. Mas Zelino (assim sempre o chamamos todos) o menciona na carta que iniciou a nossa longa correspondência, em 21 de setembro de 1956, e certamente terá sido nesse ano. Eu, já casado com Lygia, ia muito ao Rio e passei a frequentar a mansão da rua Marques de Pinedo, em Laranjeiras, onde Zelino morava e a avistar-me com ele, que então conheceu também Ecila, minha cunhada. Estávamos às vésperas da Exposição Nacional de Arte Concreta, marcada para dezembro, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. E Ecila fazia a ponte entre, de um lado, os poetas (Décio Pignatari, Haroldo e eu) e os pintores concretos paulistas e, de outro, o crítico Oliveira Bastos, Ferreira Gullar e os integrantes do Grupo Frente, que praticavam arte abstrato-geométrica, prestigiados por Mário Pedrosa. Zelino logo manifestou uma queda por Ecila e, tímido postulante sem muita esperança, alguns anos de pastor serviu por ela, até finalmente cair em suas graças. O casamento foi quatro anos depois, em 1960. Ficaríamos assim definitivamente entrelaçados, os dois casais, Lygia e eu, Ecila e Zelino. Eu conhecera Mário Faustino no ano anterior, numa reunião na casa de Pedrosa, onde travamos uma animada discussão em torno dos poemas longos de Ezra Pound (1885-1972) e William Carlos Williams (eu defendendo a supremacia dos "Cantos" sobre "Patterson", ele o contrário). Em dezembro, me mandara o seu livro, pedindo uma cópia de "O Rei menos o Reino" e dizendo-me que eu lhe deixara as melhores recordações do nosso encontro, que batizei de "pound's round", na resposta a ele. Mas foi através do Zelino, por coincidência seu colega de trabalho na Fundação Getúlio Vargas, que Faustino nos convidou a mim, Haroldo e Décio para colaboramos no suplemento literário do "Jornal do Brasil", que então passava por uma grande reformulação. Em sua carta, aquela mesma a que já me referi e que acabou me entregando pessoalmente, José Lino mencionava que Faustino acabara de publicar no suplemento uma tradução do ensaio de Pound sobre Camões e já anunciara a sua famosa página, "Poesia Experiência". Com a carta, José Lino me entregou um bilhete de Faustino, que assim terminava: "A página está aberta a sua colaboração. Se você tiver alguma coisa -poesia ou artigo- mande logo. E receba um abração do seu camarada e "correligionário" Mário Faustino". Cópias dessa correspondência foram enviadas por mim, do Rio, a Haroldo, com vista para o Décio, numa carta de 5 de outubro de 1956, na qual eu escrevia: "José Lino, amigo de J. Cesar, de quem tinha falado a v., certa vez, é o melhor sujeito deste mundo, modesto e honesto. E inteligente, futuro candidato ao ideo (ideograma), talvez. Conhece muito cinema e está formando uma boa cultura poética". Foi, portanto, através de Mário Faustino e dele que passamos a colaborar no célebre suplemento literário. A minha amizade com Zelino estreitou-se rapidamente, porque ele respondeu desde logo com entusiasmo aos nossos projetos literários e, ainda durante o ano em que se preparava a exposição, me fez ver os seus primeiros tentames poéticos, alguns já concretos ou paraconcretos, como "vértice" "cesse" e "pomba", o primeiro de outubro, os dois outros de dezembro de 1956. Na verdade ele deixou de participar por muito pouco da nossa mostra e só mesmo porque já estava fechado e equilibrado o número de seus participantes: os três paulistas e os outros três, Ferreira Gullar, Ronaldo Azeredo e Wladimir Dias Pino, que moravam no Rio.

Supercarioca
Ronaldo, irmão de Lygia e de Ecila, se integrara ao nosso grupo e já aparecia no terceiro número da nossa revista-livro "Noigandres", distribuída na exposição de São Paulo. José Lino, supercarioca, como Ronaldo, alinhou-se conosco desde o início e veio juntar-se ao grupo, formalmente, na antologia "Noigandres" (nš 5 da revista) de 1962. Seu primeiro livro de poemas, "Um E Dois", com capa pré-"op" de Décio Pignatari, foi editado por nós em São Paulo, em 1958. Prova de que a propalada divisão do movimento entre paulistas e cariocas, de fato, não existia como tal, àquela altura. Vivendo no Rio e frequentando a redação do "Jornal do Brasil", homem extremamente afável, José Lino continuou colaborando no suplemento literário mesmo depois que fomos alijados de suas páginas. Enquanto pôde, ele encaminhava, com a ajuda de Faustino, o material que enviávamos de São Paulo e que passava pela rigorosa censura de Gullar e Reinaldo Jardim, ávidos por pretextos para se livrarem de nós. E nos defendia sempre de intrigas e ataques. Entre outras proezas, Zelino contraditou brilhantemente o crítico José Guilherme Merquior, quando este, que estreava no "Jornal do Brasil", para agradar aos nossos adversários e assim conquistar um espaço no suplemento, tentou demolir o finíssimo poema "caviar o prazer" de Décio Pignatari. Estávamos em 1959. Sob certos aspectos Zelino era mais "ortodoxo" do que nós. Permaneceu fiel à poesia concreta dos primeiros tempos até os últimos dias, tanto que, em dezembro de 1999, incluiu o poema "LIFE" de Pignatari, assim como "cidade/city/cité", duas produções da safra dos anos 50 e 60, na lista dos dez melhores poemas brasileiros do século, que elaborou para o Mais! (espírito sumamente lúdico, ele adorava as listas de dez mais, prática que remontava aos seus tempos de crítico cinematográfico dos jornais do Rio). Zelino sempre afirmou jocosamente que tinha "complexo de Peter Pan". Não se desligava da infância. E jamais se desvinculou dos seus inícios literários, das primeiras amizades e... da poesia concreta, a da "fase geométrica", da "idade de ouro", como a chamava, apesar de alguns desvios e deslizes bem-humorados. Talvez por isso, quando começou a se intensificar a diáspora do movimento, em meados dos anos 80, parece que Zelino se desorientou. Passou por uma crise de identidade poética e veio a ocupar-se mais de traduções e antologias do que de seus próprios poemas. Mas chegou a reunir as suas criações poéticas numa edição de bolso, belamente intitulada "Escreviver", embora de formato acanhado, pouco adequada para abrigar as elaboradas estruturas gráfico-espaciais de muitas de suas composições.
Originalíssimo, extravagante até os limites da contradição, José Lino não era apenas poeta, nem se restringiam à literatura os seus interesses. Crítico de cinema e de música popular, foi pioneiro na avaliação de Godard e Resnais, Kubrick e "2001". Lembro-me do imenso entusiasmo com que um então juvenilíssimo crítico de cinema, Rogério Sganzerla, se referiu ao artigo "Viver o Cinema ou Godard ou a Objetividade Total", que Zelino publicara na revista "Invenção" nš 4, em 1964, com a qual eu presenteei o ainda aspirante a diretor cinematográfico, que me fora apresentado pelo crítico Almeida Salles. As especulações de José Lino nessa área sintonizavam com a ideologia dos cineastas mais ousados. Foi também pioneiro na revisitação de, entre muitos outros, Mário Reis e Orlando Silva, Carlos Gardel e Cole Porter (de cujo acervo de gravações trouxe à tona uma raridade: a admirável interpretação do próprio Porter, cantando ao piano "You're the Top").

O mel do melhor
Selecionava com ouvido apurado o mel do melhor -coisas incríveis, que só ele conhecia, como "Pé de Mulata", de Pixinguinha, com Patrício Teixeira e os Três Batutas, gravação de 1928, "Canção para Inglês Ver", de Lamartine Babo, com o próprio, e "Rancho Fundo", com música de Ari Barroso e letra de Lamartine, no primeiro registro da composição, com a insuperável Elisinha Coelho, ambas as gravações de 1931 (ano em que nascemos os dois, quase no mesmo dia, ele em 13, eu em 14 de fevereiro), ou uma das primeiras aparições de Moreira da Silva, seresteiro, antes do breque, em "No Morro de S. Carlos", de Hervê Cordovil e Orestes Barbosa (1933), ou ainda aquela que José Lino considerava talvez a mais perfeita interpretação de Orlando Silva: um antigo vinil de 1939 com a valsa de Joubert de Carvalho "Por Quanto Tempo Ainda?", em que Zelino enfatizava a extensão icônica da palavra "tempo", cantada em voz de cabeça. Gostava de frisar essas "pedras de toque" interpretativas: a surpresa da primeira intervenção quase-falada de Mário Reis, contrastando com um melodioso Francisco Alves em "A Razão Dá-Se a Quem Tem" (1932), de Ismael Silva e Noel Rosa, um dos maravilhosos discos da dupla. E apreciava comparações, as vezes as mais esdrúxulas. Quem senão ele seria capaz de pôr lado a lado Orlando Silva e Vicente Celestino, em gravações dos anos 30, cantando "Última Estrofe", de Cândido das Neves?

Aristocrata lúmpen
"Zelino's hits", dizia eu, quando, nos bons tempos, ele punha essas pérolas na vitrola para ouvirmos e das quais guardo, entesouradas, duas preciosas fitas cassete. Foi também o primeiro a ler com olhos novos Nelson Rodrigues, de quem se tornou amigo e personagem. Era, como me afirmou Décio Pignatari, numa de suas definições provocativas, um paradoxal "aristocrata lúmpen", que transitava sem dificuldade entre o alto e o baixo repertórios. Dentre os seus numerosos artigos e estudos literários, não recolhidos em livro, são apreciáveis os polêmicos, da primeira hora, em defesa da poesia concreta, e outros tantos, também pioneiros, como o que reivindica o modernista Luis Aranha e o que põe em foco os poemas curtos de García Lorca.
Nos anos 60, colaborava assiduamente no "Correio da Manhã", onde, ao lado de Otto Maria Carpeaux e Antonio Houaiss, escreveu editoriais políticos, antimilitaristas, e dirigiu com Paulo Francis o quarto "Caderno Cultural". Depois que os militares liquidaram com o bravo jornal carioca, vendo-se afastado do convívio das redações, que tanto apreciava, Zelino perdeu muito do seu pique. Por volta dos anos 70 começou a operar-se uma grande transformação em sua personalidade. Liberaram-se os duendes da galhofa e do sarcasmo, escondidos na timidez juvenil do intelectual cordialíssimo que se proclamava docemente um inveterado pagão, e o ludismo e a irreverência assomaram o primeiro plano, traduzidos em boutades e atitudes engraçadas e paradoxais, em tiradas de efeito, nem sempre muito consequentes.
Contudo quando voltava a trafegar seriamente pelo universo da alta cultura, suas referências eram nada menos que Pound e Mallarmé e... os abomináveis homens das neves de sempre -os poetas concretos. Goste-se ou não, assim era o Zelino.
A sua morte vem somar-se, tantos anos depois, à morte prematura de Mário Faustino nos anos 60 -e essas são para mim as perdas literárias mais significativas da minha geração. A elas haveria que acrescentar o desaparecimento da figura abnegada, íntegra e generosa de Erthos Albino de Souza, poeta e pesquisador, morto poucos dias antes de José Lino, e a cujo apoio material e intelectual se devem as (re)visões de Sousândrade, Kilkerry e Patrícia Galvão, além da revista "CÓDIGO", da Bahia, e tantas outras publicações da "margem da margem" que ele apoiou e financiou (inclusive a "Caixa Preta", que publiquei com Júlio Plaza).
Foi José Lino Grünewald, em suma, um grande companheiro e um grande amigo. Uma das personalidades mais originais de sua geração, sofisticado demais para ela, tinha poucos interlocutores à sua altura e, nos últimos tempos, despaisado na cidade natal que continua linda, disfarçava na euforia de superfície o seu requintado culto à poesia. Restam inéditos em livro muitos dos seus importantes estudos literários, assim como os seus relevantes artigos sobre cinema e música popular. Urge reuni-los e publicá-los, assim como republicar numa edição condigna o seu livro de poemas, no qual, entre outras "pedras de toque", figura o seu lapidar "vai e vem", admirado por Max Bense. Mais folclorizado do que compreendido, mal medido pela mediocridade do nosso presente, será melhor lembrado amanhã. Há de inverter o seu destino, como gostava de fazer pinçando palíndromos nas mais inventivas letras de tango: REVÊS. VESRE. Vai e vem.


Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de "Expoemas" e "Despoesia", entre outros.


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