São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2000

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+ arte
Reunindo grandes nomes da criação contemporânea, programa internacional de residência coloca Estocolmo, na Suécia, no mapa das artes plásticas da Europa
Nomadismo cultural

Lisette Lagnado
especial para a Folha , de Estocolmo

Além de Paris, Barcelona, Londres e Berlim, Estocolmo, capital da Suécia, ingressou na rota das cidades atrativas para os artistas contemporâneos. Isso se deve ao dinamismo do programa internacional de residência, Iaspis (Programa de Ateliê de Artistas Internacionais na Suécia), atualmente dirigido por Daniel Birnbaum, crítico e colaborador da revista "Art Forum". Existem inúmeros programas de residência artística no mundo inteiro, cada qual com seu modo operante. Aqueles que dependem de um convite para a participação, como é o caso do Iaspis, dificultam seu acesso a fim de cunhar uma determinada orientação cultural. São os mais prestigiosos. O que deve ser ressaltado é que o convite significa que o artista passou por uma escolha internacional, submetendo sua produção ao olhar de um conselho de profissionais, fora da proteção de seu clã. Supõem-se alguns critérios para nortear o processo de indicação: o momento do artista na sua trajetória profissional, a contemporaneidade de sua linguagem, a possibilidade de essa experiência gerar desdobramentos na sua pesquisa atual, a relação da poética desse artista com a coletividade local. Localizada na região central de Estocolmo, cercada pelo comércio eclético dos calçadões onde se mesclam turistas e camelôs nos arredores do Kulturhuset, a sede do Iaspis tomou conta da Royal Academy of Fine Arts, a pouca distância da histórica Gamla Stan. Construído no século 19, o prédio ostenta, ao longo de seus quatro andares com pé direito monumental, o charme de uma majestade deteriorada que ainda guarda a memória de seus encantos. Por seus extraordinários corredores, que se desdobram em três espaços expositivos (pequenas galerias para "Project Rooms"), foram alojados 11 ateliês individuais para os artistas residentes, além de um auditório, cafeteria, biblioteca e livraria.

Ambiente multidisciplinar
Mas falar das instalações físicas do Iaspis é uma abordagem insuficiente para justificar a importância do programa em questão. Não resta dúvida de que receber uma estrutura financeira representa uma rara possibilidade de o artista se dedicar a um projeto mais experimental, sem compromisso com o mercado, isto é, sem a necessidade de fabricar objetos palatáveis para a venda. Ultrapassado o aspecto material, o que distingue essa iniciativa é sua capacidade de fomentar um ambiente multidisciplinar, propício inclusive a performances, onde são organizados seminários sobre arte contemporânea internacional, contando com presenças estelares em diversas áreas.
Aqui chegam artistas e teóricos do mundo inteiro, empenhados em redefinir questões cruciais na estética de nosso tempo, cuja prática consegue tanto absorver quanto transcender técnicas entendidas hoje como tradicionais (pintura, escultura, vídeo).
Desde 1998, o Iaspis convidou, entre outros, Okwui Enwezor, atual curador da "Documenta 11" (prevista para 2002), que discorreu sobre as relações afro-americanas na poesia e na arte, e Hans-Ulrich Obrist, do Museu de Arte Moderna de Paris. Debates sobre as influências do cinema nas artes plásticas trouxeram artistas seminais, como Stan Douglas, enquanto Louise Lawler, Chris Burden e Janine Antoni reavivaram as características sempre inquietantes de suas obras. Ao editor Paul Foss, de Sydney, coube transmitir a história de sua conceituada revista "Art & Text". A pergunta que surge, ao visitar um lugar como esse, é: quais as transformações que um programa de residência pode acarretar no percurso de um artista? Mais do que uma simples mudança de lugar, residir no estrangeiro é uma vivência do "dépaysement". A insatisfação com processos já decodificados leva o artista a aspirar a um exílio voluntário. Ele se coloca na condição de desorientado para precisar se reterritorializar; escolhe perder-se e, ao traçar rotas imprevistas, incorpora idéias e hábitos inusitados, constrói uma nova narrativa. A experiência da hostilidade, o choque com diferentes culturas, tramas sociais e urbanas, tudo converge para a aquisição de outros métodos de trabalho, estimulando o artista a investigar materiais que até então não dominava.

Suspender o cotidiano
Mas para que tipo de artista essa premissa do deslocamento representa uma contribuição e não uma paralisia em sua trajetória? Percebe-se que tanto artistas emergentes como aqueles de carreira mais consolidada são atraídos por uma vontade de suspender seu cotidiano; colocam sob suspeita um reconhecimento pautado apenas por relações familiares. Esse programa, baseado no diálogo entre artistas suecos e de outros lugares, na realidade só é útil àqueles interessados em questionar perspectivas ou, digamos, sensibilidades culturais. Não é suficiente demonstrar assiduidade no ateliê, pois percebeu-se que essa concepção corria o risco de confinar o caráter inventivo da arte, tirando-lhe relevância e representatividade para expressar o mundo. Residências no exterior apostam no convívio com a dessemelhança. Tamanho é o abalo que aquela produção artística, recolhida no seu confortável local de origem, passa a revestir ranços de um espírito senão provinciano, ao menos acanhado. De fato, a questão do deslocamento, que já é um assunto recorrente há séculos no imaginário literário e artístico, consegue injetar uma nova escala ao trabalho, além de alimentar um farto "turismo cultural" (leia texto ao lado). Nesse sentido, a manipulação de ingredientes exóticos, a despeito dos valores estéticos da obra, apresenta um perigo a ser ponderado. As origens dessa tradição poderiam ser encontradas na Villa Medicis, fruto de uma vontade do rei Luís 14 de enviar artistas franceses para a Itália; mas é somente neste século que se firma a idéia de "comunidade" de artistas, nos EUA, em que os verões no Black Mountain College (1933-56) rapidamente evoluíram para "lugar mítico da modernidade". A presença de Albers, fugido da Alemanha nazista após o fechamento da Bauhaus, foi determinante nessa escola experimental que acolheria Rauschenberg, John Cage e Merce Cunningham, entre muitos outros. Hoje, cabe citar a ArtPace (em San Antonio), uma fundação voltada para projetos em arte experimental que, em poucos anos, ganhou a reputação de "laboratório de sonhos". Países fora do "jet set" (Índia, Tailândia e Turquia) também mantêm programas que exercem fascínio -provocando uma pergunta um tanto impertinente, isto é, o que leva um artista a requerer esse tipo de travessia no seu processo formativo? Pois nem todos os locais são centros de atração urbana, como pode ser verificado nos estatutos do Banff Centre School of Fine Arts (Alberta, Canada), existente desde 1984, que foi concebido para ser um lugar de reclusão do mundo exterior, mas de intenso convívio interno, onde o artista tem o privilégio de interagir entre seus pares, com a única obrigação de desenvolver seu projeto.

Reconstruir o vocabulário
É inevitável reconhecer que o programa de residência altera concepções de espaço e de tempo na produção do artista. De espaço, pois a configuração do ateliê oferecido sempre causa um estranhamento e os trajetos, geralmente feitos a pé, proporcionam descobertas e encontros que resultam em pesquisas multidisciplinares. A questão do tempo já merece uma apreciação mais subjetiva. Se o artista, por um lado, ganha condições concretas para agilizar seu trabalho (oficinas, materiais e despesas pagas para não ter de se preocupar com seu final de mês), por outro lado deve estar predisposto a uma demora maior para encontrar suas ferramentas habituais (onde comprar determinado papel; qual o melhor laboratório fotográfico; como construir uma caixa). Ora, é nessas circunstâncias dificilmente tangíveis que se reconhece o impacto, e portanto o valor, da experiência da residência na formação do artista. Não é a profusão dos recursos, mas, sobretudo, sua eventual falta que pode levá-lo a operar transformações importantes em sua linguagem. Rivane Neuenschwander, a primeira brasileira a ser contemplada pelo Iaspis, encontra-se nessa tentativa de reconstruir seu vocabulário simbólico e formal num ateliê quatro vezes maior que o espaço onde trabalha, em Belo Horizonte. Antes disso, passara dois anos no Royal College de Londres, onde, pelo contrário, a exiguidade de seu local de trabalho foi determinante para o ambiente que construiu na 24ª Bienal de Arte de São Paulo. Usando plástico transparente e adesivo, coletou pequenas sobras encontradas nos trajetos da casa (migalhas de pão, casca de cebola, pêlos etc.), que acabaram servindo de alicerce para ladrilhar o espaço institucional da arte. A discussão se inseria na confluência do interno (o doméstico) com o externo (a linguagem internacional do minimalismo).

Institucionalização da arte
São fatores decisivos que conseguem atrair artistas do calibre de Annette Messager, Felix Gonzales-Torres, Mona Hatoum, Regina Silveira, Maurizio Cattelan e Janine Antoni a esse nomadismo cultural. Menos ponderável é afirmar que a residência internacional entrou na lista de compromissos dos artistas; isto é, virou uma forma contemporânea de planejar uma carreira, sabendo potencializar o prestígio e o conhecimento adquiridos nesse projeto semi-educacional e semiprofissional no exterior.
A rápida institucionalização da arte pode ser verificada na programação de residências deste verão em Estocolmo, que já entrega o mapa das inter-relações entre as partes do mundo: são artistas provenientes de Paris, Belo Horizonte, Nova York, Bancoc, Berlim, Camarões, Londres, Buenos Aires, Barcelona e China.


Lisette Lagnado é crítica de arte e curadora independente, autora de "Leonilson - São Tantas as Verdades" (Dórea Books and Art).


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