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+ arte
Reunindo grandes nomes da criação contemporânea, programa internacional
de residência coloca Estocolmo, na Suécia, no mapa das artes plásticas da Europa
Nomadismo cultural
Lisette Lagnado
especial para a Folha , de Estocolmo
Além de Paris, Barcelona, Londres e Berlim, Estocolmo, capital
da Suécia, ingressou na rota das
cidades atrativas para os artistas
contemporâneos. Isso se deve ao dinamismo do programa internacional de residência, Iaspis (Programa de Ateliê de
Artistas Internacionais na Suécia), atualmente dirigido por Daniel Birnbaum,
crítico e colaborador da revista "Art Forum".
Existem inúmeros programas de residência artística no mundo inteiro, cada
qual com seu modo operante. Aqueles
que dependem de um convite para a participação, como é o caso do Iaspis, dificultam seu acesso a fim de cunhar uma
determinada orientação cultural. São os
mais prestigiosos. O que deve ser ressaltado é que o convite significa que o artista passou por uma escolha internacional,
submetendo sua produção ao olhar de
um conselho de profissionais, fora da
proteção de seu clã. Supõem-se alguns
critérios para nortear o processo de indicação: o momento do artista na sua trajetória profissional, a contemporaneidade
de sua linguagem, a possibilidade de essa
experiência gerar desdobramentos na
sua pesquisa atual, a relação da poética
desse artista com a coletividade local.
Localizada na região central de Estocolmo, cercada pelo comércio eclético
dos calçadões onde se mesclam turistas e
camelôs nos arredores do Kulturhuset, a
sede do Iaspis tomou conta da Royal
Academy of Fine Arts, a pouca distância
da histórica Gamla Stan. Construído no
século 19, o prédio ostenta, ao longo de
seus quatro andares com pé direito monumental, o charme de uma majestade
deteriorada que ainda guarda a memória
de seus encantos. Por seus extraordinários corredores, que se desdobram em
três espaços expositivos (pequenas galerias para "Project Rooms"), foram alojados 11 ateliês individuais para os artistas
residentes, além de um auditório, cafeteria, biblioteca e livraria.
Ambiente multidisciplinar
Mas
falar das instalações físicas do Iaspis é
uma abordagem insuficiente para justificar a importância do programa em questão. Não resta dúvida de que receber
uma estrutura financeira representa
uma rara possibilidade de o artista se dedicar a um projeto mais experimental,
sem compromisso com o mercado, isto
é, sem a necessidade de fabricar objetos
palatáveis para a venda. Ultrapassado o
aspecto material, o que distingue essa
iniciativa é sua capacidade de fomentar
um ambiente multidisciplinar, propício
inclusive a performances, onde são organizados seminários sobre arte contemporânea internacional, contando com
presenças estelares em diversas áreas.
Aqui chegam artistas e teóricos do
mundo inteiro, empenhados em redefinir questões cruciais na estética de nosso
tempo, cuja prática consegue tanto absorver quanto transcender técnicas entendidas hoje como tradicionais (pintura, escultura, vídeo).
Desde 1998, o Iaspis convidou, entre
outros, Okwui Enwezor, atual curador
da "Documenta 11" (prevista para 2002),
que discorreu sobre as relações afro-americanas na poesia e na arte, e Hans-Ulrich Obrist, do Museu de Arte Moderna de Paris. Debates sobre as influências
do cinema nas artes plásticas trouxeram
artistas seminais, como Stan Douglas,
enquanto Louise Lawler, Chris Burden e
Janine Antoni reavivaram as características sempre inquietantes de suas obras.
Ao editor Paul Foss, de Sydney, coube
transmitir a história de sua conceituada
revista "Art & Text".
A pergunta que surge, ao visitar um lugar como esse, é: quais as transformações que um programa de residência pode acarretar no percurso de um artista?
Mais do que uma simples mudança de
lugar, residir no estrangeiro é uma vivência do "dépaysement". A insatisfação
com processos já decodificados leva o artista a aspirar a um exílio voluntário. Ele
se coloca na condição de desorientado
para precisar se reterritorializar; escolhe
perder-se e, ao traçar rotas imprevistas,
incorpora idéias e hábitos inusitados,
constrói uma nova narrativa. A experiência da hostilidade, o choque com diferentes culturas, tramas sociais e urbanas, tudo converge para a aquisição de
outros métodos de trabalho, estimulando o artista a investigar materiais que até
então não dominava.
Suspender o cotidiano
Mas para
que tipo de artista essa premissa do deslocamento representa uma contribuição
e não uma paralisia em sua trajetória?
Percebe-se que tanto artistas emergentes
como aqueles de carreira mais consolidada são atraídos por uma vontade de
suspender seu cotidiano; colocam sob
suspeita um reconhecimento pautado
apenas por relações familiares. Esse programa, baseado no diálogo entre artistas
suecos e de outros lugares, na realidade
só é útil àqueles interessados em questionar perspectivas ou, digamos, sensibilidades culturais. Não é suficiente demonstrar assiduidade no ateliê, pois percebeu-se que essa concepção corria o risco de confinar o caráter inventivo da arte, tirando-lhe relevância e representatividade para expressar o mundo.
Residências no exterior apostam no
convívio com a dessemelhança. Tamanho é o abalo que aquela produção artística, recolhida no seu confortável local de
origem, passa a revestir ranços de um espírito senão provinciano, ao menos acanhado. De fato, a questão do deslocamento, que já é um assunto recorrente
há séculos no imaginário literário e artístico, consegue injetar uma nova escala ao
trabalho, além de alimentar um farto
"turismo cultural" (leia texto ao lado).
Nesse sentido, a manipulação de ingredientes exóticos, a despeito dos valores
estéticos da obra, apresenta um perigo a
ser ponderado.
As origens dessa tradição poderiam ser
encontradas na Villa Medicis, fruto de
uma vontade do rei Luís 14 de enviar artistas franceses para a Itália; mas é somente neste século que se firma a idéia
de "comunidade" de artistas, nos EUA,
em que os verões no Black Mountain College (1933-56) rapidamente evoluíram
para "lugar mítico da modernidade". A
presença de Albers, fugido da Alemanha
nazista após o fechamento da Bauhaus,
foi determinante nessa escola experimental que acolheria Rauschenberg,
John Cage e Merce Cunningham, entre
muitos outros. Hoje, cabe citar a ArtPace
(em San Antonio), uma fundação voltada para projetos em arte experimental
que, em poucos anos, ganhou a reputação de "laboratório de sonhos".
Países fora do "jet set" (Índia, Tailândia
e Turquia) também mantêm programas
que exercem fascínio -provocando
uma pergunta um tanto impertinente, isto é, o que leva um artista a requerer esse
tipo de travessia no seu processo formativo? Pois nem todos os locais são centros
de atração urbana, como pode ser verificado nos estatutos do Banff Centre
School of Fine Arts (Alberta, Canada),
existente desde 1984, que foi concebido
para ser um lugar de reclusão do mundo
exterior, mas de intenso convívio interno, onde o artista tem o privilégio de interagir entre seus pares, com a única
obrigação de desenvolver seu projeto.
Reconstruir o vocabulário
É inevitável reconhecer que o programa de residência altera concepções de espaço e de
tempo na produção do artista. De espaço, pois a configuração do ateliê oferecido sempre causa um estranhamento e os
trajetos, geralmente feitos a pé, proporcionam descobertas e encontros que resultam em pesquisas multidisciplinares.
A questão do tempo já merece uma apreciação mais subjetiva. Se o artista, por
um lado, ganha condições concretas para agilizar seu trabalho (oficinas, materiais e despesas pagas para não ter de se
preocupar com seu final de mês), por outro lado deve estar predisposto a uma demora maior para encontrar suas ferramentas habituais (onde comprar determinado papel; qual o melhor laboratório
fotográfico; como construir uma caixa).
Ora, é nessas circunstâncias dificilmente tangíveis que se reconhece o impacto, e portanto o valor, da experiência
da residência na formação do artista.
Não é a profusão dos recursos, mas, sobretudo, sua eventual falta que pode levá-lo a operar transformações importantes em sua linguagem. Rivane Neuenschwander, a primeira brasileira a ser contemplada pelo Iaspis, encontra-se nessa
tentativa de reconstruir seu vocabulário
simbólico e formal num ateliê quatro vezes maior que o espaço onde trabalha,
em Belo Horizonte. Antes disso, passara
dois anos no Royal College de Londres,
onde, pelo contrário, a exiguidade de seu
local de trabalho foi determinante para o
ambiente que construiu na 24ª Bienal de
Arte de São Paulo.
Usando plástico transparente e adesivo, coletou pequenas sobras encontradas nos trajetos da casa (migalhas de
pão, casca de cebola, pêlos etc.), que acabaram servindo de alicerce para ladrilhar
o espaço institucional da arte. A discussão se inseria na confluência do interno
(o doméstico) com o externo (a linguagem internacional do minimalismo).
Institucionalização da arte
São
fatores decisivos que conseguem atrair
artistas do calibre de Annette Messager,
Felix Gonzales-Torres, Mona Hatoum,
Regina Silveira, Maurizio Cattelan e Janine Antoni a esse nomadismo cultural.
Menos ponderável é afirmar que a residência internacional entrou na lista de
compromissos dos artistas; isto é, virou
uma forma contemporânea de planejar
uma carreira, sabendo potencializar o
prestígio e o conhecimento adquiridos
nesse projeto semi-educacional e semiprofissional no exterior.
A rápida institucionalização da arte
pode ser verificada na programação de
residências deste verão em Estocolmo,
que já entrega o mapa das inter-relações
entre as partes do mundo: são artistas
provenientes de Paris, Belo Horizonte,
Nova York, Bancoc, Berlim, Camarões,
Londres, Buenos Aires, Barcelona e
China.
Lisette Lagnado é crítica de arte e curadora independente, autora de "Leonilson - São Tantas as
Verdades" (Dórea Books and Art).
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