São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2000

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Ponto de fuga

Ser parido aos pedaços

Jorge Coli
especial para a Folha

Faltou a Ismael Nery um taquígrafo, escreveu Murilo Mendes. É provável, porém, que a mais fiel transcrição de suas falas não fosse suficiente. Ismael Nery (1900-1934) pertenceu a uma espécie que, de raro em raro, aparece na história das artes. Uma personalidade intuitiva, muito poderosa, capaz de marcar para sempre os que gravitavam ao seu entorno.
Um artista cuja suprema obra seria ele mesmo. Mário de Andrade, tentando compreender seus quadros, percebeu muito bem o caráter fragmentário que apresentavam, como se participassem de uma essência mais completa, situada para além deles próprios.
Nery tinha a consciência de que suas manifestações criadoras -que iam da poesia à dança e à filosofia- eram fenômenos secundários e efêmeros. O núcleo de tudo seria uma espiritualidade católica, exigente e visionária, cônscia de sua superioridade filosófica, de seu tino profético. A retrospectiva dos desenhos e quadros de Nery, ora apresentada na Faap (Fundação Armando Álvaro Penteado, em São Paulo), não pode ser vista fora dessa totalidade. Um todo que se ampliou, ao derramar-se na amizade fraterna com Murilo Mendes, no amor pela esposa Adalgisa -ela também poeta, mas cujos versos são, com injustiça, esquecidos nas histórias da literatura brasileira. Forças individuais e afinidades eletivas se fundem: as obras de Nery são pistas para compreendê-las.

Centro - Os desenhos de Ismael Nery são fascinantes e plenamente dominados. Algumas de suas telas atingem uma qualidade muito alta, outras menos. O artista é atravessado, do art déco ao surrealismo, por muitos dos instrumentos formais de sua época, que ele utiliza como quem emprega uma gramática. São meios, e não importam: o que deve ser dito o será de qualquer forma. O artista emprega aquilo de que dispõe, segundo o momento ou segundo a vontade.

Posteridade - Ismael Nery inspirou alguns dos mais belos textos de exegese escritos em nosso país. Em primeiro lugar estão os artigos de Murilo Mendes, hoje enfeixados no livro "Recordações de Ismael Nery" (Edusp). O estímulo persiste: além do ótimo estudo de Davi Arrigucci Jr., que serve de prefácio a essas "Recordações", o catálogo da mostra encerra outros, num conjunto importante. Entre eles, os de Tadeu Chiarelli e de Affonso Romano de Sant'ana. Mas citar apenas alguns é não fazer justiça ao resto.

Lugar - Uma grandeza maior do cinema americano reside neste fato: ele é capaz de inserir dimensões reflexivas, às vezes muito profundas, em formas populares de diversão. "X-Men" é um exemplo claro.
Mutantes com superpoderes, oriundos dos quadrinhos "Marvel", encontram-se imersos num filme de melancolia bela e difusa, noturna e "gótica". Mas o diretor Bryan Singer vai além do clima. Ele volta-se para a questão do lugar das minorias dentro de uma sociedade democrática. Não as defende: interroga, numa perspectiva próxima à do paradoxo de Tocqueville. A democracia, a igualdade, podem significar tirania do maior número. Podem significar hegemonia das mediocridades. Os seres originais, diferentes, introduzem crise, crítica e consciência. O lugar natural deles será sempre, portanto, dentro das minorias.
A isso, Singer acrescenta um sentimento caro aos românticos: a dificuldade de estar no mundo, que conduz a um isolamento doloroso, mas lúcido. A luta travada dentro e fora da Estátua da Liberdade, numa sequência de antologia, é grandemente simbólica. Ela não significa, como para outros super-heróis, o combate do bem contra o mal, em benefício do mundo "livre". Ela faz surgir a questão: de que liberdade se trata? Esses super-heróis não vêm do espaço nem adquiriram poderes por acidente. São humanos, que evoluíram de modo superior e aberrante. É a origem humana que faz deles objeto de preconceitos e que os obriga a dissimular a própria superioridade. Fora dos eixos comuns e normais, lutam entre si, na busca de um equilíbrio impossível.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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