São Paulo, domingo, 12 de junho de 2005

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Jazz traduz indeterminação do ser em "A Náusea"

MANUEL DA COSTA PINTO
CRÍTICO DA FOLHA

O romance "A Náusea" é lido, normalmente, como contrapartida ficcional de "O Ser e o Nada", obra que transformou Sartre numa celebridade do pós-guerra.
E, de fato, o contraste entre a trama sumária e as longas meditações do protagonista fazem com que o livro pareça um "romance de tese", destinado a ilustrar a idéia de contingência, que o autor iria desenvolver no "Ensaio de Ontologia Fenomenológica", lançado em 1943.
A "literatura" sartriana pode decrescer diante de um olhar instruído apenas pela busca de recursos estéticos. Mas tanto faz que "A Náusea" seja um breviário ficcional de "O Ser e o Nada", da mesma maneira que os "Caminhos da Liberdade" ilustram a "Crítica da Razão Dialética" (livro em que Sartre colhe os desdobramentos histórico-políticos de suas investigações metafísicas).
Pois a mirada formalista está em xeque aqui, como estará no magnífico "O Que é Literatura?" -no qual descreve a "função poética" da linguagem melhor do que qualquer outro crítico, para então propor para a prosa um "mais além", uma apropriação do mundo que a poesia "pura" não poderia realizar.

Apropriação do real
É justamente esse impulso de apropriação do real que começa a se esboçar em "A Náusea". Apresentado na forma de um diário datado "por volta do início de 1932", o "manuscrito" traz a história de Antoine Roquentin, historiador que, após viajar pela África e pelo Oriente, realiza uma pesquisa em Bouville (localidade imaginária em que se reconhece Havre, cidade da Normandia em que Sartre lecionou em 1931-36).
Ali, entre leituras na biblioteca, o cotidiano do hotel em que mora, passeios pela cidade portuária e uma ou outra aventura sexual, ele persegue a possibilidade de constituir algo "necessário" na medida em que sente o "roçar do tempo" e vai se confrontando com a gratuidade de coisas e seres que poderiam perfeitamente não existir.

Mal-estar pequeno-burguês
O derrisório objeto de suas pesquisa (uma obscura personagem do fim do século 18) é a metonímia desse fastio, dessa sensação de mal-estar pequeno-burguês que vai cobrindo tudo como uma fina camada de ferrugem. Mas, ainda que um dos primeiros títulos pensados por Sartre para o livro, "Melancolia", tivesse ressonâncias psicanalíticas, o registro psicologizante é evitado: a opção final por "A Náusea" (que se deve à intervenção do editor Gaston Gallimard) traduz perfeitamente o estado de exasperação de Roquentin.

Liberdade singular
A indeterminação do ser, que deflagra essa náusea de uma contingência essencial, o lança numa espécie singular de liberdade -que consiste em construir um sentido para além de si. Num mundo em que Deus está morto, as criaturas se transformam em seres errantes, que podem se agarrar à má-fé de suas construções imaginárias ou criar algo que seja "necessário".
O jazz, que Roquentin escuta obsessivamente, traduz tal imagem de uma totalidade construída. Nessa música estruturada sobre o improviso, a seqüência das notas é como a factididade (entendida sartrianamente como nossa condição concreta, o puro fato sem fundamento que está além de nossa decisão, como o corpo ou a época em que nascemos).
E como o músico de jazz, que ordena as notas que lhe chegam sem plano definido, a consciência livre age a partir de estruturas dadas pela gratuidade dessa narrativa sem narrador que é o mundo.

Movimento especulativo
Os devaneios de Roquentin se encaminham para esse movimento especulativo, mas não se limitam a ele. Em "A Náusea", ouvem-se os rumores de ferragem que chegam do porto e sente-se o cheiro de cerveja, chucrute a cachimbo que emana das tavernas de Bouville -nome alegórico cujo trocadilho poderia ser traduzido por "cidade dos confins".
Além disso, há em "A Náusea" uma espessura propriamente literária, que inclui citações explícitas e cenas que remetem a passagens da alta ficção francesa, como a cena em que Roquentin olha Bouville do alto (uma referência ao Rastignac, de Balzac, contemplando Paris em "O Pai Goriot") ou a longa descrição do momento em que a idéia do absurdo e da contingência irrompem, como uma "madeleine" proustiana, na consciência do anti-herói de Sartre.


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