São Paulo, domingo, 12 de junho de 2005

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A epidemia Sartre

O filósofo Bento Prado Jr., que entrevistou e conviveu com o pensador durante sua estada em SP, em 1960, lembra das multidões que atraía em suas conferências e diz que há hoje um retorno a seu pensamento

DO ENVIADO ESPECIAL A PARIS

Venha conhecer os problemas concretos com que se defrontam os países subdesenvolvidos." Após esse convite do escritor Jorge Amado (1912-2001), Jean-Paul Sartre, que já vinha de uma viagem a Cuba no início de 1960, decidiu-se por realizar uma visita ao Brasil.
À época já um fenômeno de mídia, Sartre empreenderia uma longa viagem pelo país, que se estendeu de 15/8 a 1º/11 daquele mesmo ano. Recebeu tratamento de estrela em todas as cidades por que passou, como Recife, Salvador, Fortaleza, Rio de Janeiro, Brasília, Araraquara (SP) e São Paulo. Apenas na semana que passou na capital paulista, na primeira quinzena de setembro, foi objeto de mais de 250 artigos na imprensa local.
Além de ter participado de vários debates, Sartre e Simone de Beauvoir concederam entrevista à TV Excelsior, tendo como debatedores uma seleta de jovens promissores, como Bento Prado Jr., Fernando Henrique Cardoso, Ruy Coelho e o psicanalista Luís Meyer.
Na entrevista abaixo, Bento Prado Jr., que é professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos, lembra que, antes de entrar no palco, o casal lhes comunicou as perguntas que gostariam que fossem feitas -todas elas, segundo o filósofo, "eram orientadas na direção da defesa da Argélia (em guerra com a França) e de Cuba".
Ao final de três horas de entrevista, Sartre ficou surpreso com o fato de que uma empresa capitalista pudesse manter tanto tempo no ar um programa em defesa do socialismo, afirma.
Bento Prado Jr. também relata como era Sartre na intimidade e diagnostica um retorno à fenomenologia e a Sartre nos dias atuais. Sua obra, conclui Bento Prado Jr., não é "coisa do passado". (MFP)
 

Folha - Como o sr. conheceu Jean-Paul Sartre?
Bento Prado Jr. -
Quando Sartre e Simone de Beauvoir estavam para chegar a São Paulo, acompanhados por Jorge Amado, o hoje psicanalista Luís Meyer me procurou para ver se era possível fazer uma entrevista com os dois escritores na televisão. Procurou-me porque sabia de minha amizade com Manoel Carlos, que então estava trabalhando na TV Excelsior.


Simone era obrigada a controlar um pouco Sartre, do consumo de álcool ao tempo gasto conosco


Após contato com Sartre e Simone, que concordaram com a idéia, nos encontramos pela primeira vez na televisão na hora da entrevista. Além de mim, entre os entrevistadores estavam presentes Ruy Coelho, Fernando Henrique Cardoso e o próprio Luís Meyer.
Depois desse primeiro contato passamos a nos ver praticamente todos os dias que durou a estadia do casal em São Paulo. No mais das vezes, na casa do Fernando Henrique, onde quase sempre estavam presentes os membros do seminário sobre o capital: Ruth Cardoso, José Arthur Giannotti, Paul Singer, Roberto Schwarz e outros.

Folha - Como foi a convivência com ele e Simone de Beauvoir? Como era Sartre na intimidade?
Prado Jr. -
Sartre era sempre extremamente simpático e generoso. Chegou a oferecer todos os textos da revista "Temps Modernes" [que ele dirigia], que poderíamos republicá-los livremente numa revista que cogitávamos e que nunca se tornou realidade. Simone era obrigada a controlar um pouco Sartre, desde o consumo de álcool até o tempo gasto conosco.
Lembro-me de Sartre pedindo um terceiro uísque e da intervenção em contrário de Simone. Sartre dizia: "Só mais um!". Ela respondia: "Não". Mas ele chegava a um acordo, pedindo: "Só meia dose?".
Do mesmo modo, ao fim da noite, ele nos perguntava a que horas nos encontraríamos no dia seguinte e sugeria 9h. Simone dizia: "Dez horas". O mesmo esquema do uísque funcionava: "Nove e meia?".


Ele dizia ser muito penoso dividir sua intimidade com esse outro insuportável: o Sartre famoso


Em suas memórias, Simone lembra-se de nossos encontros numa frase rápida, quando fala de "jovens universitários muito cultos". Jovens, pois tudo isso se passou em meados de 1960.

Folha - São Paulo, à época, foi tomada por uma "epidemia Sartre"?
Prado Jr. -
De certa maneira, sim. Houve várias conferências, todas elas com um público enorme.
Lembro-me, para dar um exemplo, de que estava entre nós o filósofo Gilles-Gaston Granger, dedicado à epistemologia e muito distante do universo intelectual de Sartre. Pois bem, até ele me disse: "Acho que Sartre é o maior filósofo contemporâneo, pois as últimas coisas do Heidegger...".
Se não me falha a memória, o poeta Mário Chamie (que, no entanto, apreciava desde meados da década de 50 "O Que É a Literatura?") passou, justamente por ocasião da presença de Sartre, do estrito concretismo à sua "poesia práxis".

Folha - Como Sartre se comportou na entrevista à TV Excelsior?
Prado Jr. -
Na verdade foi uma pseudo-entrevista. Antes de entrarmos no palco, Sartre e Simone nos comunicaram as perguntas que gostariam de responder. Todas as perguntas eram orientadas na direção da defesa da Argélia (em guerra com a França) e de Cuba.
Lembro que foi aqui no Brasil, por essa ocasião, que Sartre assinou o famoso Manifesto dos 121, em defesa dos rebeldes argelinos, que tanto ruído provocou na França (de retorno à França, Sartre não foi preso porque, segundo o general Charles de Gaulle [então presidente da França], "não se prende Voltaire").
O divertido é que me coube a seguinte pergunta, endereçada a Simone: "Cuba é uma ditadura?". Ela respondeu pela negativa e com tanta violência que fez um espectador na platéia perguntar a meu amigo Jorge da Cunha Lima [presidente da Fundação Padre Anchieta]: "Quem é esse rapazinho reacionário?". Meu amigo teve de explicar-lhe o contexto, livrando-me da desagradável qualificação.
A entrevista teve três horas de duração, para espanto de Sartre, que perguntava como era possível que uma empresa capitalista perdesse tanto dinheiro (suspendendo seus programas durante esse horário) para dar lugar a uma pura propaganda do socialismo.

Folha - O sr. o chamaria de um filósofo midiático avant la lettre?
Prado Jr. -
Sartre filósofo midiático? Sim e não. Não, porque antes de se empenhar no seu "engajamento" político, sua obra extraordinária (filosofia e literatura) atingia apenas o público diretamente interessado, mais ou menos 5.000 pessoas na França, segundo Sartre.
Logo no imediato pós-guerra, tudo mudou. Sartre começou a escrever para jornais (Heidegger, com inveja de tanto sucesso, chamou-o de mero jornalista, depois de tê-lo qualificado de extraordinário) e mesmo a agir por meio de um programa radiofônico.
Mas Sartre viveu essa metamorfose como uma catástrofe. Dizia ser muito penoso conviver e dividir sua intimidade com esse outro insuportável -o Sartre famoso. De resto, sua entrevista na televisão em São Paulo foi a primeira que aceitou fazer. Até então, sempre recusava convites dessa natureza. Mais que midiático, Sartre era um filósofo essencialmente ativo politicamente. O filósofo midiático posterior é aquele que se identifica narcisicamente com esse outro produzido socialmente, "como uma mercadoria".

Folha - O que ficou de seu pensamento e de suas obras ficcionais?
Prado Jr. -
Ficou o exemplo de um grande filósofo, tão raro em nossos dias, em que predomina a filosofia escolar. Hoje, até mesmo no campo extremamente técnico das ciências cognitivas, há uma espécie de retorno generalizado à fenomenologia em geral e até mesmo aos escritos de Sartre. Seguramente sua obra não é "coisa do passado", como recentemente disse uma amiga minha.
Sua obra literária é desigual. Para mim, "Os Caminhos da Liberdade" parecem pouco interessantes. Muito mais significativo é "A Náusea" e, sobretudo, os contos reunidos em "O Muro", que são perfeitamente extraordinários. Além, é claro, de sua grande obra teatral.


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