|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de fuga
Ser parido aos pedaços
Jorge Coli
especial para a Folha
Faltou a Ismael Nery um taquígrafo,
escreveu Murilo Mendes. É provável,
porém, que a mais fiel transcrição de
suas falas não fosse suficiente. Ismael
Nery (1900-1934) pertenceu a uma espécie que, de raro em raro, aparece na
história das artes. Uma personalidade
intuitiva, muito poderosa, capaz de
marcar para sempre os que gravitavam
ao seu entorno.
Um artista cuja suprema obra seria
ele mesmo. Mário de Andrade, tentando compreender seus quadros, percebeu muito bem o caráter fragmentário
que apresentavam, como se participassem de uma essência mais completa, situada para além deles próprios.
Nery tinha a consciência de que suas
manifestações criadoras -que iam da
poesia à dança e à filosofia- eram fenômenos secundários e efêmeros. O
núcleo de tudo seria uma espiritualidade católica, exigente e visionária, cônscia de sua superioridade filosófica, de
seu tino profético. A retrospectiva dos
desenhos e quadros de Nery, ora apresentada na Faap (Fundação Armando
Álvaro Penteado, em São Paulo), não
pode ser vista fora dessa totalidade. Um
todo que se ampliou, ao derramar-se
na amizade fraterna com Murilo Mendes, no amor pela esposa Adalgisa
-ela também poeta, mas cujos versos
são, com injustiça, esquecidos nas histórias da literatura brasileira. Forças individuais e afinidades eletivas se fundem: as obras de Nery são pistas para
compreendê-las.
Centro - Os desenhos de Ismael Nery
são fascinantes e plenamente dominados. Algumas de suas telas atingem
uma qualidade muito alta, outras menos. O artista é atravessado, do art déco
ao surrealismo, por muitos dos instrumentos formais de sua época, que ele
utiliza como quem emprega uma gramática. São meios, e não importam: o
que deve ser dito o será de qualquer forma. O artista emprega aquilo de que
dispõe, segundo o momento ou segundo a vontade.
Posteridade - Ismael Nery inspirou
alguns dos mais belos textos de exegese
escritos em nosso país. Em primeiro lugar estão os artigos de Murilo Mendes,
hoje enfeixados no livro "Recordações
de Ismael Nery" (Edusp). O estímulo
persiste: além do ótimo estudo de Davi
Arrigucci Jr., que serve de prefácio a essas "Recordações", o catálogo da mostra encerra outros, num conjunto importante. Entre eles, os de Tadeu Chiarelli e de Affonso Romano de Sant'ana.
Mas citar apenas alguns é não fazer justiça ao resto.
Lugar - Uma grandeza maior do cinema americano reside neste fato: ele é capaz de inserir dimensões reflexivas, às
vezes muito profundas, em formas populares de diversão. "X-Men" é um
exemplo claro.
Mutantes com superpoderes, oriundos dos quadrinhos "Marvel", encontram-se imersos num filme de melancolia bela e difusa, noturna e "gótica".
Mas o diretor Bryan Singer vai além do
clima. Ele volta-se para a questão do lugar das minorias dentro de uma sociedade democrática. Não as defende: interroga, numa perspectiva próxima à
do paradoxo de Tocqueville. A democracia, a igualdade, podem significar tirania do maior número. Podem significar hegemonia das mediocridades. Os
seres originais, diferentes, introduzem
crise, crítica e consciência. O lugar natural deles será sempre, portanto, dentro das minorias.
A isso, Singer acrescenta um sentimento caro aos românticos: a dificuldade de estar no mundo, que conduz a
um isolamento doloroso, mas lúcido. A
luta travada dentro e fora da Estátua da
Liberdade, numa sequência de antologia, é grandemente simbólica. Ela não
significa, como para outros super-heróis, o combate do bem contra o mal,
em benefício do mundo "livre". Ela faz
surgir a questão: de que liberdade se
trata? Esses super-heróis não vêm do
espaço nem adquiriram poderes por
acidente. São humanos, que evoluíram
de modo superior e aberrante. É a origem humana que faz deles objeto de
preconceitos e que os obriga a dissimular a própria superioridade. Fora dos eixos comuns e normais, lutam entre si,
na busca de um equilíbrio impossível.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Trecho Próximo Texto: + música - Marie-Aude Roux: Estratégias da expressão Índice
|