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Jazz traduz indeterminação do ser em "A Náusea"
MANUEL DA COSTA PINTO
CRÍTICO DA FOLHA
O romance "A Náusea" é lido, normalmente, como
contrapartida ficcional de
"O Ser e o Nada", obra que
transformou Sartre numa celebridade do pós-guerra.
E, de fato, o contraste entre a trama
sumária e as longas meditações do
protagonista fazem com que o livro
pareça um "romance de tese", destinado a ilustrar a idéia de contingência, que o autor iria desenvolver no
"Ensaio de Ontologia Fenomenológica", lançado em 1943.
A "literatura" sartriana pode decrescer diante de um olhar instruído
apenas pela busca de recursos estéticos. Mas tanto faz que "A Náusea"
seja um breviário ficcional de "O Ser
e o Nada", da mesma maneira que
os "Caminhos da Liberdade" ilustram a "Crítica da Razão Dialética"
(livro em que Sartre colhe os desdobramentos histórico-políticos de
suas investigações metafísicas).
Pois a mirada formalista está em
xeque aqui, como estará no magnífico "O Que é Literatura?" -no qual
descreve a "função poética" da linguagem melhor do que qualquer outro crítico, para então propor para a
prosa um "mais além", uma apropriação do mundo que a poesia "pura" não poderia realizar.
Apropriação do real
É justamente esse impulso de
apropriação do real que começa a se
esboçar em "A Náusea". Apresentado na forma de um diário datado
"por volta do início de 1932", o "manuscrito" traz a história de Antoine
Roquentin, historiador que, após
viajar pela África e pelo Oriente, realiza uma pesquisa em Bouville (localidade imaginária em que se reconhece Havre, cidade da Normandia
em que Sartre lecionou em 1931-36).
Ali, entre leituras na biblioteca, o
cotidiano do hotel em que mora,
passeios pela cidade portuária e uma
ou outra aventura sexual, ele persegue a possibilidade de constituir algo "necessário" na medida em que
sente o "roçar do tempo" e vai se
confrontando com a gratuidade de
coisas e seres que poderiam perfeitamente não existir.
Mal-estar pequeno-burguês
O derrisório objeto de suas pesquisa (uma obscura personagem do fim
do século 18) é a metonímia desse
fastio, dessa sensação de mal-estar
pequeno-burguês que vai cobrindo
tudo como uma fina camada de ferrugem. Mas, ainda que um dos primeiros títulos pensados por Sartre
para o livro, "Melancolia", tivesse
ressonâncias psicanalíticas, o registro psicologizante é evitado: a opção final por "A Náusea" (que se deve à
intervenção do editor Gaston Gallimard) traduz perfeitamente o estado de exasperação de Roquentin.
Liberdade singular
A indeterminação do ser, que deflagra essa náusea de uma contingência essencial, o lança numa espécie singular de liberdade -que consiste em construir um sentido para
além de si. Num mundo em que
Deus está morto, as criaturas se
transformam em seres errantes, que
podem se agarrar à má-fé de suas
construções imaginárias ou criar algo que seja "necessário".
O jazz, que Roquentin escuta obsessivamente, traduz tal imagem de
uma totalidade construída. Nessa
música estruturada sobre o improviso, a seqüência das notas é como a
factididade (entendida sartrianamente como nossa condição concreta, o puro fato sem fundamento que
está além de nossa decisão, como o
corpo ou a época em que nascemos).
E como o músico de jazz, que ordena as notas que lhe chegam sem
plano definido, a consciência livre
age a partir de estruturas dadas pela
gratuidade dessa narrativa sem narrador que é o mundo.
Movimento especulativo
Os devaneios de Roquentin se encaminham para esse movimento especulativo, mas não se limitam a ele.
Em "A Náusea", ouvem-se os rumores de ferragem que chegam do porto e sente-se o cheiro de cerveja, chucrute a cachimbo que emana das tavernas de Bouville -nome alegórico cujo trocadilho poderia ser traduzido por "cidade dos confins".
Além disso, há em "A Náusea"
uma espessura propriamente literária, que inclui citações explícitas e
cenas que remetem a passagens da
alta ficção francesa, como a cena em
que Roquentin olha Bouville do alto
(uma referência ao Rastignac, de
Balzac, contemplando Paris em "O
Pai Goriot") ou a longa descrição do
momento em que a idéia do absurdo
e da contingência irrompem, como
uma "madeleine" proustiana, na
consciência do anti-herói de Sartre.
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