São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


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Leitura apressada criou mito da "democracia racial" em "Casa-Grande & Senzala"
Equilíbrio de antagonismos

por Hermano Vianna

Gilberto Freyre defende a tese da "democracia racial" brasileira em "Casa-Grande & Senzala". Leia novamente a afirmação anterior. Soa estranha? Traz alguma novidade? Poderia ter sido escrita de muitas outras maneiras. Por exemplo: "Casa-Grande & Senzala" apresenta o mito da "democracia racial" brasileira. Ou ainda: o Brasil de "Casa-Grande & Senzala" é uma "democracia racial". Nada estranho, não é? Nem as aspas que isolam, funcionando como um cordão sanitário, a expressão "democracia racial". Hoje em dia ninguém é louco a ponto de escrever que o Brasil é realmente uma democracia racial. Seria linchado em praça pública. As aspas estão ali para dizer que os autores das afirmações anteriores não acreditam no mito. Quem acredita? Quem acreditou? A frase "hoje em dia ninguém é louco a ponto de escrever que o Brasil é realmente uma democracia racial", no seu todo uma declaração bem boba para prender a atenção do leitor, pressupõe ironicamente que em algum lugar do passado houve loucos que escreveram tal barbaridade. Se houve, entre eles não estava o Gilberto Freyre de "Casa-Grande & Senzala". A expressão "democracia racial", com aspas ou sem aspas, não aparece nesse livro. Alguém já tinha dito isso para você? É bem provável que não. Mas é a mais pura verdade: em nenhum dos capítulos de "Casa-Grande & Senzala", incluindo as notas volumosas desses capítulos, está impressa a expressão "democracia racial". Quem escreve que "Gilberto Freyre defende a tese da "democracia racial" brasileira em "Casa-Grande & Senzala", leva o leitor a acreditar que a expressão "democracia racial" é usada explicitamente nesse livro e que seu uso seria aí defendido como traço fundamental da sociedade brasileira. Leia "Casa-Grande & Senzala" (coisa que muita gente não faz justamente por acreditar que é o texto fundador do mito da "democracia racial"): você verá que não é esse o caso.

Jogos de espelho
Além de todo o prazer da leitura (apontado por, entre outros escritores, João Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto), você descobrirá -talvez surpreendido- que muitas passagens de "Casa-Grande & Senzala" podem mesmo ser citadas no panfleto mais furioso que pretenda refutar de uma vez por todas o tal mito da "democracia racial". O que estou querendo dizer, sampleando uma idéia de Caetano Veloso, é curto e grosso: há no Brasil, e entre brasilianistas, um mito do "mito da "democracia racial'". Esse mito ao quadrado inclui a idéia, sempre afirmada em termos imprecisos (como convém para a linguagem mitológica), de que o mito -o primeiro- da "democracia racial" teve origem em "Casa-Grande & Senzala". Seria mais preciso dizer, se quisermos continuar fiéis aos jogos de espelhos dessa nossa metamitologia nacional, que o "mito da "democracia racial'" teve origem numa leitura apressada, tendenciosa ou burra de "Casa-Grande & Senzala".

Volta ao texto
Não escrevo este artigo para defender "Casa-Grande & Senzala". Esse livro, talvez por ter gerado tantos mitos, talvez por ter tido o impacto que obviamente teve (Monteiro Lobato comparava a sua aparição com a do cometa Halley), não precisa de defesas. Minha intenção aqui é apenas propor uma volta ao texto, deixando de lado as idéias preconceituosas contra o texto. Nesse sentido, penso estar dando continuidade, não autorizada e assumidamente malcriada (provavelmente mesmo irresponsável), a algumas idéias expostas de maneira muitíssimo bem-educada e sensata no livro "Guerra e Paz" (34 Letras, 1994), de Ricardo Benzaquem Araújo, um dos poucos autores contemporâneos que, com argumentos sólidos, tem coragem de não alimentar o mito do mito. Ricardo, com uma serenidade espantosa, escreve: "Ainda tenho, contudo, alguma dificuldade em concordar que a visão que Gilberto possuía da nossa sociedade colonial envolvesse, de fato, a afirmação de um paraíso tropical". Quem escreve que "Casa-Grande & Senzala" teria "criado uma imagem quase idílica de nossa sociedade colonial, ocultando a exploração, os conflitos e a discriminação que a escravidão necessariamente implica atrás de uma fantasiosa "democracia racial'" estaria divulgando uma "meia-verdade", isto é, "não se trata de uma falsidade ou de um equívoco, mas de uma afirmação que atinge apenas parcialmente o seu alvo". A opinião de Ricardo é clara, nobre, defensável. A minha opinião é outra: as "meias-verdades" que já se tornaram clichês em comentários sobre "Casa-Grande & Senzala" não me parecem equivocadas: elas são realmente mal-intencionadas, pois escondem ou ignoram as suas "numerosas passagens que tornam explícito o gigantesco grau de violência inerente ao sistema escravocrata". Então, além de mal-intencionadas, essas opiniões podem -no meu entender, certamente não na interpretação de "Guerra e Paz"- ser chamadas de mentirosas. Como dizer que "Casa-Grande & Senzala" criou uma imagem idílica da sociedade brasileira se, logo no prefácio de sua primeira edição, aprendemos que senhores mandavam "queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas", ou ouvimos a história de um senhor que, na tentativa de dar longevidade às paredes de sua casa-grande, "mandou matar dois escravos e enterrá-los nos alicerces"? Que país é esse? Que paraíso tropical é esse? Que "democracia racial" é essa? Como diz Ricardo Benzaquem de Araújo, para Gilberto Freyre "o inferno parecia conviver muito bem com o paraíso em nossa experiência colonial".

Trechos infernais
É importante fazer uma seleção dos trechos infernais, pois eles são quase sempre "esquecidos" nas declarações anti-"democracia racial". "Casa-Grande & Senzala" fala mesmo de uma "tendência geral para o sadismo criado no Brasil pela escravidão e pelo abuso do negro", uma violência que integrava os mais diferentes aspectos da vida social, e ninguém escapava de sua "prática". Mulheres "espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas".
As crianças inventavam brincadeiras em que galhos de goiabeira atuavam como chicotes: "Os muleques serviam para tudo: eram bois de carro, eram cavalos de montaria, eram burros de liteiras e de cargas as mais pesadas". O quadro geral da relação entre senhores e escravos é visto como produto de um "senso pervertido das relações humanas". Contra os índios, os portugueses não foram menos cruéis: mandavam "amarrá-los à boca de peças de artilharias que, disparando, "semeavam a grande distância os membros dilacerados'" ou infligiam-lhes "suplícios adaptados dos clássicos às condições agrestes da América", como aquele em que "amarra-se o índio a duas canoas, correndo estas, à força de remos, em direções contrárias até partir-se em dois o corpo do supliciado". Tudo isso era feito com uma "especialização macabra". Gilberto Freyre fala explicitamente do "extermínio da raça indígena no Brasil". Apesar de toda a propagandeada lusofilia de "Casa-Grande & Senzala", em suas páginas muitas vezes os portugueses aparecem como vilões, desastrados ou estúpidos: "A deformação do português tem sido sempre em sentido horizontal. O achatamento. O arredondamento. O exagero da carne em enxúndia. Seu realismo econômico arredondado em mercantilismo, somiticaria, materialização bruta de todos os valores da vida".

Deleite mórbido
Uma tendência, ao que parece, vitoriosa, já que, segundo Gilberto Freyre, o português moderno aparece "já tão manchado de podre": "É um povo que vive a fazer de conta que é poderoso e importante"; que finge esquecer que no passado "(s)eria ele o corruptor, e não a vítima"; que já era "predisposto ao regime de trabalho escravo" antes das grandes navegações; e que, "já de si melancólico, deu no Brasil para sorumbático, tristonho", gerando um "brasileiro de classe mais elevada", geralmente sifilítico, que tem o "mórbido deleite em ser mau". Todo esse horror digno da narrativa de "Coração das Trevas", de Joseph Conrad, ou do filme "Apocalipse Now", de Francis Ford Coppola, pode ser resumido com as seguintes palavras de Gilberto Freyre: "Há tanto que criticar na política dos colonizadores portugueses no Brasil que para acusá-los de erros tremendos não é necessário recorrer à imaginação". Poderia gastar páginas e páginas destacando trechos como esses. Nem tratei ainda da crítica radical que Gilberto Freyre faz da monocultura e do açúcar. Mas penso que a seleção citada já compõe um dos panoramas mais medonhos que podem ser encontrados em livros que pretendem dar conta da história cultural de seus países. Como então é possível que tanta gente descreva o Brasil de "Casa-Grande & Senzala" como um "paraíso tropical"? Como foi possível se criar, a partir de um livro que contém trechos tão sinistros, o mito otimista da "democracia racial"? A resposta é simples: eu também poderia gastar páginas e páginas destacando trechos que têm sentidos opostos aos anteriores e que, em seu conjunto, podem facilmente compor uma imagem idílica da sociedade brasileira.

Paraíso tropical
Citarei alguns dos mais bandeirosos (e mais usados nos ataques contra Gilberto Freyre), para ninguém dizer que não falei de flores. Por exemplo: "Salientemos a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que em qualquer outra parte da América". O português teria sido o "menos cruel na relação com os escravos". O "regime brasileiro" é "em vários sentidos sociais um dos mais democráticos, flexíveis e plásticos", pois entre nós seria possível encontrar a "fusão harmoniosa de tradições diversas, ou antes, antagônicas, de cultura". E ainda: "Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça". Resumindo: o português fundou no Brasil "a maior civilização moderna nos trópicos". Paraíso tropical, é claro (e preferi nem tocar na mais fascinante e "revolucionária" provocação freyriana: o elogio da miscigenação). Torna-se consequentemente também fácil, para um crítico de Gilberto Freyre, ater-se aos trechos paradisíacos e atacar toda a obra. Muito fácil, de uma facilidade que poderia ser até classificada como covarde. Assim o crítico se esquivaria de se debruçar sobre a grande questão de "Casa-Grande & Senzala", seu ponto mais difícil: como, até mesmo em parágrafos vizinhos, o inferno pode conviver com o paraíso; como é possível retirar imagens tão antagônicas do Brasil (amor e ódio) a partir de um mesmo livro. Ricardo Benzaquem de Araújo bem demonstra: a principal pista para a elucidação dessa dificuldade gira em torno do significado de uma curiosa expressão empregada fartamente por Gilberto Freyre: "Equilíbrio de antagonismos". Voltemos ao texto de "Casa-Grande & Senzala" para os devidos exemplos. Inicialmente essa expressão aparece para descrever a cultura dos colonizadores: "Gente mais flutuante que a portuguesa, dificilmente se imagina; o bambo equilíbrio de antagonismos reflete-se em tudo que é seu". O "bambo" praticamente inventa o Brasil: o que dá à formação da sociedade brasileira um caráter "especialíssimo" e "sui generis" é estar "igualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre antagonismos". Um caráter explicitamente valorizado por Gilberto Freyre: "A potencialidade da cultura brasileira parece-nos residir toda na riqueza dos antagonismos equilibrados". Todo "Casa-Grande & Senzala", que é assumidamente um ensaio em que faltam "conclusões enfáticas", e não uma tese, parece ter sido construído com uma missão: salvaguardar esse "equilíbrio de antagonismos" sempre precário, fragilíssimo, que facilmente pode degenerar em "conflito de antagonismos", a "parte indigesta" -balcanizada- de qualquer civilização. Portanto Gilberto Freyre fareja, quase desesperadamente, qualquer indício de confraternização. Esse valorizar, certamente trágico, não nega a existência do conflito, e acho mesmo que tem como premissa o postulado de não haver sociedades sem conflito. O evolucionismo de "Casa-Grande & Senzala" não profetiza, para o fim da história, uma sociedade sem conflito, em que o conflito desaparecia absolutamente. A "metafísica social" de "Casa-Grande & Senzala" é relativista: existem apenas sociedades nas quais os conflitos estão mais "em equilíbrio" do que em outras.

Ajustamento raro
"Casa-Grande & Senzala" é, então, um livro do "ainda assim". Uma passagem importantíssima para esclarecer esse seu aspecto central é a seguinte: "Sem que no Brasil se verifique perfeita intercomunicação entre seus extremos de cultura -ainda antagônicos e por vezes até explosivos, chocando-se em conflitos intensamente dramáticos como o de Canudos-, ainda assim podemos nos felicitar de um ajustamento de tradições raro entre povos formados nas mesmas circunstâncias imperialistas de colonização moderna dos trópicos". O elogio é quase arrancado a tapas, e só pode ser feito nessas "mesmas circunstâncias" e em comparações com outras colonizações tropicais (outros elogios -como aqueles citados acima- também são sempre relativos, comparativos, nunca absolutos). É muita vontade de gostar do Brasil "ainda assim", apesar de tudo!
Gostar? Gilberto Freyre inventou um jeitinho "especialíssimo" de gostar do Brasil. Se você chegar até o final de "Casa-Grande & Senzala", vai deparar-se com uma penúltima frase desagradável: é apenas a enumeração de 26 doenças. O livro termina com uma citação pouquíssimo conclusiva: ""Os vermes e particularmente a toenia, e as ascarides lombricoides abundão muito", acrescenta Jobim". Estranho arremate para a descrição de um paraíso tropical.


Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do Samba" (Jorge Zahar). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.


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