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Obra organizada pelo curador da mostra americana traz análises do legado de Freud escritas por, entre outros, Peter Gay, Oliver Sacks e Adolf Grünbaum
Culto, devoração ou dissolução
por Marcelo Coelho
Conflito e Cultura", esta coletânea de ensaios, foi
editada nos Estados Unidos em 1998 por ocasião da exposição de mesmo nome feita pela Biblioteca do Congresso de Washington. Contribuem para o livro não só personalidades simpáticas ao
legado de Freud, como seu biógrafo Peter Gay ("A Psicanálise e o Historiador") e o psicanalista Patrick Mahony ("O Mundo Freudiano do Trabalho"), mas também autores distantes do referencial freudiano, como o
neurologista Oliver Sacks ("A Outra Estrada") e o psiquiatra Peter Kramer, autor de "Ouvindo o Prozac",
que traz aqui um texto discretamente intitulado "Freud
- Projeções Atuais".
O livro, que está sendo lançado no Brasil (Jorge Zahar
Editor, 264 págs., R$ 37), se divide em quatro partes. A
primeira, "Escrevendo e Trabalhando", enfoca os manuscritos de Freud, seu "ritmo furioso" de trabalho intelectual (a expressão é de Patrick Mahony), as curiosas
anotações de Freud sobre a aparência física de homens
famosos, feitas quando de sua visita à National Portrait
Gallery de Londres -traduzidas para o inglês e comentadas por Michael Molnar, diretor do Freud Museum de
Londres- e as estratégias retóricas de "A Interpretação
dos Sonhos", num texto de John Forrester, professor de
história e filosofia da ciência em Cambridge.
É nesse ensaio, o último da primeira parte, que começamos a perceber que esta coletânea não tem nada de
puramente oficial e celebratório. O título "Conflito e
Cultura", que à primeira vista parece uma daquelas vagas junções de palavras usadas para encimar coleções
de ensaios díspares, se revela afinal muito adequado.
Sonhos imaginados
"Retrato de um Leitor de Sonhos", o texto de John Forrester, aponta com controlada ironia as artimanhas de persuasão usadas por Freud
em "A Interpretação dos Sonhos". Haveria um jogo em
que o primeiro leitor do livro, Wilhelm Fliess, é eleito
como censor do manuscrito -ao mesmo tempo em
que Freud imagina os próprios sonhos como "textos
censurados" e, revelando-os ao leitor, antecipa-se às
censuras que este lhe possa fazer. O ceticismo do leitor,
ou as resistências do paciente típico diante das interpretações psicanalíticas, são por assim dizer engolfados pela escrita previdente de Freud.
Essa descrição maliciosa do texto freudiano é pouca
coisa, entretanto, diante dos ataques mais abertos da última parte do livro, "Heranças Contestadas", em especial o texto do filósofo da ciência Adolf Grünbaum,
"Um Século de Psicanálise". Talvez seja o escrito mais
técnico do livro, que em geral se pauta por grande acessibilidade. Seria o recalcamento uma "causa" da neurose? E, se fosse, sua eliminação resultaria em cura? Duas
suposições infundadas, diz Grünbaum, que destaca,
por exemplo, as contradições de Freud quanto ao necessário "esquecimento" da psique diante de experiências angustiantes.
Outro filósofo, Frank Cioffi, recenseia as clássicas objeções quanto à inverificabilidade científica da teoria
freudiana. Ou seja, se duvidamos de Freud ou levantamos argumentos contrários à psicanálise, isso seria devido ao desconforto que suas revelações nos provocam,
de modo que toda crítica a Freud seria de imediato absorvida pelo seu sistema -o que o torna imune e
alheio, portanto, a qualquer padrão de verificação científica. Cioffi faz uma avaliação minuciosa dessas críticas
à psicanálise, refutando, mas não totalmente, o veredicto de autores como Paul Meehl e Peter Medawar -este
último classifica a psicanálise como "estupendo conto-do-vigário".
O artigo da psicanalista Muriel Dimen, sobre "a relação paradoxal entre a psicanálise e o feminismo" é provavelmente o que deixa mais atônito o leitor brasileiro,
tal sua quantidade de referências à controvérsia do feminismo americano em torno da psicanálise.
Curiosamente, um neurologista como Oliver Sacks se
mostra bem mais simpático a Freud do que os filósofos
da ciência. Descreve, de maneira acessível, as experiências de Freud durante os 20 anos em que ele se dedicou à
neurologia e à anatomia. Também é sobre o período
"pré-psicanalítico" um dos ensaios mais fascinantes do
livro, o do psiquiatra Harold Blum a respeito das "heterodoxias" que Freud introduziu no uso da hipnose.
A segunda parte da coletânea, à qual pertence o texto
de Blum, traz também uma sucinta avaliação do "caso
Dora", por Hannah Decker, e estudos sobre as relações
da teoria edipiana com a moral e a política.
Em meio a tantas avaliações críticas e internamente
conflituosas, a terceira parte do livro, "Assimilação e
Disseminação", parece dedicar-se ao legado cultural da
psicanálise, sua absorção pela opinião pública. É o trecho menos interessante do livro. Peter Gay aponta, num
texto programático, a necessidade de os historiadores
se interessarem mais por Freud. E. Ann Kaplan faz um
balanço rápido da presença da psicanálise no cinema, e
Robert Coles e Edith Kurzweil tratam, com bastante otimismo, da recepção de Freud nos EUA. Com textos de
ótima qualidade e procurando acima de tudo se equilibrar entre refutações e avaliações positivas do pensamento freudiano, este livro, afinal, parece deixar o leitor
com uma sensação de ambivalência: culto ao ancestral,
devoração de Freud ou dissolução de seu legado? O
mais interessante talvez seja perceber, ao longo do livro,
o quanto de conflitos e de tensões parece marcar, longe
de qualquer sacralização, a própria obra freudiana.
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