São Paulo, domingo, 10 de junho de 2001

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+ brasil 502 d.C.

Saudades de Roma

Sergio Paulo Rouanet

A latinidade pode significar coisas diferentes para diferentes pessoas, mas penso que está predominando hoje um conceito identitário. A identidade latina é o que distingue os povos latinos dos não-latinos, como a identidade lusófona é o que distingue os brasileiros dos seus vizinhos de língua castelhana. Como a germanidade ou a negritude, a latinidade reivindica uma diferença, demarca uma fronteira. Foi pelo menos assim que a viram, em geral, os participantes do seminário internacional "Vozes Universais da Latinidade", convocado recentemente no Rio pelo professor Cândido Mendes, aberto pelo vice-presidente Marco Maciel e parcialmente coordenado pelo ex-presidente de Portugal, Mario Soares, e pelo antigo diretor-geral da Unesco, Federico Mayor.
Mas o que dá aos mais de 30 países que integram a União Latina, com religiões diferentes, com instituições políticas diferentes, em estágios diferentes de desenvolvimento econômico, a sensação de partilharem uma identidade comum?
Essa identidade pode ser fundada em algo como o espírito latino. Graças a ele, os países latinos teriam uma inteligência própria, uma sensibilidade própria, uma forma própria de ver e de sentir, de dizer e de pensar. Essa definição da latinidade deriva de uma idéia muito pouco latina, usualmente expressa numa palavra alemã: é a idéia herderiana de "Volksgeist", fundamento da visão historicista do mundo, segundo a qual todos os povos têm um repertório específico de crenças e valores, que não podem ser transferidos a outros povos. Basta dar ao conceito de "Volk" uma extensão mais ampla e latinizar a expressão, traduzindo-a para uma fórmula mais eufônica -por exemplo, "genius populi"-, e teríamos credenciais perfeitamente respeitáveis para falar de um "espírito" latino. Mas o conceito de "espírito" parece criar mais problemas do que resolvê-los.

Biologia ou cultura Seria um conceito biológico? Nesse caso, tratar-se-ia de uma herança racial ou uma predisposição genética, em que os atributos mentais associados à latinidade fariam parte do genoma de certos indivíduos. Considerando o perfil ideológico de muitas personalidades que no passado elogiaram o espírito latino, essa maneira de encarar o problema não é inteiramente hipotética. Num certo momento, Mussolini viu no fascismo a encarnação mais perfeita da latinidade. Maurras acreditava na missão civilizadora da latinidade como um todo, cujo valor máximo era o primado da autoridade. "A barbárie faz círculo em torno da latinidade européia", escreveu ele. "Ficaremos um pouco mais protegidos contra o ataque dos bárbaros quando o princípio da ordem e da autoridade for reconhecido e saudado pelos homens do Rio e de Buenos Aires, de Bucareste e do Québec."
Ou seria um conceito antropológico, no sentido de que o espírito latino estaria presente em certas culturas e não em outras, ou mesmo no sentido de que serviria para definir uma totalidade supracultural ou civilização, na acepção de Samuel H. Huntington? Mas felizmente Huntington não fala em civilização latina. Tanto quanto posso entender, ele nos distribui entre quatro civilizações, a ocidental, a latino-americana, a ortodoxa e a africana. Mas não precisamos ficar aflitos com isso, como almas penadas que não sabem em que corpo vão encontrar hospitalidade.
Essa condição de ectoplasmas nos dispensa de seguir os conselhos que Huntington prodigaliza às diferentes civilizações e aos Estados que as integram. Por exemplo, a Turquia é aconselhada a abandonar a herança secular de Ataturk, se quiser se transformar no país-núcleo da civilização islâmica, e os Estados Unidos são instados a voltarem aos valores austeros dos pioneiros, se quiserem manter seu papel de liderança na civilização ocidental. Empalideço um pouco quando imagino o que ele recomendaria aos países latinos, se eles houvessem tido direito a uma civilização própria.
Ou seria uma atitude mental -ou mentalidade- inerente à língua latina e às suas herdeiras? Segundo essa teoria, o espírito latino não seria transmitido nem geneticamente nem pela tradição cultural, mas pelo idioma. A estrutura do latim condicionaria estruturas de pensamento comuns a todos os falantes de idiomas românicos.
De novo a pista foi dada por um pensador não-latino, Wilhelm von Humboldt, para quem cada língua é uma realização do espírito do povo, uma tentativa de concretizar, à sua maneira, as potencialidades desse espírito. Cada uma delas tem uma unidade, determinada por uma forma que lhe é própria. Humboldt sustenta que existe uma relação dialética entre língua e civilização: cada língua é produto de uma civilização, cada civilização é produto de uma língua.
A etnolinguística de Sapir e Whorf descende em linha reta dessa filosofia da linguagem. Baseando-se no estudo de várias línguas indígenas norte-americanas, Sapir afirma que o homem percebe o mundo por meio de sua língua. Influenciado por Sapir, Whorf estudou o hebraico e as línguas do México e da América Central, assim como o idioma hopi.
Suas conclusões são semelhantes às de Sapir: a língua condiciona a cultura. As idéias que um povo formula derivam dos limites e possibilidades de sua gramática e portanto diferem das concepções formuladas por outro povo, regido por outras categorias gramaticais. No que diz respeito ao latim, Humboldt afirmou que seu laconismo e precisão refletem a austeridade da Roma republicana, em contraste com o grego, cuja gramática explicaria certas características negativas da vida pública de Atenas, como o facciosismo e a propensão à retórica.

Estrutura do latim Em nossos dias, Umberto Eco escreveu que a estrutura do latim deu aos romanos um estilo próprio de pensar o mundo, uma certa maneira de organizar a realidade. Para ele, essa maneira pode ser definida pelos versos de Horácio: "Est modus in rebus: sunt certi denique fines/ Quos ultra citraque nequit consistere recto". É o pensamento do "limes", do limite, que vale num sentido espacial -as fronteiras do império- e também num sentido temporal, o que Eco ilustra com a invenção especificamente latina do ablativo absoluto. Para o romano, uma vez lançados os dados, o Rubicon não pode mais ser transposto, o que foi feito não pode mais ser desfeito nem os deuses podem fazer com que o acontecido tenha deixado de acontecer.
Mas não se proclama a existência de uma correlação apenas entre o latim e a mentalidade romana, mas entre o latim e a mentalidade dos povos modernos. Para Anatole France, por exemplo, "a parte mais bela do sangue francês é constituída pelo leite da loba romana. Todos que entre nós pensaram com vigor aprenderam a pensar em latim. Não exagero ao dizer que, se ignorarmos o latim, ignoraremos a soberana clareza do discurso. Todas as línguas são obscuras ao lado do latim. A literatura latina é mais própria que qualquer outra para formar os espíritos".
É claro que a literatura inglesa e a alemã são belas e profundas, prossegue Anatole, mas como poderá um colegial compreender as idéias nebulosas de Shakespeare, que erram no Hamlet de modo mais espectral que o fantasma do rei nas muralhas de Elsinor? E quantas brumas no "Fausto", essa obra-prima do mais luminoso dos gênios teutônicos! Comparem com as "Décadas" de Tito Lívio, em que tudo está ordenado, que não nos perturbam jamais, em que o pensamento é tão regular que nos dá lições serenas de patriotismo, de dedicação, da religião dos antepassados!
Tudo isso é muito subjetivo. Podemos extrair do poema de Horácio conclusões bem diferentes das tiradas por Eco. O "limes" romano não era fixo, mas sim a fronteira móvel de um império em expansão permanente. Além disso, não seria difícil demonstrar que a irreversibilidade temporal pode ser expressa de modo mais rigoroso com as locuções adverbiais de uma língua moderna que com os ablativos absolutos de uma frase latina.
Quanto a Anatole France, levaríamos mais a sério seu louvor da lucidez latina se não suspeitássemos de que para um intelectual francês do final do século 19 enaltecer a "clarté" latina diante da nebulosidade alemã era um gesto de patriotismo, depois da derrota de 1870.
Sim, o latim é importante, mas não porque essa língua e os idiomas que dela derivam tenham a virtude de gerar em seus usuários uma propensão especial para a clareza ou uma irresistível vocação para as humanidades. Não seria razoável, por exemplo, usar o latim como arma de guerra contra os visigodos modernos. Há mil razões válidas para ler e difundir a "Eneida", mas entre elas não está o projeto chauvinista de demolir o pragmatismo anglo-saxônico a golpes de hexâmetros. O latim é importante para todos os povos do mundo devido à riqueza excepcional da cultura latina.


A latinidade é mais um dos círculos em que devemos nos inserir, se quisermos fazer uma síntese do particular e do universal que corresponda à realidade de nossa formação histórica


E é importante para os povos latinos, além disso, porque é uma via insubstituível de acesso para a cultura e a história romana, que fazem parte de nossa própria história e nossa própria cultura. É isso o que une os países latinos, e não um suposto espírito latino. Se cariocas e genebrinos partilham a mesma identidade latina não é porque tenham um caráter nacional semelhante, derivado, sabe Deus por que desvios, da estrutura psíquica dos romanos, e sim porque os legionários que ocuparam a Helvécia falavam a mesma língua que os invasores da Lusitânia.
Essa origem linguística é condição necessária e suficiente para fundar um sentimento de identidade. Mas para que assumir essa identidade? Porque sem ela ficaríamos mais pobres. Estaríamos abrindo mão de uma parte de nós mesmos, descartando todo um capítulo do nosso passado e renunciando a articular nosso destino com uma historicidade imemorial que nos ultrapassa e da qual somos protagonistas.
Essa historicidade está inscrita na evolução de uma língua que começou há três milênios, em algum lugar do Lácio, e que sobreviverá enquanto houver no sertão do Nordeste uma criança pedindo água com uma palavra que seria compreendida por Cícero. Se não incorporássemos essa identidade, nossa história ficaria truncada, deficitária. Faltaria uma camada, e das mais decisivas, na sedimentação histórica de nossa personalidade. Não seríamos de fato plurais, ou só o seríamos em parte, defeito grave num mundo que requer cada vez mais uma perspectiva multiidentitária.
Essa perspectiva era usual na Idade Média. Todos tinham uma identidade múltipla. O homem devia lealdade a um poder local ou nacional, representado pelo suserano ou pelo rei, e a um poder supranacional, o papado. Com o advento das monarquias absolutas, essa lealdade dupla foi substituída pela lealdade unicamente ao rei: a religião do monarca deveria ser a religião do reino. A tirania da identidade única foi reforçada no século 19, no período áureo dos Estados nacionais. A pátria era uma figura materna exigente, que não admitia repartir com nenhuma rival o amor dos seus filhos. A Guerra Fria reintroduziu durante algum tempo o reino da dualidade.
Esperava-se que todos tivessem uma identidade nacional e também de certo modo uma identidade ideológica, supranacional, ligada ou à Otan (aliança militar ocidental) ou ao Pacto de Varsóvia (união bélica comandada pela ex-URSS). O fim da bipolaridade mostrou como essa construção era frágil. Voltamos ao passado. Em toda parte o homem está sendo forçado a assumir uma identidade única, como nos períodos mais arcaicos da história da humanidade. Tornamo-nos apenas sérvios ou apenas muçulmanos ou apenas bengalis. O resultado é o fundamentalismo.

Moldura pluralista Daí a importância, hoje em dia, de uma concepção multiidentitária que impeça o terrorismo da identidade única e deixe subsistir um espaço para a mais importante de nossas identidades, a identidade humana, que partilhamos com todos os habitantes do planeta.
Michael Walzer sugeriu que uma maneira de "civilizar" o particularismo seria integrá-lo em molduras pluralistas mais amplas. Num congresso sionista dos anos 30, David Ben-Gurion disse o seguinte: "Pertencemos a vários círculos. Como cidadãos palestinos, estamos no círculo de uma nação que aspira a uma pátria; como trabalhadores, estamos no círculo da classe operária; como filhos de nossa geração, estamos no círculo do mundo moderno; e nossas camaradas estão no círculo do movimento das mulheres trabalhadoras que lutam por sua emancipação". Basta acrescentar um último círculo, o do gênero humano como um todo, e teremos o quadro completo do verdadeiro universalismo, que nada tem de abstrato, porque resulta da superposição de várias identidades.
Cada círculo facilita um descentramento, um sair de si, uma internalização de pontos de vista alheios, uma apropriação de sucessivos papéis, até chegarmos ao papel mais geral, o do "Outro generalizado", na linguagem de George Herbert Mead, a perspectiva da humanidade como um todo.
É com essa tarefa que estamos confrontados no Brasil. Isso significa duas coisas, uma atividade prospectiva voltada para a criação de novas identidades e uma atividade arqueológica voltada para a recuperação de identidades esquecidas. A primeira atividade já está em andamento, segundo a geometria dos círculos múltiplos, evocada por Walzer.
Pertencemos a várias comunidades simultâneas, de caráter geográfico, social, de gênero, de faixa etária, todas se entrelaçando, todas tendendo a ultrapassar fronteiras meramente locais. Adquirimos com isso uma identidade nacional, outra de classe, outra ocupacional, outra cultural, outra religiosa, e chegamos em casos ideais a uma personalidade que representa um equilíbrio negociado entre todas elas.
A segunda atividade não se iniciou ainda, mas deveria se iniciar. Ela representa a desconstrução intencional de tudo aquilo que somos hoje. Temos que olhar para trás em busca daquelas identidades que desapareceram para formar a nossa. Precisamos assumir a identidade negra, a indígena, a portuguesa, a européia.
Mas, como elas por sua vez se constituíram pela mescla de identidades, teríamos que assumir, também, esses amálgamas. Foi no conflito que se fizeram essas sínteses, na experiência da divisão, da alma partida, da nostalgia de além-mar, e temos que refazer essa experiência. Foi a experiência vivida pelo escravo, sob a forma do banzo, saudades da África; pelo colonizador, sob a forma do que Capistrano de Abreu chamou de transoceanismo, saudades de Portugal; pelo cristão-novo, exilado no Brasil, "super flumina Babylonis", sob a forma do marranismo, saudades das "pedras brancas de Jerusalém"; pela nossa elite intelectual, sob a forma do que Mário de Andrade chamou, sarcasticamente, de doença de Nabuco, saudades da cultura francesa quando estamos no Brasil e saudades do Brasil quando estamos à beira do Sena.
Nessa marcha regressiva, devemos agregar a identidade latina a todas as demais. É preciso somar mais essa saudade a todas as outras. É a saudade do Lácio, nostalgia luminosa de prados e ovelhas, num mundo em que pastores tocavam flauta à sombra de uma faia e ensinavam os bosques a repetir o nome de Amaryllis. De resto foi Roma que tornou pensável o tema da identidade múltipla, a identidade que todo habitante do império tinha como cidadão romano, regido por um direito comum a todos, o "jus civile", e a identidade que tinha como natural de sua própria cidade, sujeito ao "jus gentis suae". A latinidade é mais um dos círculos em que devemos nos inserir, se quisermos fazer uma síntese do particular e do universal que corresponda à realidade de nossa formação histórica.
Rousseau escreveu que se sentia romano e quis uma vez imitar Mucius Scaevola, segurando um prato escaldante. Mas não é queimando a mão que se adquire a identidade latina, mas sim aprendendo latim. Só assim a latinidade poderá viver em nós, só assim aprenderemos com o piedoso Enéias a transformar o incêndio de Ílion na fundação de Roma, vencendo todas as adversidades: "Tantae molis erat romanam gentem condere".
O seminário do Rio não aperfeiçoou necessariamente nosso conhecimento da sintaxe latina, mas fez com que ficássemos um pouco mais romanos -e portanto um pouco mais universais. Se o encontro tivesse contribuído, também, para convencer nossas autoridades a reintroduzir nos currículos o ensino do latim, Cândido Mendes poderia orgulhar-se, como aquele poeta latino que ele conhece bem, de ter feito obra mais durável que o bronze: "Exegi monumentum aere perennius".

Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de, entre outros, "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".


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