São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2000

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Obra organizada pelo curador da mostra americana traz análises do legado de Freud escritas por, entre outros, Peter Gay, Oliver Sacks e Adolf Grünbaum
Culto, devoração ou dissolução

por Marcelo Coelho

Conflito e Cultura", esta coletânea de ensaios, foi editada nos Estados Unidos em 1998 por ocasião da exposição de mesmo nome feita pela Biblioteca do Congresso de Washington. Contribuem para o livro não só personalidades simpáticas ao legado de Freud, como seu biógrafo Peter Gay ("A Psicanálise e o Historiador") e o psicanalista Patrick Mahony ("O Mundo Freudiano do Trabalho"), mas também autores distantes do referencial freudiano, como o neurologista Oliver Sacks ("A Outra Estrada") e o psiquiatra Peter Kramer, autor de "Ouvindo o Prozac", que traz aqui um texto discretamente intitulado "Freud - Projeções Atuais".
O livro, que está sendo lançado no Brasil (Jorge Zahar Editor, 264 págs., R$ 37), se divide em quatro partes. A primeira, "Escrevendo e Trabalhando", enfoca os manuscritos de Freud, seu "ritmo furioso" de trabalho intelectual (a expressão é de Patrick Mahony), as curiosas anotações de Freud sobre a aparência física de homens famosos, feitas quando de sua visita à National Portrait Gallery de Londres -traduzidas para o inglês e comentadas por Michael Molnar, diretor do Freud Museum de Londres- e as estratégias retóricas de "A Interpretação dos Sonhos", num texto de John Forrester, professor de história e filosofia da ciência em Cambridge.
É nesse ensaio, o último da primeira parte, que começamos a perceber que esta coletânea não tem nada de puramente oficial e celebratório. O título "Conflito e Cultura", que à primeira vista parece uma daquelas vagas junções de palavras usadas para encimar coleções de ensaios díspares, se revela afinal muito adequado.

Sonhos imaginados
"Retrato de um Leitor de Sonhos", o texto de John Forrester, aponta com controlada ironia as artimanhas de persuasão usadas por Freud em "A Interpretação dos Sonhos". Haveria um jogo em que o primeiro leitor do livro, Wilhelm Fliess, é eleito como censor do manuscrito -ao mesmo tempo em que Freud imagina os próprios sonhos como "textos censurados" e, revelando-os ao leitor, antecipa-se às censuras que este lhe possa fazer. O ceticismo do leitor, ou as resistências do paciente típico diante das interpretações psicanalíticas, são por assim dizer engolfados pela escrita previdente de Freud.
Essa descrição maliciosa do texto freudiano é pouca coisa, entretanto, diante dos ataques mais abertos da última parte do livro, "Heranças Contestadas", em especial o texto do filósofo da ciência Adolf Grünbaum, "Um Século de Psicanálise". Talvez seja o escrito mais técnico do livro, que em geral se pauta por grande acessibilidade. Seria o recalcamento uma "causa" da neurose? E, se fosse, sua eliminação resultaria em cura? Duas suposições infundadas, diz Grünbaum, que destaca, por exemplo, as contradições de Freud quanto ao necessário "esquecimento" da psique diante de experiências angustiantes.
Outro filósofo, Frank Cioffi, recenseia as clássicas objeções quanto à inverificabilidade científica da teoria freudiana. Ou seja, se duvidamos de Freud ou levantamos argumentos contrários à psicanálise, isso seria devido ao desconforto que suas revelações nos provocam, de modo que toda crítica a Freud seria de imediato absorvida pelo seu sistema -o que o torna imune e alheio, portanto, a qualquer padrão de verificação científica. Cioffi faz uma avaliação minuciosa dessas críticas à psicanálise, refutando, mas não totalmente, o veredicto de autores como Paul Meehl e Peter Medawar -este último classifica a psicanálise como "estupendo conto-do-vigário".
O artigo da psicanalista Muriel Dimen, sobre "a relação paradoxal entre a psicanálise e o feminismo" é provavelmente o que deixa mais atônito o leitor brasileiro, tal sua quantidade de referências à controvérsia do feminismo americano em torno da psicanálise.
Curiosamente, um neurologista como Oliver Sacks se mostra bem mais simpático a Freud do que os filósofos da ciência. Descreve, de maneira acessível, as experiências de Freud durante os 20 anos em que ele se dedicou à neurologia e à anatomia. Também é sobre o período "pré-psicanalítico" um dos ensaios mais fascinantes do livro, o do psiquiatra Harold Blum a respeito das "heterodoxias" que Freud introduziu no uso da hipnose.
A segunda parte da coletânea, à qual pertence o texto de Blum, traz também uma sucinta avaliação do "caso Dora", por Hannah Decker, e estudos sobre as relações da teoria edipiana com a moral e a política.
Em meio a tantas avaliações críticas e internamente conflituosas, a terceira parte do livro, "Assimilação e Disseminação", parece dedicar-se ao legado cultural da psicanálise, sua absorção pela opinião pública. É o trecho menos interessante do livro. Peter Gay aponta, num texto programático, a necessidade de os historiadores se interessarem mais por Freud. E. Ann Kaplan faz um balanço rápido da presença da psicanálise no cinema, e Robert Coles e Edith Kurzweil tratam, com bastante otimismo, da recepção de Freud nos EUA. Com textos de ótima qualidade e procurando acima de tudo se equilibrar entre refutações e avaliações positivas do pensamento freudiano, este livro, afinal, parece deixar o leitor com uma sensação de ambivalência: culto ao ancestral, devoração de Freud ou dissolução de seu legado? O mais interessante talvez seja perceber, ao longo do livro, o quanto de conflitos e de tensões parece marcar, longe de qualquer sacralização, a própria obra freudiana.


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