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A epidemia Sartre
O filósofo Bento Prado Jr., que entrevistou e conviveu com o pensador
durante sua estada em SP, em 1960, lembra das multidões que atraía
em suas conferências e diz que há hoje um retorno a seu pensamento
DO ENVIADO ESPECIAL A PARIS
Venha conhecer os problemas concretos com que se
defrontam os países subdesenvolvidos." Após esse
convite do escritor Jorge Amado
(1912-2001), Jean-Paul Sartre, que já
vinha de uma viagem a Cuba no início de 1960, decidiu-se por realizar
uma visita ao Brasil.
À época já um fenômeno de mídia,
Sartre empreenderia uma longa viagem pelo país, que se estendeu de
15/8 a 1º/11 daquele mesmo ano. Recebeu tratamento de estrela em todas as cidades por que passou, como
Recife, Salvador, Fortaleza, Rio de
Janeiro, Brasília, Araraquara (SP) e
São Paulo. Apenas na semana que
passou na capital paulista, na primeira quinzena de setembro, foi objeto de mais de 250 artigos na imprensa local.
Além de ter participado de vários
debates, Sartre e Simone de Beauvoir concederam entrevista à TV Excelsior, tendo como debatedores
uma seleta de jovens promissores,
como Bento Prado Jr., Fernando
Henrique Cardoso, Ruy Coelho e o
psicanalista Luís Meyer.
Na entrevista abaixo, Bento Prado
Jr., que é professor de filosofia na
Universidade Federal de São Carlos,
lembra que, antes de entrar no palco, o casal lhes comunicou as perguntas que gostariam que fossem
feitas -todas elas, segundo o filósofo, "eram orientadas na direção da
defesa da Argélia (em guerra com a
França) e de Cuba".
Ao final de três horas de entrevista,
Sartre ficou surpreso com o fato de
que uma empresa capitalista pudesse manter tanto tempo no ar um
programa em defesa do socialismo,
afirma.
Bento Prado Jr. também relata como era Sartre na intimidade e diagnostica um retorno à fenomenologia
e a Sartre nos dias atuais. Sua obra,
conclui Bento Prado Jr., não é "coisa
do passado".
(MFP)
Folha - Como o sr. conheceu Jean-Paul Sartre?
Bento Prado Jr. - Quando Sartre e
Simone de Beauvoir estavam para
chegar a São Paulo, acompanhados
por Jorge Amado, o hoje psicanalista
Luís Meyer me procurou para ver se
era possível fazer uma entrevista
com os dois escritores na televisão.
Procurou-me porque sabia de minha amizade com Manoel Carlos,
que então estava trabalhando na TV
Excelsior.
Simone era obrigada a controlar um pouco Sartre, do consumo de álcool ao tempo gasto conosco
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Após contato com Sartre e Simone, que concordaram com a idéia,
nos encontramos pela primeira vez
na televisão na hora da entrevista.
Além de mim, entre os entrevistadores estavam presentes Ruy Coelho,
Fernando Henrique Cardoso e o
próprio Luís Meyer.
Depois desse primeiro contato
passamos a nos ver praticamente todos os dias que durou a estadia do
casal em São Paulo. No mais das vezes, na casa do Fernando Henrique,
onde quase sempre estavam presentes os membros do seminário sobre
o capital: Ruth Cardoso, José Arthur
Giannotti, Paul Singer, Roberto
Schwarz e outros.
Folha - Como foi a convivência com
ele e Simone de Beauvoir? Como era
Sartre na intimidade?
Prado Jr. - Sartre era sempre extremamente simpático e generoso.
Chegou a oferecer todos os textos da
revista "Temps Modernes" [que ele
dirigia], que poderíamos republicá-los livremente numa revista que cogitávamos e que nunca se tornou
realidade. Simone era obrigada a
controlar um pouco Sartre, desde o
consumo de álcool até o tempo gasto
conosco.
Lembro-me de Sartre pedindo um
terceiro uísque e da intervenção em
contrário de Simone. Sartre dizia:
"Só mais um!". Ela respondia:
"Não". Mas ele chegava a um acordo, pedindo: "Só meia dose?".
Do mesmo modo, ao fim da noite,
ele nos perguntava a que horas nos
encontraríamos no dia seguinte e
sugeria 9h. Simone dizia: "Dez horas". O mesmo esquema do uísque
funcionava: "Nove e meia?".
Ele dizia ser
muito penoso dividir sua intimidade com esse outro insuportável: o Sartre famoso
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Em suas memórias, Simone lembra-se de nossos encontros numa
frase rápida, quando fala de "jovens
universitários muito cultos". Jovens,
pois tudo isso se passou em meados
de 1960.
Folha - São Paulo, à época, foi tomada por uma "epidemia Sartre"?
Prado Jr. - De certa maneira, sim.
Houve várias conferências, todas
elas com um público enorme.
Lembro-me, para dar um exemplo, de que estava entre nós o filósofo Gilles-Gaston Granger, dedicado
à epistemologia e muito distante do
universo intelectual de Sartre. Pois
bem, até ele me disse: "Acho que
Sartre é o maior filósofo contemporâneo, pois as últimas coisas do Heidegger...".
Se não me falha a memória, o poeta Mário Chamie (que, no entanto,
apreciava desde meados da década
de 50 "O Que É a Literatura?") passou, justamente por ocasião da presença de Sartre, do estrito concretismo à sua "poesia práxis".
Folha - Como Sartre se comportou
na entrevista à TV Excelsior?
Prado Jr. - Na verdade foi uma
pseudo-entrevista. Antes de entrarmos no palco, Sartre e Simone nos
comunicaram as perguntas que gostariam de responder. Todas as perguntas eram orientadas na direção
da defesa da Argélia (em guerra com
a França) e de Cuba.
Lembro que foi aqui no Brasil, por
essa ocasião, que Sartre assinou o famoso Manifesto dos 121, em defesa
dos rebeldes argelinos, que tanto
ruído provocou na França (de retorno à França, Sartre não foi preso
porque, segundo o general Charles
de Gaulle [então presidente da França], "não se prende Voltaire").
O divertido é que me coube a seguinte pergunta, endereçada a Simone: "Cuba é uma ditadura?". Ela
respondeu pela negativa e com tanta
violência que fez um espectador na
platéia perguntar a meu amigo Jorge
da Cunha Lima [presidente da Fundação Padre Anchieta]: "Quem é esse rapazinho reacionário?". Meu
amigo teve de explicar-lhe o contexto, livrando-me da desagradável
qualificação.
A entrevista teve três horas de duração, para espanto de Sartre, que
perguntava como era possível que
uma empresa capitalista perdesse
tanto dinheiro (suspendendo seus
programas durante esse horário)
para dar lugar a uma pura propaganda do socialismo.
Folha - O sr. o chamaria de um filósofo midiático avant la lettre?
Prado Jr. - Sartre filósofo midiático?
Sim e não. Não, porque antes de se
empenhar no seu "engajamento"
político, sua obra extraordinária (filosofia e literatura) atingia apenas o
público diretamente interessado,
mais ou menos 5.000 pessoas na
França, segundo Sartre.
Logo no imediato pós-guerra, tudo mudou. Sartre começou a escrever para jornais (Heidegger, com inveja de tanto sucesso, chamou-o de
mero jornalista, depois de tê-lo qualificado de extraordinário) e mesmo
a agir por meio de um programa radiofônico.
Mas Sartre viveu essa metamorfose como uma catástrofe. Dizia ser
muito penoso conviver e dividir sua
intimidade com esse outro insuportável -o Sartre famoso. De resto,
sua entrevista na televisão em São
Paulo foi a primeira que aceitou fazer. Até então, sempre recusava convites dessa natureza. Mais que midiático, Sartre era um filósofo essencialmente ativo politicamente. O filósofo midiático posterior é aquele
que se identifica narcisicamente
com esse outro produzido socialmente, "como uma mercadoria".
Folha - O que ficou de seu pensamento e de suas obras ficcionais?
Prado Jr. - Ficou o exemplo de um
grande filósofo, tão raro em nossos
dias, em que predomina a filosofia
escolar. Hoje, até mesmo no campo
extremamente técnico das ciências
cognitivas, há uma espécie de retorno generalizado à fenomenologia
em geral e até mesmo aos escritos de
Sartre. Seguramente sua obra não é
"coisa do passado", como recentemente disse uma amiga minha.
Sua obra literária é desigual. Para
mim, "Os Caminhos da Liberdade"
parecem pouco interessantes. Muito
mais significativo é "A Náusea" e,
sobretudo, os contos reunidos em
"O Muro", que são perfeitamente
extraordinários. Além, é claro, de
sua grande obra teatral.
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