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Um diagnóstico da educação enclausurada
Denis Rosenfield
especial para a Folha
Ministros, no Brasil, são afastados sem mesmo uma cerimônia de adeus. Sabe-se que
boa parte do mundo político não se caracteriza pela lealdade nem pelas boas maneiras. Amigos de longa data sabem de sua exoneração pelos meios de comunicação. Claude Allègre, ex-ministro
francês da Educação Nacional, da Pesquisa e da Tecnologia, teve direito a um almoço no qual o próprio primeiro-ministro Lionel Jospin lhe comunicou seu afastamento do governo. Pego de surpresa, Claude Allègre,
ao fazer as malas, não abandonou, no entanto, o seu ímpeto reformista, nem deixou de mostrar as intrigas e artimanhas que levaram à sua saída. Em seu livro, "Toute
Vérité Est Bonne à Dire" (Toda Verdade É Boa para Dizer), o ex-ministro mantém a palavra. Coisa rara na política, pois o silêncio impera na maioria dos casos, os
exonerados aguardando uma nova chance para voltar
ao poder. O resultado desse tipo de comportamento é
que a política termina por ser identificada com algo "sujo", travejado somente
por atitudes estratégicas.
Os Maquiavéis de plantão dirão que se
trata de um discurso ressentido, como se
a política fosse apenas a arte de se preservar no poder, sem outros alvos além desse. Quantos ministros e secretários nada fazem, pois assim conseguem conservar a sua posição, como se lá não
estivessem para a realização do bem público. Mas a política é também a arte de criar determinados tipos de
conflito, visando à realização de determinados projetos
e idéias. Claude Allègre bem resume essa posição: imaginem se eu fosse um simpático ministro bonachão do
qual se diria: "É um bom ministro da Educação: ele não
faz nada".
A vida política brasileira em muito ganharia se políticos viessem a público dizer por que caíram ou por que
deixaram o poder. O debate se enriqueceria com a discussão de idéias, com o confronto de projetos, com a
mostra dos golpes baixos que armam a tecedura do poder. Ver-se-ia, assim, quais grupos procuram a realização de tais interesses e segundo quais motivos. Em vez
disso, temos ministros que se preservam com a condição de nada fazerem, não sendo nem cobrados.
Sem esquivar a questão É um dos grandes méritos do livro de Claude Allègre não esquivar nenhuma
dessas questões. Cientista renomado,
amigo de longa data de Lionel Jospin,
militante do Partido Socialista, ele colocou uma questão central, a da reforma
dos ensinos primário, médio e superior.
Ao fazê-lo, Allègre tinha consciência de
que enfrentaria poderosas corporações,
enraizadas em seu próprio partido. Era o caso, por
exemplo, do sindicato do ensino público de segundo
grau. O problema, de um lado, era político, pois visava a
implementar uma proposta medindo uma certa correlação de forças. Ele, porém, de outro lado, era político
numa outra acepção, a de um diagnóstico agudo da situação educacional francesa e de sua capacidade instalada de pesquisa, com o objetivo de transformá-la.
Claude Allègre tem plena consciência de que o destino
de uma nação ou de um bloco de nações se joga na educação de seu(s) povo(s) e na pesquisa científica e tecnológica. Em um mundo globalizado, refugiar-se na particularidade dos problemas nacionais ou regionais significa o caminho mais curto para o atraso. A competição,
hoje, exige que países se coloquem na ponta da pesquisa, pois, caso contrário, ficarão a reboque do progresso
e do poder de outros. E isso é cada vez mais verdadeiro,
pois, quanto mais um país tardar para se adequar a esse
desenvolvimento feito à escala planetária, menores serão, no futuro, as chances de sucesso. O tempo de uma
determinada forma de fazer política está se esgotando,
queiram ou não os seus autores.
O nada fazer e a inércia são também formas de decisão, cujas consequências são graves. Pense-se, por
exemplo, na política brasileira de ensino público superior, que se encontra numa situação de marasmo há
longos anos, ou na política de segundo grau na maioria
dos Estados brasileiros. Nada disso aponta para uma
posição proeminente num mundo globalizado.
O diagnóstico feito por Claude Allègre, no que diz respeito ao ensino de segundo grau ou superior na França,
não deixa de ter fortes analogias com a situação brasileira em seus diferentes níveis de ensino.
Vejamos algumas delas: 1) a superposição de instâncias impede não apenas o cumprimento das decisões
tomadas como impossibilita uma agilidade decisória
num mundo em rápida transformação. O problema é o
de uma capacidade gerencial moderna, ausente tanto
em nossos ministérios como em escolas e universidades; 2) há cem anos o tempo transcorrido entre uma
descoberta científica e a sua aplicação tecnológica tomava décadas. Hoje, entre a descoberta científica e sua
aplicação transcorre de um ano a um ano e meio. O
tempo da invenção científica e tecnológica não é mais o
das antigas formas de decisão política; 3) o poder dos
sindicatos se fortaleceu, se expandindo para o próprio
centro da decisão política, o que termina por produzir
uma dissociação entre os interesses de professores e
funcionários e a educação propriamente dita. Esta visa
ao conhecimento, à formação e à pesquisa, e não necessariamente à satisfação dos interesses corporativos, embora essas duas dimensões possam coincidir; 4) o aumento indiscriminado de novas vagas não significa necessariamente um progresso educativo ou científico. O
inchaço de pessoal, quando não controlado, pode ser
daninho para a educação enquanto tal. A questão reside
na qualidade do ensino oferecido; 5) a avaliação do ensino em seus diferentes níveis é não apenas necessária
como deve ser realizada por pessoas externas à instituição, principalmente professores e pesquisadores estrangeiros renomados.
Avaliação interna é como a automedicação. E essa
avaliação deve ser principalmente qualitativa. Cada
país, cada região devem medir os seus avanços científicos e tecnológicos em escala planetária; 6) no caso francês, chama a atenção a incrível redução dos dias letivos
no ensino de segundo grau como resposta a demandas
sindicais. Os estudantes franceses estudam menos hoje
do que há dez anos; 7) o ensino superior e os centros e
instituições de pesquisa devem responder aos desafios
das novas formas de conhecimento. A academia é frequentemente fechada sobre seus interesses estabelecidos, com grupos de poder consolidados que não abrem
mão de suas posições. É também tarefa dos dirigentes
romper esses enclausuramentos, visando a uma redistribuição dos recursos, atenta aos novos campos do saber e às novas necessidades oriundas da pesquisa.
Se toda verdade é boa para ser dita, ela o é mais ainda
num país como o nosso, que somente começa a se abrir
a discussões deste tipo.
Toute Vérité Est
Bonne à Dire
309 págs., 18,14 euros
de Claude Allègre. Ed. Laffont/
Fayard (França).
Denis Lerrer Rosenfield é professor da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática), entre
outros.
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