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+ brasil 502 d.C.
Saudades de Roma
Sergio Paulo Rouanet
A latinidade pode significar coisas
diferentes para diferentes pessoas, mas penso que está predominando hoje um conceito identitário. A identidade latina é o que distingue os povos latinos dos não-latinos, como a identidade lusófona é o que distingue os brasileiros dos seus vizinhos de
língua castelhana. Como a germanidade
ou a negritude, a latinidade reivindica
uma diferença, demarca uma fronteira.
Foi pelo menos assim que a viram, em
geral, os participantes do seminário internacional "Vozes Universais da Latinidade", convocado recentemente no Rio
pelo professor Cândido Mendes, aberto
pelo vice-presidente Marco Maciel e parcialmente coordenado pelo ex-presidente de Portugal, Mario Soares, e pelo antigo diretor-geral da Unesco, Federico
Mayor.
Mas o que dá aos mais de 30 países que
integram a União Latina, com religiões
diferentes, com instituições políticas diferentes, em estágios diferentes de desenvolvimento econômico, a sensação
de partilharem uma identidade comum?
Essa identidade pode ser fundada em
algo como o espírito latino. Graças a ele,
os países latinos teriam uma inteligência
própria, uma sensibilidade própria, uma
forma própria de ver e de sentir, de dizer
e de pensar. Essa definição da latinidade
deriva de uma idéia muito pouco latina,
usualmente expressa numa palavra alemã: é a idéia herderiana de "Volksgeist",
fundamento da visão historicista do
mundo, segundo a qual todos os povos
têm um repertório específico de crenças
e valores, que não podem ser transferidos a outros povos. Basta dar ao conceito
de "Volk" uma extensão mais ampla e latinizar a expressão, traduzindo-a para
uma fórmula mais eufônica -por
exemplo, "genius populi"-, e teríamos
credenciais perfeitamente respeitáveis
para falar de um "espírito" latino. Mas o
conceito de "espírito" parece criar mais
problemas do que resolvê-los.
Biologia ou cultura Seria um conceito biológico? Nesse caso, tratar-se-ia de uma herança racial ou uma predisposição genética, em que os atributos mentais associados à latinidade fariam parte do genoma de certos indivíduos. Considerando o perfil ideológico de muitas
personalidades que no passado elogiaram o espírito latino, essa maneira de encarar o problema não é inteiramente hipotética. Num certo momento, Mussolini viu no fascismo a encarnação mais
perfeita da latinidade. Maurras acreditava na missão civilizadora da latinidade
como um todo, cujo valor máximo era o
primado da autoridade. "A barbárie faz
círculo em torno da latinidade européia", escreveu ele. "Ficaremos um pouco mais protegidos contra o ataque dos
bárbaros quando o princípio da ordem e
da autoridade for reconhecido e saudado
pelos homens do Rio e de Buenos Aires,
de Bucareste e do Québec."
Ou seria um conceito antropológico,
no sentido de que o espírito latino estaria
presente em certas culturas e não em outras, ou mesmo no sentido de que serviria para definir uma totalidade supracultural ou civilização, na acepção de Samuel H. Huntington? Mas felizmente
Huntington não fala em civilização latina. Tanto quanto posso entender, ele nos
distribui entre quatro civilizações, a ocidental, a latino-americana, a ortodoxa e
a africana. Mas não precisamos ficar aflitos com isso, como almas penadas que
não sabem em que corpo vão encontrar
hospitalidade.
Essa condição de ectoplasmas nos dispensa de seguir os conselhos que Huntington prodigaliza às diferentes civilizações e aos Estados que as integram. Por
exemplo, a Turquia é aconselhada a
abandonar a herança secular de Ataturk,
se quiser se transformar no país-núcleo
da civilização islâmica, e os Estados Unidos são instados a voltarem aos valores
austeros dos pioneiros, se quiserem
manter seu papel de liderança na civilização ocidental. Empalideço um pouco
quando imagino o que ele recomendaria
aos países latinos, se eles houvessem tido
direito a uma civilização própria.
Ou seria uma atitude mental -ou
mentalidade- inerente à língua latina e
às suas herdeiras? Segundo essa teoria, o
espírito latino não seria transmitido nem
geneticamente nem pela tradição cultural, mas pelo idioma. A estrutura do latim condicionaria estruturas de pensamento comuns a todos os falantes de
idiomas românicos.
De novo a pista foi dada por um pensador não-latino, Wilhelm von Humboldt,
para quem cada língua é uma realização
do espírito do povo, uma tentativa de
concretizar, à sua maneira, as potencialidades desse espírito. Cada uma delas tem
uma unidade, determinada por uma forma que lhe é própria. Humboldt sustenta
que existe uma relação dialética entre
língua e civilização: cada língua é produto de uma civilização, cada civilização é
produto de uma língua.
A etnolinguística de Sapir e Whorf descende em linha reta dessa filosofia da linguagem. Baseando-se no estudo de várias línguas indígenas norte-americanas,
Sapir afirma que o homem percebe o
mundo por meio de sua língua. Influenciado por Sapir, Whorf estudou o hebraico e as línguas do México e da América
Central, assim como o idioma hopi.
Suas conclusões são semelhantes às de
Sapir: a língua condiciona a cultura. As
idéias que um povo formula derivam dos
limites e possibilidades de sua gramática
e portanto diferem das concepções formuladas por outro povo, regido por outras categorias gramaticais. No que diz
respeito ao latim, Humboldt afirmou
que seu laconismo e precisão refletem a
austeridade da Roma republicana, em
contraste com o grego, cuja gramática
explicaria certas características negativas
da vida pública de Atenas, como o facciosismo e a propensão à retórica.
Estrutura do latim Em nossos dias,
Umberto Eco escreveu que a estrutura
do latim deu aos romanos um estilo próprio de pensar o mundo, uma certa maneira de organizar a realidade. Para ele,
essa maneira pode ser definida pelos versos de Horácio: "Est modus in rebus:
sunt certi denique fines/ Quos ultra citraque nequit consistere recto". É o pensamento do "limes", do limite, que vale
num sentido espacial -as fronteiras do
império- e também num sentido temporal, o que Eco ilustra com a invenção
especificamente latina do ablativo absoluto. Para o romano, uma vez lançados
os dados, o Rubicon não pode mais ser
transposto, o que foi feito não pode mais
ser desfeito nem os deuses podem fazer
com que o acontecido tenha deixado de
acontecer.
Mas não se proclama a existência de
uma correlação apenas entre o latim e a
mentalidade romana, mas entre o latim e
a mentalidade dos povos modernos. Para Anatole France, por exemplo, "a parte
mais bela do sangue francês é constituída
pelo leite da loba romana. Todos que entre nós pensaram com vigor aprenderam
a pensar em latim. Não exagero ao dizer
que, se ignorarmos o latim, ignoraremos
a soberana clareza do discurso. Todas as
línguas são obscuras ao lado do latim. A
literatura latina é mais própria que qualquer outra para formar os espíritos".
É claro que a literatura inglesa e a alemã são belas e profundas, prossegue
Anatole, mas como poderá um colegial
compreender as idéias nebulosas de Shakespeare, que erram no Hamlet de modo
mais espectral que o fantasma do rei nas
muralhas de Elsinor? E quantas brumas
no "Fausto", essa obra-prima do mais luminoso dos gênios teutônicos! Comparem com as "Décadas" de Tito Lívio, em
que tudo está ordenado, que não nos
perturbam jamais, em que o pensamento é tão regular que nos dá lições serenas
de patriotismo, de dedicação, da religião
dos antepassados!
Tudo isso é muito subjetivo. Podemos
extrair do poema de Horácio conclusões
bem diferentes das tiradas por Eco. O "limes" romano não era fixo, mas sim a
fronteira móvel de um império em expansão permanente. Além disso, não seria difícil demonstrar que a irreversibilidade temporal pode ser expressa de modo mais rigoroso com as locuções adverbiais de uma língua moderna que com os
ablativos absolutos de uma frase latina.
Quanto a Anatole France, levaríamos
mais a sério seu louvor da lucidez latina
se não suspeitássemos de que para um
intelectual francês do final do século 19
enaltecer a "clarté" latina diante da nebulosidade alemã era um gesto de patriotismo, depois da derrota de 1870.
Sim, o latim é importante, mas não
porque essa língua e os idiomas que dela
derivam tenham a virtude de gerar em
seus usuários uma propensão especial
para a clareza ou uma irresistível vocação para as humanidades. Não seria razoável, por exemplo, usar o latim como
arma de guerra contra os visigodos modernos. Há mil razões válidas para ler e
difundir a "Eneida", mas entre elas não
está o projeto chauvinista de demolir o
pragmatismo anglo-saxônico a golpes de
hexâmetros. O latim é importante para
todos os povos do mundo devido à riqueza excepcional da cultura latina.
A latinidade é mais um dos círculos em que devemos nos inserir, se quisermos fazer uma síntese do particular e do universal que corresponda à realidade de nossa formação histórica
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E é importante para os povos latinos,
além disso, porque é uma via insubstituível de acesso para a cultura e a história
romana, que fazem parte de nossa própria história e nossa própria cultura. É isso o que une os países latinos, e não um
suposto espírito latino. Se cariocas e genebrinos partilham a mesma identidade
latina não é porque tenham um caráter
nacional semelhante, derivado, sabe
Deus por que desvios, da estrutura psíquica dos romanos, e sim porque os legionários que ocuparam a Helvécia falavam a mesma língua que os invasores da
Lusitânia.
Essa origem linguística é condição necessária e suficiente para fundar um sentimento de identidade. Mas para que assumir essa identidade? Porque sem ela ficaríamos mais pobres. Estaríamos
abrindo mão de uma parte de nós mesmos, descartando todo um capítulo do
nosso passado e renunciando a articular
nosso destino com uma historicidade
imemorial que nos ultrapassa e da qual
somos protagonistas.
Essa historicidade está inscrita na evolução de uma língua que começou há três
milênios, em algum lugar do Lácio, e que
sobreviverá enquanto houver no sertão
do Nordeste uma criança pedindo água
com uma palavra que seria compreendida por Cícero. Se não incorporássemos
essa identidade, nossa história ficaria
truncada, deficitária. Faltaria uma camada, e das mais decisivas, na sedimentação histórica de nossa personalidade.
Não seríamos de fato plurais, ou só o seríamos em parte, defeito grave num
mundo que requer cada vez mais uma
perspectiva multiidentitária.
Essa perspectiva era usual na Idade
Média. Todos tinham uma identidade
múltipla. O homem devia lealdade a um
poder local ou nacional, representado
pelo suserano ou pelo rei, e a um poder
supranacional, o papado. Com o advento das monarquias absolutas, essa lealdade dupla foi substituída pela lealdade
unicamente ao rei: a religião do monarca
deveria ser a religião do reino. A tirania
da identidade única foi reforçada no século 19, no período áureo dos Estados
nacionais. A pátria era uma figura materna exigente, que não admitia repartir
com nenhuma rival o amor dos seus filhos. A Guerra Fria reintroduziu durante
algum tempo o reino da dualidade.
Esperava-se que todos tivessem uma
identidade nacional e também de certo
modo uma identidade ideológica, supranacional, ligada ou à Otan (aliança militar ocidental) ou ao Pacto de Varsóvia
(união bélica comandada pela ex-URSS).
O fim da bipolaridade mostrou como essa construção era frágil. Voltamos ao
passado. Em toda parte o homem está
sendo forçado a assumir uma identidade
única, como nos períodos mais arcaicos
da história da humanidade. Tornamo-nos apenas sérvios ou apenas muçulmanos ou apenas bengalis. O resultado é o
fundamentalismo.
Moldura pluralista Daí a importância, hoje em dia, de uma concepção
multiidentitária que impeça o terrorismo da identidade única e deixe subsistir
um espaço para a mais importante de
nossas identidades, a identidade humana, que partilhamos com todos os habitantes do planeta.
Michael Walzer sugeriu que uma maneira de "civilizar" o particularismo seria
integrá-lo em molduras pluralistas mais
amplas. Num congresso sionista dos
anos 30, David Ben-Gurion disse o seguinte: "Pertencemos a vários círculos.
Como cidadãos palestinos, estamos no
círculo de uma nação que aspira a uma
pátria; como trabalhadores, estamos no
círculo da classe operária; como filhos de
nossa geração, estamos no círculo do
mundo moderno; e nossas camaradas
estão no círculo do movimento das mulheres trabalhadoras que lutam por sua
emancipação". Basta acrescentar um último círculo, o do gênero humano como
um todo, e teremos o quadro completo
do verdadeiro universalismo, que nada
tem de abstrato, porque resulta da superposição de várias identidades.
Cada círculo facilita um descentramento, um sair de si, uma internalização
de pontos de vista alheios, uma apropriação de sucessivos papéis, até chegarmos ao papel mais geral, o do "Outro generalizado", na linguagem de George
Herbert Mead, a perspectiva da humanidade como um todo.
É com essa tarefa que estamos confrontados no Brasil. Isso significa duas
coisas, uma atividade prospectiva voltada para a criação de novas identidades e
uma atividade arqueológica voltada para
a recuperação de identidades esquecidas. A primeira atividade já está em andamento, segundo a geometria dos círculos múltiplos, evocada por Walzer.
Pertencemos a várias comunidades simultâneas, de caráter geográfico, social,
de gênero, de faixa etária, todas se entrelaçando, todas tendendo a ultrapassar
fronteiras meramente locais. Adquirimos com isso uma identidade nacional,
outra de classe, outra ocupacional, outra
cultural, outra religiosa, e chegamos em
casos ideais a uma personalidade que representa um equilíbrio negociado entre
todas elas.
A segunda atividade não se iniciou ainda, mas deveria se iniciar. Ela representa
a desconstrução intencional de tudo
aquilo que somos hoje. Temos que olhar
para trás em busca daquelas identidades
que desapareceram para formar a nossa.
Precisamos assumir a identidade negra,
a indígena, a portuguesa, a européia.
Mas, como elas por sua vez se constituíram pela mescla de identidades, teríamos que assumir, também, esses amálgamas. Foi no conflito que se fizeram essas sínteses, na experiência da divisão, da
alma partida, da nostalgia de além-mar,
e temos que refazer essa experiência. Foi
a experiência vivida pelo escravo, sob a
forma do banzo, saudades da África; pelo colonizador, sob a forma do que Capistrano de Abreu chamou de transoceanismo, saudades de Portugal; pelo cristão-novo, exilado no Brasil, "super flumina Babylonis", sob a forma do marranismo, saudades das "pedras brancas de
Jerusalém"; pela nossa elite intelectual,
sob a forma do que Mário de Andrade
chamou, sarcasticamente, de doença de
Nabuco, saudades da cultura francesa
quando estamos no Brasil e saudades do
Brasil quando estamos à beira do Sena.
Nessa marcha regressiva, devemos
agregar a identidade latina a todas as demais. É preciso somar mais essa saudade
a todas as outras. É a saudade do Lácio,
nostalgia luminosa de prados e ovelhas,
num mundo em que pastores tocavam
flauta à sombra de uma faia e ensinavam
os bosques a repetir o nome de Amaryllis. De resto foi Roma que tornou pensável o tema da identidade múltipla, a
identidade que todo habitante do império tinha como cidadão romano, regido
por um direito comum a todos, o "jus civile", e a identidade que tinha como natural de sua própria cidade, sujeito ao
"jus gentis suae". A latinidade é mais um
dos círculos em que devemos nos inserir,
se quisermos fazer uma síntese do particular e do universal que corresponda à
realidade de nossa formação histórica.
Rousseau escreveu que se sentia romano e quis uma vez imitar Mucius Scaevola, segurando um prato escaldante. Mas
não é queimando a mão que se adquire a
identidade latina, mas sim aprendendo
latim. Só assim a latinidade poderá viver
em nós, só assim aprenderemos com o
piedoso Enéias a transformar o incêndio
de Ílion na fundação de Roma, vencendo
todas as adversidades: "Tantae molis
erat romanam gentem condere".
O seminário do Rio não aperfeiçoou
necessariamente nosso conhecimento
da sintaxe latina, mas fez com que ficássemos um pouco mais romanos -e portanto um pouco mais universais. Se o encontro tivesse contribuído, também, para convencer nossas autoridades a reintroduzir nos currículos o ensino do latim, Cândido Mendes poderia orgulhar-se, como aquele poeta latino que ele conhece bem, de ter feito obra mais durável
que o bronze: "Exegi monumentum aere
perennius".
Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de, entre outros, "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente
na seção "Brasil 502 d.C.".
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