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Freyre põe os marginais da história no centro de sua construção da formação nacional
Os descendentes de Prometeu
por Elide Rugai Bastos
Na peça intitulada "As Criaturas
de Prometeu", pertencente à
primeira fase de sua produção,
Beethoven apresenta temas
que figuram em suas sinfonias escritas
posteriormente. Não se trata de repetição, e sim de invenções melódicas e harmônicas que indicam a presença de uma
obra plena de organicidade. A genialidade desse desdobramento é inegável.
Essa marca vem à mente quando reflito sobre a unidade da obra de Gilberto Freyre. Embora não definido
previamente, o autor estabeleceu um conjunto intitulado "Introdução à História da Sociedade Patriarcal no
Brasil", formado pelos livros "Casa-Grande & Senzala"
(1933), "Sobrados e Mucambos" (1936), "Ordem &
Progresso" (1959) e o prometido, mas não terminado,
"Jazigos e Covas Rasas". Podemos considerar nesse bloco, embora estivesse fora da intenção do autor, o livro
"Nordeste", publicado em 1937.
A articulação entre patriarcalismo, interpenetração
de etnias/culturas e trópico constitui-se na unidade explicativa do pensamento freyriano. Essa configuração
analítica aparece desde o início, em "Casa-Grande &
Senzala". No entanto, a tese ganha desdobramentos
particulares não apenas nos trabalhos citados, mas
também em escritos posteriores. É como se Gilberto tivesse desenhado uma sinfonia constituída de várias peças interligadas.
O papel do escravo
Nos diferentes textos pode-se
perceber a ênfase dada a cada um desses pontos: em
"Casa-Grande & Senzala" ele afirma a importância da
relação entre etnias e culturas, resgatando o papel do escravo negro como civilizador na sociedade brasileira,
operando simultaneamente no processo de mestiçagem e no de difusão e incorporação do aparato cultural
africano, isto é, há uma absorção de seus usos e costumes pelos brancos, que reconhecem a adaptabilidade
dos mesmos à realidade tropical; em "Sobrados e Mucambos", ressalta o papel do patriarcado na ordenação
da sociedade nacional, operando durante séculos como
garantia de sua organicidade; em "Nordeste", mostra
como as regiões tropicais abrigam formas sociais harmônicas, indagando, ao mesmo tempo, sobre o grau de
modernidade a que nelas se pode aspirar.
Gilberto, ao analisar esses três pilares de nossa formação, quer mostrar que existe uma especial combinação
no Brasil, talvez um de seus mais importantes traços:
aqui os extremos tendem a conciliar-se. Os títulos dos
dois primeiros livros são ilustrativos dessa intenção: casa-grande e sobrado simbolizam dominação; senzala e
mucambo, subordinação, submissão. O "&" entre as
duas palavras significa interpenetração.
É exatamente a especificidade da articulação entre patriarcalismo, etnias/culturas e trópico que permite que
aquelas situações típicas não levem a uma ruptura no
seio da sociedade. Aqui se combinam tradição e modernidade, rural e urbano, sagrado e profano, o velho e o
novo. Articulam-se tempos distintos. Por isso a importância, em suas pesquisas, do tema transição: a passagem do trabalho escravo ao trabalho livre, da monarquia à república, do campo à cidade. Esse é o eixo central de "Ordem & Progresso".
A consagração
A publicação de "Casa-Grande &
Senzala" consagra Gilberto Freyre como autor, consagração justa por inúmeros motivos já amplamente conhecidos. No entanto, a própria consagração talvez tenha desviado a atenção do público da continuidade e do
alcance do debate que se desenvolve nos livros posteriores. Em "Sobrados e Mucambos" as inúmeras inovações apresentadas em 1933 ganham completude e se
ampliam. O próprio subtítulo do livro é indicativo da
mudança de rota no desenvolvimento da temática
inaugurada naquele texto: "Decadência do Patriarcado
Rural e Desenvolvimento do Urbano".
Antonio Candido já se confessou intrigado com o fato
de, num país novo como o Brasil e num século como o
nosso, a maioria das obras de valor produzidas versar
sobre o tema da decadência -social, familiar, pessoal.
Em Gilberto o tema é nuclear. Para ele, a urbanização
afeta o papel tradicionalmente exercido pelo patriarcado na construção da ordem social. Aponta como, nesse
processo, a esfera pública avança sobre a esfera privada,
ilustrando a situação com as dicotomias casa/rua, engenho/praça. Simbólica dessa preeminência do público
sobre o privado é a figura do moleque que mija no sobrado, buscando mostrar que a rua vale mais que a casa.
A decadência significa a perda do poder, este resultado das transformações sociais, econômicas e políticas,
mas em especial das culturais. Alteram-se os modos de
agir tradicionais e a perda dessas tradições atinge nuclearmente a forma pela qual se organizam as relações
sociais no Brasil. Isto é: a mudança, de um lado, traz
consigo como traço a impessoalidade que marca o relacionamento social; de outro, resulta na destruição da
cultura regional que ancora um específico modo de organização da sociedade.
Em outros termos, a decadência é resultado da quebra
da continuidade público/privado, procedimento que
altera o modo de organização do poder no país na medida em que foi afetada a própria natureza das relações
sociais. Influências individualistas, estatistas e coletivistas se apresentam como desagregadoras
do sistema patriarcal. É a família, como
grande força permanente na formação
nacional, influência conservadora e disseminadora dos valores patriarcais, a
grande ameaçada.
Mais ainda, conferiu unidade nacional
ao país, pois a forma pela qual se conseguiu a convivência pacífica das culturas foi a existência e
permanência do patriarcado. Constitui-se na garantia
da interpenetração de valores sociais de caráter diversificado; a síntese não-conflituosa que impediu rupturas.
Assim, a partir desse enfoque, o tema de "Sobrados e
Mucambos" é o estudo das mudanças que se dão no
seio da família e da casa durante o século 19 e que explicam a migração do poder das oligarquias familistas para o Estado, processo resultante tanto do enfraquecimento da ordem rural e escravocrata quanto da centralização administrativa. As transformações não são
abruptas; trata-se de um processo que se estende por todo o século 19. É nesse desenrolar que Gilberto define a
singularidade da decadência do patriarcado no Brasil.
Diferentemente do que ocorre nos outros países, é
marcada pela acomodação, na qual se alternam perdas
e sobrevivências. Nossa marca é a conciliação. Na mudança alteram-se as formas e o acessório, mas o substantivo permanece. A transformação não se processa de
forma linear; tem a conformação de um labirinto. Seu
trabalho é a reconstrução desses vaivéns sinuosos.
A acomodação é resultado, de um lado, da assimilação pelo conjunto da sociedade dos usos, costumes, valores das diferentes culturas, que se dá no ambiente doméstico pela ação de personagens que agem cotidianamente no sentido de consolidar, em patamar diferente
da oposição dominante/dominado, as relações sociais.
Assim, "Casa-Grande & Senzala" recupera o papel dos
marginais da história: o escravo negro, a mulher, o menino, o amarelinho anti-herói diante do patriarca, o
grande herói civilizador.
Nas análises convencionais são considerados fora da
lógica explicativa. Gilberto Freyre os coloca no centro
de sua construção da formação nacional. O escravo negro, o maior e mais plástico colaborador na construção
da civilização nos trópicos, exercendo missão civilizadora junto ao índio e ao branco; dominando a cozinha,
a vida sexual, as profissões técnicas, a música, alterando
a língua, amante e confidente. A mulher, submissa, vivendo sob a tirania do pai e depois do marido, criada
em ambiente rigorosamente patriarcal. O menino, em
casa, castigando as negrinhas e os moleques, mas submetido na sociedade dos mais velhos. O amarelinho,
menino mimado, franzino, muitas vezes filho ilegítimo,
sem gosto pelas lides do engenho, saindo de casa para
estudar nos seminários ou nas escolas das capitais do
Brasil ou da Europa, voltando imbuído de novas idéias,
pronto a lutar contra a dominação.
Ao tomá-los como personagens, Gilberto busca mostrar que não estão de fato fora da história, mas são responsáveis pela construção social e cultural da sociedade
brasileira. Eis as criaturas de Prometeu.
As quatro figuras foram, no processo de formação social, a garantia de uma harmonia resultante do hibridismo cultural, responsáveis pela adaptação não conflituosa dos diferentes aspectos das culturas portuguesa, africana e indígena. Com elas, o encontro dos elementos
sociais e culturais de origem oriental -parte portugueses, parte africanos- e os ocidentais ocorre sem atrito.
Mais que isso, respondem pela adaptação ao trópico
dos costumes originários da Europa. São ainda a razão
principal que explica por que, no Brasil, a família, e não
o indivíduo, se tornou a unidade básica da sociedade.
Essas criaturas reaparecem em "Sobrados e Mucambos", "Nordeste" e "Ordem e Progresso". No primeiro,
Freyre retoma o tema mostrando as transformações decorrentes da urbanização, que afetam as relações entre
pai e filho, mulheres e homens, negros e brancos. Os novos ares alteram a acomodação secular. Os conflitos
aparecem. Configuram-se novas distâncias sociais.
Mediadores
Com a separação público/privado
surge o risco de desaparecerem, pelo menos investidos
de seu papel anterior, aqueles personagens que operavam como mediadores do pacto de equilíbrio social: a
mulher, garantia da conservação das tradições; o menino, amenizando o despotismo do pai e absorvendo a influência dos costumes negros para transferi-los à sociedade; o escravo, o verdadeiro organizador do ambiente
doméstico, garantia da paz na família; o amarelinho, figura ambígua, com compromissos simultaneamente
com a família e com a esfera pública, trazendo mudanças no desenho da sociedade, mas protetor contra as
rupturas em seu seio.
Lembrar, na década de 30, momento prenhe de mudanças -crescimento da industrialização, urbanização, centralização político-administrativa, para lembrar algumas-, do papel desempenhado pelos setores
dirigentes rurais no sentido de manutenção da ordem
social e ainda aquele das oligarquias regionais confere
um especial lugar à reflexão freyriana. Creio que podemos levantar a hipótese de ter sido sua interpretação
um elemento fundamental no equacionamento político
daquele período, sem esquecer que esse arranjo acabou
por marginalizar vastos setores da população nacional.
Trata-se de uma polêmica a enfrentar. No entanto
existe unanimidade quanto à importância de sua reflexão, que colocou em outro patamar o debate sobre a
questão social no Brasil. Com Gilberto Freyre, a sociologia ganha definitivamente sua sistematização, alcança
um discurso próprio e vai ocupar um lugar especial no
desvendamento dos meandros da sociedade brasileira.
Elide Rugai Bastos é professora do departamento de sociologia da Universidade Estadual de Campinas e autora de "Intelectuais e Política".
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