São Paulo, Domingo, 09 de Janeiro de 2000


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O escritor analisa o futuro de uma criança nascida no final do milênio
Carta para o cidadão 6.000.000.000 º

por Salman Rushdie

Querido Seis Bilionésimo Ser Humano,
Como mais novo membro de uma espécie notoriamente curiosa, é provável que você não demore muito para começar a fazer as duas perguntas-chave, os dois xis da questão, com as quais os outros 5.999.999.999 de nós temos nos batido por algum tempo:
Como viemos parar aqui?
E, agora que estamos aqui, como devemos viver?
Estranhamente -como se 6 bilhões de nós ainda não dessem para o gasto-, é quase certo que insinuarão a você que a resposta à questão das origens exige a crença na existência de um Ser à parte, invisível, inefável, um ser "nalgum lugar lá em cima", um "omni potent creator" que nós, pobres criaturas, somos incapazes até mesmo de perceber, que dirá compreender. Ou seja, você será fortemente estimulado a imaginar um paraíso, com pelo menos um deus residente.
Esse deus-céu, dizem, fez o universo ao mesclar seus ingredientes num gigantesco pote. Ou ao dançar. Ou ao vomitar de seu interior a criação. Ou simplesmente ao chamá-la à existência e, veja!, ela Foi. Em algumas das mais interessantes histórias da criação, o deus-céus único, todo-poderoso, é subdividido em várias forças menores, divindades subalternas, avatares, "ancestrais" metamórficos gigantes.

As verdadeiras guerras religiosas sâo as que os cultos deflagram contra os cidadãos comuns


As aventuras dele criam a paisagem ou os panteões excêntricos, esdrúxulos, bisbilhoteiros e cruéis do grande politeísmo, cujos feitos desregrados irão convencê-lo de que o verdadeiro móbil da criação era o desejo: pelo poder infindo, por corpos humanos frágeis demais, por nuvens de glória. Mas é apenas justo acrescentar que também há histórias das quais se infere a mensagem que o primeiro impulso criativo foi, e é, o amor. Muitas dessas histórias irão surpreendê-lo como extremamente belas e sedutoras. Infelizmente, contudo, não lhe pedirão uma resposta puramente literária a elas. Apenas as histórias das religiões "mortas" podem ser apreciadas por sua beleza. Religiões vivas exigem muito mais de você. Assim, irão lhe dizer que a crença em "suas" histórias e a adesão aos rituais de culto que cresceram a seu redor devem se tornar parte vital de sua vida pelo mundo afora. Elas serão chamadas de cerne de sua cultura, ou mesmo de sua identidade individual.

Uma prisão É possível que, em algum ponto, elas pareçam inescapáveis, não do modo que a verdade é inescapável, mas do modo que o é uma prisão. Em algum ponto elas talvez deixem de parecer textos em que seres humanos tentaram solucionar um grande mistério e passem a parecer, em vez disso, pretextos para que outros seres humanos, devidamente ungidos, o tiranizem. E a verdade é que a história humana está repleta da opressão pública semeada pelos aurigas dos deuses. Na opinião da gente religiosa, contudo, o conforto pessoal que a religião propicia mais que compensa o mal praticado em seu nome. À medida que o conhecimento humano foi crescendo, tornou-se claro que toda a história religiosa já contada sobre como viemos parar aqui era simplesmente incorreta. Isso, afinal, é o que todas as religiões têm em comum. Elas não entenderam nada. Não houve mescla celestial de ingredientes, nem dança demiúrgica, nem vômito de galáxias, nem ancestrais cobras ou cangurus, nem Valhala, nem Olimpo, nem o truque dos seis dias conjuratórios seguidos por um dia de descanso. Nada, nada, nada disso. Mas aqui há uma coisa genuinamente estranha. A incorreção das lendas sagradas não diminuiu em nada o zelo do devoto. Quando muito, o puro burlesco fora de compasso da religião leva o religioso a insistir com estridência tanto maior no mérito da fé cega. Como resultado dessa fé, por sinal, revelou-se impossível, em muitas partes do mundo, evitar que os números da raça humana inchassem alarmantemente. Botem a culpa pelo planeta superpovoado, ao menos em parte, no desgoverno dos guias espirituais da raça. Ainda em vida, você pode muito bem presenciar o advento do nove bilionésimo cidadão do mundo. Se for indiano (e a chance de que você seja é de um para seis), você estará vivo quando, graças ao colapso dos programas de planejamento familiar nesse pobre país subjugado por Deus, sua população suplantar a da China. (Se gente demais está nascendo como resultado, em parte, das censuras ao controle de natalidade, gente demais também está morrendo porque a cultura religiosa, ao se recusar a encarar os fatos da sexualidade humana, recusa-se também a lutar contra a disseminação das doenças sexualmente transmissíveis.) Há quem diga que as grandes guerras do novo milênio serão outra vez guerras religiosas, jihads e cruzadas, tal como foram na Idade Média. Não acredito neles, pelo menos não da forma como eles dizem. Veja o mundo muçulmano, ou melhor, o mundo islâmico, a expressão cunhada para descrever hoje em dia o "braço político" do islã. As divisões entre suas grandes potências (Afeganistão versus Irã versus Iraque versus Arábia Saudita versus Síria versus Egito) são o que forçosamente mais impressionam. Há muito pouco de algo que se assemelhe a um propósito comum. Mesmo depois que a Otan (aliança militar ocidental), entidade não-islâmica, moveu uma guerra pelos albaneses kosovares muçulmanos, o mundo islâmico tardou em prestar a tão necessária ajuda humanitária. As verdadeiras guerras religiosas são as guerras que as religiões deflagram contra os cidadãos comuns dentro de sua "esfera de influência". São elas guerras dos devotos contra os, em boa parte, indefesos fundamentalistas americanos, contra médicos pró-aborto, mulás contra a minoria judaica de seus países, fundamentalistas hindus em Bombaim (Índia) contra os muçulmanos cada vez mais temerosos daquela cidade. Os paladinos dessa guerra não precisam ser gente embotada, que marcha para a batalha, como sempre, com Deus a seu lado. Escolher a descrença é preferir a opinião ao dogma, é confiar em nossa humanidade em vez de nessas perigosas divindades. Assim, como você veio parar aqui? Não busque a resposta em livros de histórias. O imperfeito conhecimento humano talvez seja uma rua esburacada, porém é o único caminho para a sabedoria que vale a pena trilhar. Virgílio, crente de que o apicultor Aristeu era capaz de gerar espontaneamente novas abelhas a partir da carcaça putrefata de uma vaca, estava mais próximo da verdade sobre as origens do que todos os venerados livros do passado. A sabedoria antiga é o contra-senso moderno. Viva em harmonia com seu tempo, use o que sabemos e, à medida que você cresce, talvez a raça humana cresça com você e deixe de lado as criancices. Como diz a música, é fácil se você tentar. Quanto à nossa condição de mortais, a segunda grande pergunta: como viver? qual a ação certa, qual a errada? Tudo se resume a sua disposição de pensar por si próprio. Somente você pode decidir se quer receber a lei das mãos de sacerdotes e aceitar que o bem e o mal sejam algo exterior a nós mesmos. Cuidar da religião, ainda que nos mais sofisticados níveis, infantiliza nossa consciência ética ao supor árbitros morais infalíveis e tentadores irredimivelmente imorais acima de nós, os eternos pais, bem e mal, luz e trevas, do reino sobrenatural. Mas então como tomar decisões éticas sem um código ou juiz divino? Será a descrença apenas o primeiro passo rumo à morte cerebral do relativismo cultural, segundo o qual muitas coisas intoleráveis -circuncisão feminina, só para citar uma delas- podem ser desculpadas por razões culturais específicas, e será que a universalidade dos direitos humanos pode ser ignorada? (esse último exemplo de desserviço moral encontra defensores em alguns dos regimes mais autoritários do mundo e também, de forma desalentadora, nos editoriais do "Daily Telegraph").

A imprecisão da liberdade Bem, não, não é, mas as razões para tanto não são bem definidas. Só a ideologia linha-dura é bem definida. A liberdade, que é o termo que utilizo para a posição ético-secular, é inevitavelmente mais imprecisa. Sim, a liberdade é aquele espaço em que a contradição pode reinar, é uma discussão sem fim. Em si mesma, ela não é a resposta à pergunta da moral, mas o debate sobre essa pergunta.
E é também muito mais que mero relativismo, porque não é meramente um palavrório sem fim, mas um lugar em que as escolhas são feitas, os valores definidos e defendidos. A liberdade intelectual, na história européia, quase sempre significou a liberdade das coerções da Igreja, não do Estado. Essa era a batalha travada por Voltaire, e é também o que todos os seis bilhões de nós podíamos fazer por nós mesmos; a revolução em cadaum de nós poderia pagar a parcela ínfima, seis bilionésima, que nos cabe: de uma vez por todas poderíamos recusar que os sacerdotes, e as ficções em cujo nome eles alegam falar, fossem a polícia de nossas liberdades e de nossa conduta. De uma vez por todas poderíamos pôr as histórias de volta nos livros, pôr os livros de volta nas estantes e ver o mundo sem dogmas, desimpedido.
Imagine que não há paraíso, meu caro seis bilionésimo, e de pronto o céu será o limite.


Salman Rushdie (1947) é escritor britânico de origem indiana, autor de "Os Versos Satânicos" e "O Chão Que Ela Pisa" (ambos pela Companhia das Letras).
Copyright Salman Rushdie 1999. Publicado pela primeira vez na Inglaterra por Uitgeverij Podium, em outubro de 1999.
Tradução de José Marcos Macedo.


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