São Paulo, domingo, 12 de maio de 2002

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"Os Emigrantes", do alemão W.G. Sebald, morto no ano passado, compõe por meio de fotos, ficção e história um relato sobre a experiência do exílio nas gerações do pós-guerra

A DESTRUIÇÃO CALCULADA

por João Alexandre Barbosa

A utilização da imagem visual nos quatro livros publicados por W.G. Sebald, isto é, "Vertigo", "Os Emigrantes", "Os Anéis de Saturno" e "Austerlitz", não tem apenas uma função ilustrativa. Lendo as narrativas, percebe-se que a sua principal função é antes a de tornar mais sensível a percepção daquilo que foi possível obter pela criação de personagens e situações de que a linguagem verbal parece, sozinha, dar conta.
E mesmo quando a narrativa, como acontece em capítulos de "Os Emigrantes", traduzido por Lya Luft e publicado agora pela editora Record, tem a sua origem no encontro e na leitura pelo narrador de um álbum de fotografias, as imagens por ele escolhidas e dispersas pelo livro são antes ampliações de atmosfera do que leituras pontuais de personagens ou situações. É que as imagens são também fragmentos da memória, ela sim encarregada de compor uma coerência entre a experiência histórica e o discurso ficcional.
É como se a própria condição estilhaçada daquela experiência, alimentada pelo horror de quem surgiu para o mundo num tempo e num espaço permeado pelas catástrofes dos primeiros 50 anos do século 20 e pela "waste land" em que se transformara a Alemanha no pós-guerra, solicitasse a concretude do visual para evitar ou, pelo menos, conter a dispersão ficcional.
E um dos traços mais fascinantes da criação de Sebald é precisamente o aparente paradoxo com que, por entre escombros, faz prevalecer uma intensa delicadeza, para a qual concorrem, sem sombra de dúvida, as imagens familiares, sejam as de pessoas, sejam as de lugares, apreendidos sem nenhuma dramaticidade maior.
O que, por outro lado, imprime uma


Todos os textos se iniciam com anotações de ordem autobiográfica do narrador para, em seguida, marcar o acaso dos encontros ou do desencontro


tonalidade levemente irônica à sua utilização. Creio, no entanto, que o uso das imagens visuais tem uma outra função muito importante, embora mais elusiva: a de acentuar, por sua própria presença, a intrincada relação entre realidade, memória e ficção, em que as imagens funcionam como um documento objetivo da realidade cuja existência, no entanto, escapa a todo momento por entre os dedos do leitor e que nem mesmo aquele documento consegue cristalizar por força do trabalho incessante da memória ficcionalizada pelo discurso literário.

Território indefinido
E aqui o leitor já se encontra no miolo da criação narrativa de Sebald e motivo maior para o seu desassossego de leitura: o que se está lendo não se perfila quer como ficção, quer como história, quer como autobiografia, embora todos estes elementos (ficção, história e autobiografia) estejam presentes. E, se a narrativa de Sebald não é cada um deles separadamente, é porque ela sabe articulá-los numa espécie de arquitexto em que as características de cada um são dissolvidas e intensificadas num só conjunto maior, cujo nome é tão óbvio que ele parece ou perdido para sempre ou difícil de pronunciar. Uma espécie de "aleph" da criação literária (para usar um termo caro a um dos mestres de Sebald, Jorge Luis Borges): a narrativa. Ela, para cuja existência, e desde sempre, a ficção, a história e a autobiografia, enlaçadas pela experiência concreta do mundo, tecem a rede de significados infinitos com que o homem continua a nomear a realidade. Nesse sentido, estabelecidos tais parâmetros, creio que a leitura de "Os Emigrantes" pode começar. O livro, publicado dois anos depois de "Vertigo", é, como este, dividido em quatro capítulos que, embora conservem uma independência de sentido narrativo, são articulados pelo que se poderia chamar de ecos de um significado de base. Desse modo, se no primeiro livro as quatro partes têm por esse significado a viagem e o seu caráter alucinatório (daí o título do volume), envolvendo Stendhal ou Kafka, no primeiro e terceiro capítulos ("Beyle, ou o Amor É uma Loucura das Mais Discretas" e "Dr. K. Toma as Águas de Riga", respectivamente), ou fixando as alucinações de partida e de regresso, como no segundo e no último ("No Estrangeiro" e "O Retorno à Pátria"), em "Os Emigrantes" tal significado de base é dado pelos ecos da emigração ou, ainda melhor, do exílio, que são explorados nos quatro nomes que constituem os capítulos: o médico aposentado dr. Henry Selwyn, o professor Paul Bereyter, o tio-avô do narrador Ambros Adelwarth e o pintor Max Aurach. Como as imagens visuais, entretanto, tais nomes são antes fragmentos de memórias de personagens do que propriamente criações ficcionais. As experiências do narrador não servem apenas como alicerces para a composição de seres de ficção, como em qualquer romance realista de Balzac ou Flaubert, mas são recuperadas com a lembrança daqueles nomes, dando também ao narrador um estatuto ficcional, como acontece no grande livro de Marcel Proust. Seres de memória, tanto aqueles nomes quanto o narrador, que se encarrega de estabelecer coerências entre as experiências, aquilo que os articula é o solo da existência histórica -tempo e espaço marcados pelas contingências da vida. Desse modo, todos os textos se iniciam com anotações de ordem autobiográfica do narrador para, em seguida, marcar o acaso dos encontros ou do desencontro (como acontece no terceiro capítulo referente ao tio-avô do narrador) que serve de gatilho à narrativa.

Sonhos e pesadelos
Em cada um dos capítulos trata-se sempre de, a partir de uma motivação ocasional, refazer as articulações possíveis entre a existência do narrador e a dos personagens, em que os relatos autobiográficos destes últimos, incluindo também seus diários, álbuns de fotografias, sonhos e pesadelos, são confundidos por entre a narrativa dos acontecimentos pessoais e históricos. Não há diálogos, a não ser aqueles registrados de modo indireto e já interpretados no próprio corpo da narrativa.
Cria-se, assim, antes uma sensação de memória, de ficção e de autobiografia do que propriamente um arcabouço tangível de realidade ficcional.
O que permanece, neste grande traçado de existências mutiladas pelo significado de base, que é o exílio, a fuga, o esquecimento buscado de modo calculado, são os ecos cada vez mais amplos e ensurdecedores do maior e mais cruel dos significados e que, só de soslaio, com a delicadeza que marca a narração de Sebald, atinge o leitor: a sistemática busca de destruição no século 20.

João Alexandre Barbosa é professor de teoria literária e ensaísta, autor de "João Cabral de Melo Neto" (Publifolha) e "Alguma Crítica" (ed. Ateliê), entre outros livros.


Os Emigrantes
240 págs., R$ 28,00 de W.G. Sebald. Trad. Lya Luft. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel.0/xx/ 21/2585-2000).



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