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Leitura apressada criou mito da "democracia racial" em "Casa-Grande & Senzala"
Equilíbrio de antagonismos
por Hermano Vianna
Gilberto Freyre defende a tese da
"democracia racial" brasileira
em "Casa-Grande & Senzala".
Leia novamente a afirmação
anterior. Soa estranha? Traz alguma novidade? Poderia ter sido escrita de muitas
outras maneiras. Por exemplo: "Casa-Grande & Senzala" apresenta o mito da
"democracia racial" brasileira. Ou ainda: o Brasil de
"Casa-Grande & Senzala" é uma "democracia racial".
Nada estranho, não é? Nem as aspas que isolam, funcionando como um cordão sanitário, a expressão "democracia racial". Hoje em dia ninguém é louco a ponto de
escrever que o Brasil é realmente uma democracia racial. Seria linchado em praça pública. As aspas estão ali
para dizer que os autores das afirmações anteriores não
acreditam no mito.
Quem acredita? Quem acreditou? A frase "hoje em dia
ninguém é louco a ponto de escrever que o Brasil é realmente uma democracia racial", no seu todo uma declaração bem boba para prender a atenção do leitor, pressupõe ironicamente que em algum lugar do passado
houve loucos que escreveram tal barbaridade. Se houve,
entre eles não estava o Gilberto Freyre de "Casa-Grande
& Senzala". A expressão "democracia racial", com aspas ou sem aspas, não aparece nesse livro.
Alguém já tinha dito isso para você? É bem provável
que não. Mas é a mais pura verdade: em nenhum dos
capítulos de "Casa-Grande & Senzala", incluindo as notas volumosas desses capítulos, está impressa a expressão "democracia racial". Quem escreve que "Gilberto
Freyre defende a tese da "democracia racial" brasileira
em "Casa-Grande & Senzala", leva o leitor a acreditar
que a expressão "democracia racial" é usada explicitamente nesse livro e que seu uso seria aí defendido como
traço fundamental da sociedade brasileira. Leia "Casa-Grande & Senzala" (coisa que muita gente não faz justamente por acreditar que é o texto fundador do mito
da "democracia racial"): você verá que não é esse o caso.
Jogos de espelho
Além de todo o prazer da leitura
(apontado por, entre outros escritores, João Guimarães
Rosa e João Cabral de Melo Neto), você descobrirá
-talvez surpreendido- que muitas passagens de "Casa-Grande & Senzala" podem mesmo ser citadas no
panfleto mais furioso que pretenda refutar de uma vez
por todas o tal mito da "democracia racial". O que estou
querendo dizer, sampleando uma idéia de Caetano Veloso, é curto e grosso: há no Brasil, e entre brasilianistas,
um mito do "mito da "democracia racial'".
Esse mito ao quadrado inclui a idéia, sempre afirmada
em termos imprecisos (como convém para a linguagem
mitológica), de que o mito -o primeiro- da "democracia racial" teve origem em "Casa-Grande & Senzala". Seria mais preciso dizer, se quisermos continuar
fiéis aos jogos de espelhos dessa nossa metamitologia
nacional, que o "mito da "democracia racial'" teve origem numa leitura apressada, tendenciosa ou burra de
"Casa-Grande & Senzala".
Volta ao texto
Não escrevo este artigo para defender "Casa-Grande & Senzala". Esse livro, talvez por ter
gerado tantos mitos, talvez por ter tido o impacto que
obviamente teve (Monteiro Lobato comparava a sua
aparição com a do cometa Halley), não precisa de defesas. Minha intenção aqui é apenas propor uma volta ao
texto, deixando de lado as idéias preconceituosas contra o texto. Nesse sentido, penso estar dando continuidade, não autorizada e assumidamente malcriada (provavelmente mesmo irresponsável), a algumas idéias expostas de maneira muitíssimo bem-educada e sensata
no livro "Guerra e Paz" (34 Letras, 1994), de Ricardo
Benzaquem Araújo, um dos poucos autores contemporâneos que, com argumentos sólidos, tem coragem de
não alimentar o mito do mito.
Ricardo, com uma serenidade espantosa, escreve:
"Ainda tenho, contudo, alguma dificuldade em concordar que a visão que Gilberto possuía da nossa sociedade
colonial envolvesse, de fato, a afirmação de um paraíso
tropical". Quem escreve que "Casa-Grande & Senzala"
teria "criado uma imagem quase idílica de nossa sociedade colonial, ocultando a exploração, os conflitos e a
discriminação que a escravidão necessariamente implica atrás de uma fantasiosa
"democracia racial'" estaria divulgando
uma "meia-verdade", isto é, "não se trata
de uma falsidade ou de um equívoco,
mas de uma afirmação que atinge apenas
parcialmente o seu alvo".
A opinião de Ricardo é clara, nobre,
defensável. A minha opinião é outra: as "meias-verdades" que já se tornaram clichês em comentários sobre
"Casa-Grande & Senzala" não me parecem equivocadas: elas são realmente mal-intencionadas, pois escondem ou ignoram as suas "numerosas passagens que
tornam explícito o gigantesco grau de violência inerente
ao sistema escravocrata". Então, além de mal-intencionadas, essas opiniões podem -no meu entender, certamente não na interpretação de "Guerra e Paz"- ser
chamadas de mentirosas.
Como dizer que "Casa-Grande & Senzala" criou uma
imagem idílica da sociedade brasileira se, logo no prefácio de sua primeira edição, aprendemos que senhores
mandavam "queimar vivas, em fornalhas de engenho,
escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das
chamas", ou ouvimos a história de um senhor que, na
tentativa de dar longevidade às paredes de sua casa-grande, "mandou matar dois escravos e enterrá-los nos
alicerces"? Que país é esse? Que paraíso tropical é esse?
Que "democracia racial" é essa? Como diz Ricardo Benzaquem de Araújo, para Gilberto Freyre "o inferno parecia conviver muito bem com o paraíso em nossa experiência colonial".
Trechos infernais
É importante fazer uma seleção
dos trechos infernais, pois eles são quase sempre "esquecidos" nas declarações anti-"democracia racial".
"Casa-Grande & Senzala" fala mesmo de uma "tendência geral para o sadismo criado no Brasil pela escravidão
e pelo abuso do negro", uma violência que integrava os
mais diferentes aspectos da vida social, e ninguém escapava de sua "prática". Mulheres "espatifavam a salto de
botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as
orelhas".
As crianças inventavam brincadeiras
em que galhos de goiabeira atuavam como chicotes: "Os muleques serviam para
tudo: eram bois de carro, eram cavalos
de montaria, eram burros de liteiras e de
cargas as mais pesadas". O quadro geral
da relação entre senhores e escravos é
visto como produto de um "senso pervertido das relações humanas".
Contra os índios, os portugueses não foram menos
cruéis: mandavam "amarrá-los à boca de peças de artilharias que, disparando, "semeavam a grande distância
os membros dilacerados'" ou infligiam-lhes "suplícios
adaptados dos clássicos às condições agrestes da América", como aquele em que "amarra-se o índio a duas
canoas, correndo estas, à força de remos, em direções
contrárias até partir-se em dois o corpo do supliciado".
Tudo isso era feito com uma "especialização macabra". Gilberto Freyre fala explicitamente do "extermínio da raça indígena no Brasil".
Apesar de toda a propagandeada lusofilia de "Casa-Grande & Senzala", em suas páginas muitas vezes os
portugueses aparecem como vilões, desastrados ou estúpidos: "A deformação do português tem sido sempre
em sentido horizontal. O achatamento. O arredondamento. O exagero da carne em enxúndia. Seu realismo
econômico arredondado em mercantilismo, somiticaria, materialização bruta de todos os valores da vida".
Deleite mórbido
Uma tendência, ao que parece,
vitoriosa, já que, segundo Gilberto Freyre, o português
moderno aparece "já tão manchado de podre": "É um
povo que vive a fazer de conta que é poderoso e importante"; que finge esquecer que no passado "(s)eria ele o
corruptor, e não a vítima"; que já era "predisposto ao
regime de trabalho escravo" antes das grandes navegações; e que, "já de si melancólico, deu no Brasil para sorumbático, tristonho", gerando um "brasileiro de classe
mais elevada", geralmente sifilítico, que tem o "mórbido deleite em ser mau".
Todo esse horror digno da narrativa de "Coração das
Trevas", de Joseph Conrad, ou do filme "Apocalipse
Now", de Francis Ford Coppola, pode ser resumido
com as seguintes palavras de Gilberto Freyre: "Há tanto
que criticar na política dos colonizadores portugueses
no Brasil que para acusá-los de erros tremendos não é
necessário recorrer à imaginação".
Poderia gastar páginas e páginas destacando trechos
como esses. Nem tratei ainda da crítica radical que Gilberto Freyre faz da monocultura e do açúcar. Mas penso
que a seleção citada já compõe um dos panoramas mais
medonhos que podem ser encontrados em livros que
pretendem dar conta da história cultural de seus países.
Como então é possível que tanta gente descreva o Brasil
de "Casa-Grande & Senzala" como um "paraíso tropical"? Como foi possível se criar, a partir de um livro que
contém trechos tão sinistros, o mito otimista da "democracia racial"? A resposta é simples: eu também poderia
gastar páginas e páginas destacando trechos que têm
sentidos opostos aos anteriores e que, em seu conjunto,
podem facilmente compor uma imagem idílica da sociedade brasileira.
Paraíso tropical
Citarei alguns dos mais bandeirosos (e mais usados nos ataques contra Gilberto Freyre),
para ninguém dizer que não falei de flores. Por exemplo: "Salientemos a doçura nas relações de senhores
com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que
em qualquer outra parte da América". O português teria sido o "menos cruel na relação com os escravos". O
"regime brasileiro" é "em vários sentidos sociais um
dos mais democráticos, flexíveis e plásticos", pois entre
nós seria possível encontrar a "fusão harmoniosa de
tradições diversas, ou antes, antagônicas, de cultura". E
ainda: "Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é
de todas da América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça". Resumindo: o
português fundou no Brasil "a maior civilização moderna nos trópicos".
Paraíso tropical, é claro (e preferi nem tocar na mais
fascinante e "revolucionária" provocação freyriana: o
elogio da miscigenação). Torna-se consequentemente
também fácil, para um crítico de Gilberto Freyre, ater-se
aos trechos paradisíacos e atacar toda a obra. Muito fácil, de uma facilidade que poderia ser até classificada como covarde. Assim o crítico se esquivaria de se debruçar sobre a grande questão de "Casa-Grande & Senzala", seu ponto mais difícil: como, até mesmo em parágrafos vizinhos, o inferno pode conviver com o paraíso;
como é possível retirar imagens tão antagônicas do Brasil (amor e ódio) a partir de um mesmo livro. Ricardo
Benzaquem de Araújo bem demonstra: a principal pista
para a elucidação dessa dificuldade gira em torno do
significado de uma curiosa expressão empregada fartamente por Gilberto Freyre: "Equilíbrio de antagonismos".
Voltemos ao texto de "Casa-Grande & Senzala" para
os devidos exemplos. Inicialmente essa expressão aparece para descrever a cultura dos colonizadores: "Gente
mais flutuante que a portuguesa, dificilmente se imagina; o bambo equilíbrio de antagonismos reflete-se em
tudo que é seu". O "bambo" praticamente inventa o
Brasil: o que dá à formação da sociedade brasileira um
caráter "especialíssimo" e "sui generis" é estar "igualmente equilibrada nos seus começos e
ainda hoje sobre antagonismos". Um caráter explicitamente valorizado por Gilberto Freyre: "A potencialidade da cultura brasileira parece-nos residir toda na
riqueza dos antagonismos equilibrados".
Todo "Casa-Grande & Senzala", que é
assumidamente um ensaio em que faltam "conclusões
enfáticas", e não uma tese, parece ter sido construído
com uma missão: salvaguardar esse "equilíbrio de antagonismos" sempre precário, fragilíssimo, que facilmente pode degenerar em "conflito de antagonismos", a
"parte indigesta" -balcanizada- de qualquer civilização. Portanto Gilberto Freyre fareja, quase desesperadamente, qualquer indício de confraternização. Esse
valorizar, certamente trágico, não nega a existência do
conflito, e acho mesmo que tem como premissa o postulado de não haver sociedades sem conflito. O evolucionismo de "Casa-Grande & Senzala" não profetiza,
para o fim da história, uma sociedade sem conflito, em
que o conflito desaparecia absolutamente. A "metafísica social" de "Casa-Grande & Senzala" é relativista:
existem apenas sociedades nas quais os conflitos estão
mais "em equilíbrio" do que em outras.
Ajustamento raro
"Casa-Grande & Senzala" é,
então, um livro do "ainda assim". Uma passagem importantíssima para esclarecer esse seu aspecto central é
a seguinte: "Sem que no Brasil se verifique perfeita intercomunicação entre seus extremos de cultura -ainda antagônicos e por vezes até explosivos, chocando-se
em conflitos intensamente dramáticos como o de Canudos-, ainda assim podemos nos felicitar de um
ajustamento de tradições raro entre povos formados
nas mesmas circunstâncias imperialistas de colonização moderna dos trópicos". O elogio é quase arrancado
a tapas, e só pode ser feito nessas "mesmas circunstâncias" e em comparações com outras colonizações tropicais (outros elogios -como aqueles citados acima-
também são sempre relativos, comparativos, nunca absolutos). É muita vontade de gostar do Brasil "ainda assim", apesar de tudo!
Gostar? Gilberto Freyre inventou um jeitinho "especialíssimo" de gostar do Brasil. Se você chegar até o final
de "Casa-Grande & Senzala", vai deparar-se com uma
penúltima frase desagradável: é apenas a enumeração
de 26 doenças. O livro termina com uma citação pouquíssimo conclusiva: ""Os vermes e particularmente a
toenia, e as ascarides lombricoides abundão muito",
acrescenta Jobim". Estranho arremate para a descrição
de um paraíso tropical.
Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O Mundo Funk Carioca" e "O
Mistério do Samba" (Jorge Zahar). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
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