São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Afirmação da cultura nordestina buscou compensar declínio econômico da região
A saga da cana-de-açúcar

por Roberto Ventura

Casa Grande & Senzala" foi publicado em 1933, no mesmo ano em que Adolf Hitler assumia o poder na Alemanha. Mestre em ciências políticas, jurídicas e sociais pela Universidade Columbia, em Nova York, onde estudara nos anos 20 com o antropólogo Franz Boas, Gilberto Freyre atacava as concepções racistas e os determinismos climáticos, adotados não só pelos nacional-socialistas, mas por intérpretes do Brasil, como Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna. Voltara ao país um ano antes, vindo do exílio em Portugal, onde se refugiara com o governador de Pernambuco, Estácio Coimbra, deposto em 1930, de quem fora oficial de gabinete. Escrevendo sobre a colonização portuguesa e a contribuição dos africanos e indígenas, seu ensaio faz parte, com "Sobrados e Mucambos" (1936) e "Ordem e Progresso" (1956), da série que chamou de "Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil". Pretendia completar o conjunto com uma quarta obra jamais acabada, "Jazigos e Covas Rasas", sobre os ritos de sepultamento. Sua predileção pelos títulos duplos, em que os extremos se ligam de forma visceral, revela sua teoria da sociedade e da cultura brasileiras como formadas a partir de um "equilíbrio de antagonismos", em que senhores e escravos, brancos e não-brancos, se completaram pela miscigenação. O livro causou surpresa à época. As saborosas descrições dos hábitos sexuais dos senhores de engenho, patriarcas muitas vezes chegados a um sadomasoquismo, lhe valeram pesados ataques como escritor obsceno e pornográfico. Apresentava ainda a espantosa tese de que os escravos africanos, sobretudo os importados das áreas de cultura muçulmana, atuaram como fator civilizatório, ao trazer hábitos de higiene e alimentação que influenciaram até os nem tão castiços senhores portugueses.

Composição livre
Antonio Candido aponta, no prefácio a "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, o intuito anticonvencional de Freyre, que animou a "composição libérrima" do livro, em que as noções brotam como numa improvisação de talento, e a vida sexual e a importância do escravo são abordadas com franqueza. Compara "Casa-Grande & Senzala" às obras de Sérgio Buarque e Caio Prado Júnior, marcadas pelo sopro de radicalismo intelectual e de análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930. Gilberto Freyre inovou em objeto, método e estilo. O belo desenho de Cícero Dias, com as minúcias do dia-a-dia de um engenho pernambucano, que serve de portal ao livro, mostra sua intenção de reconstruir, em termos plásticos e de forma minuciosa, os hábitos e estilos do passado: a arquitetura das casas, as tradições culinárias, as práticas sexuais, os jogos infantis, as roupas e vestimentas. Recorreu a fontes pouco usuais, como os arquivos e as cartas de família, os livros de assento e as atas das câmaras, os anúncios de jornais e revistas e os depoimentos de sobreviventes, reunidos com enorme voracidade documental. Praticou aquilo que o historiador italiano Carlo Ginzburg define hoje como microhistória, ao abordar a intimidade e o cotidiano da família patriarcal brasileira e destacar o papel de "novos objetos", como a mulher e a criança. Antecipou as histórias da vida privada tão em voga a partir da década de 60 com os franceses Georges Duby e Philippe Ariès, organizadores da obra coletiva, "História da Vida Privada", que deu origem à coleção dirigida por Fernando Novais, "História da Vida Privada no Brasil".

Xerazade tropical
Freyre incorporou a oralidade à escrita, em um fecundo diálogo com a literatura modernista. Tomou a linguagem popular tanto como objeto, ao tratar das cantigas e dos provérbios, mas sobretudo como modelo de um estilo distendido e horizontal, em que as palavras fluem com grande ritmo e sonoridade, num tom de quase conversa, que abole a distância entre o popular e o erudito. Como uma Xerazade tropical, seduz e envolve o leitor com seu relato aparentemente despretensioso, enquanto expõe idéias discutíveis sobre o processo de democratização que teria levado à ascensão do bacharel e do mestiço, idealizados como capazes de desafiar o poder e a autoridade do patriarca. E não conclui, nunca conclui, como observou o crítico João Ribeiro, para quem o ensaísta preferia sugerir a afirmar. Freyre mostrava para as elites triunfantes do Sul e do Sudeste, cuja hegemonia crescia, que a aristocracia nordestina, aparentemente derrotada na cultura e na política, tinha se mostrado vitoriosa na história e nos costumes. A família e a sociedade brasileiras se formaram, para ele, a partir do complexo agrário-exportador baseado na escravidão do negro e no plantio da cana-de-açúcar no Nordeste, em um modelo econômico e social que foi depois seguido pela atividade mineradora e pelas fazendas de café do Sudeste. Assumia assim o passado rural e colonial dos senhores de engenho, dos quais descendia, capazes de construir uma ordem patriarcal e de gerar uma cultura plástica e universal, que deu origem à civilização brasileira pela integração das tradições ibérica, africana e indígena. Procurava reabilitar, por meio da idéia de região, a cultura nordestina, abafada pelo projeto de renovação estética dos modernistas do Rio, São Paulo e Minas, mais voltados para as vanguardas artísticas européias. Freyre acabou sendo mais escritor do que sociólogo, ainda que recorresse aos métodos acadêmicos de investigação. Inspirou-se em obras literárias, como os romances dos irmãos Goncourt, que tomavam a história íntima de um povo como o "verdadeiro romance", ou nas autobiografias de Santo Agostinho, do teólogo John Newman e do líder abolicionista Joaquim Nabuco, cujo interesse pelo escravo vinha da infância no engenho familiar, contada em "Minha Formação" (1900). Baseou-se ainda na ficção memorialista de Marcel Proust, "Em Busca do Tempo Perdido", cujo narrador recria os seus tempos de menino, evocados pelo gosto da "madeleine" embebida no chá. O escritor-sociólogo leu com intensidade ensaístas como Montaigne, Pascal, Bennett, Pater, Unamuno, Ortega y Gasset e os místicos espanhóis San Juan de la Cruz e Santa Teresa para criar um estilo próprio, mais artístico do que científico, em que os assuntos se emendam em um contínuo, com uma aparente falta de plano, próxima à livre associação de idéias da literatura introspectiva. Em vez de seguir a ordenação cronológica das histórias tradicionais ou de adotar os períodos delimitados pelos feitos do Estado ou da Igreja, abordou a contribuição das três raças à formação brasileira: o indígena, o português e o africano. "Casa-Grande & Senzala" é também uma autobiografia sexual, em que Freyre busca as origens de seu entusiasmo pelas mulatas, procuradas, segundo ele, "pelos que desejam colher do amor físico os extremos de gozo". Tal predileção sexual se fundaria no gosto imemorial dos colonizadores portugueses pela mulher de cor, desde o cativeiro árabe na Península Ibérica até as plantações escravocratas brasileiras, segundo o ditado: "Branca para casar, mulata para foder, negra para trabalhar".

Confessionário sexual
Michel Foucault comentou, na "História da Sexualidade", que a confissão é um ritual que purifica o sujeito, que se torna digno de salvação pelo perdão de suas faltas. Freyre relembra, em suas memórias, como a educação protestante no Colégio Americano, no Recife, seguida da breve conversão à Igreja Batista, fez com que a "consciência do pecado" o perseguisse por toda a vida: "Como me esquecer dessa leitura da Bíblia e desses hinos?".
Seu ensaio se converte em confessionário sexual, numa espécie de "Nossa Formação", em que o apetite priápico do escritor, revelado no diário de juventude, ganha dimensões histórico-sociais.
Resgatou, em "Casa-Grande & Senzala", o estilo de vida opulento dos seus parentes e antepassados, os aristocráticos Freyre com "y" e Mello com dois "l", proprietários de engenhos de açúcar em Pernambuco. Tornou-se, assim, como observou o historiador Ricardo Benzaquen de Araújo, em "Guerra e Paz" (Ed. 34, 1994), "personagem de si mesmo, como se escrevesse não só um ensaio histórico-sociológico, mas também as suas mais íntimas memórias". Nessa busca do autoconhecimento, procurou conciliar as elites brasileiras com seu passado escravocrata e seu presente autoritário. A intrigante trajetória política de Gilberto Freyre, da esquerda democrática dos anos 30 e 40 à direita autoritária da década de 60 e 70, se explica, em parte, pelo saudosismo aristocrático de "Casa-Grande & Senzala". Inovador e revolucionário em 1933, o livro já continha o germe de seu apoio ao mandonismo dos governos militares depois de 1964, ao conceber, de forma idílica e harmônica, as relações entre senhores e escravos, reguladas pela autoridade benevolente dos patriarcas.

Ataques da esquerda
Tal idéia, que deu origem à tese da democracia racial brasileira, sofreu duras críticas por parte do historiador marxista Jacob Gorender e dos sociólogos paulistas, formados por Florestan Fernandes na Universidade de São Paulo, que denunciaram o caráter mercantil e violento do cativeiro.
Com o seu olhar guloso sobre os quitutes e prazeres afro-brasileiros, Freyre viu a senzala do ponto de vista da casa-grande. Propôs a superação das idéias raciais, mas se manteve preso a critérios de etnicidade ao tomar a raça como sinônimo de caráter e cultura. Não se libertou tampouco de certo viés evolucionista, ao acreditar na existência de povos mais ou menos adiantados. Mas escreveu um grande livro, para muitos, como Darcy Ribeiro, o maior já escrito no país. Suas incoerências são também as da elite e do povo, cujo dualismo entre ordem e liberdade, entre autoridade e democracia, procurou retratar.


Roberto Ventura é professor de teoria literária na USP e autor de "Estilo Tropical" (Companhia das Letras).


Texto Anterior: Peter Burke: Uma história da intimidade
Próximo Texto: Elide Rugai Bastos: Os descendentes de Prometeu
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.