São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2000

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Sarraute colocou as próprias palavras como personagens; são as palavras e expressões que, cansadas de serem usadas e domesticadas, revoltam-se e resolvem tomar o controle das conversas, criticando-as, preparando motins, fugas e investidas fulminantes
Nathalie Sarraute, as palavras em cena

Associated Press
A escritora francesa Nathalie Sarraute


por Leyla Perrone-Moisés

Nathalie Sarraute morreu no ano passado, aos 99 anos. Um fenômeno de longevidade e, mais impressionante, um fenômeno de vitalidade mental e criativa. Da primeira à última obra, ela jamais perdeu o rumo e o pique. Com o livro "Ouvrez" (Abram, ed. Gallimard, França, 136 págs, 85 francos), publicado em 1997, ela saiu de cena em grande estilo: teimosa, irredutível e genial. Em 1996, ela recebera o Grande Prêmio de Teatro da associação dos autores dramáticos de seu país e uma homenagem rara para os autores vivos: a publicação de suas obras completas na coleção "Pléiade" (Gallimard, 2.128 págs., 450 francos).
Para serem devidamente avaliadas, uma vida tão longa e uma obra tão notável exigem, pelo menos, um retrospecto. Sarraute nasceu na Rússia e foi para a França ainda criança. Formou-se em letras e em direito e trabalhou como advogada até 1940, quando, por ser judia e se recusar a usar a estrela amarela, não pôde mais exercer a profissão. Ela já havia então ingressado numa outra carreira, a de escritora.
Publicara, em 1939, um livro intitulado "Tropismes", composto de micronarrativas ou microssituações, em que a psicologia das personagens se reduzia a "movimentos indefiníveis, que deslizam muito rapidamente nos limites da consciência". Em 1949, publicou "Portrait d'un Inconnu" com um prefácio de Sartre que, para definir esse tipo de experiência ficcional, forjou a expressão "anti-romance". Depois deste, vieram à luz outros "anti-romances" de Sarraute: "Martereau"; "Le Planétarium"; "Les Fruits d'Or".
Em 1956, ela publicou "L'Ère du Soupçon", um ensaio fundamental sobre a situação do gênero romanesco no século 20. O título faz alusão a uma frase famosa de Stendhal: "O gênio da suspeita veio ao mundo". Tratava-se, no ensaio de Sarraute, da suspeita que tomara conta de autores e leitores, com respeito às intrigas e personagens de romance estereotipadas à força das inúmeras repetições das receitas do século 19. A desconfiança da romancista atingia até mesmo as sondagens psicológicas mais aprofundadas, as análises finas e os monólogos interiores levados a efeito por autores que ela admirava, como Marcel Proust, James Joyce e Virginia Woolf. Porque, dizia ela, quando se pensa ter chegado ao mais profundo do ser humano, se chegou apenas a mais um patamar; e o último fundo, como mostra a psicanálise, não existe.
Ela se interessava pelos "movimentos sutis, quase imperceptíveis, fugitivos, contraditórios, evanescentes, frágeis tremores, esboços de apelos tímidos e de recuos, sombras leves que deslizam, e cujo jogo incessante constitui a trama invisível de todas as relações humanas e a própria substância de nossa vida". Navegando nessas águas turvas, Sarraute desconfiava também da psicologia individual e via em certas páginas de Dostoiévski a possibilidade de desenvolver algo como "um novo animismo", que não seria uma psicologia coletiva, mas uma psicologia de personagens postas em relação umas com as outras.
Essas relações, indicadas em seu ensaio e exploradas em seus romances, são sempre perigosas. Para estudá-las, ela criou um procedimento denominado "subconversa", que se tornou sua marca registrada. Por detrás das conversas mais corriqueiras, travam-se sempre outras conversas menos articuladas e mais dramáticas, feitas de desejos, vaidades e medos, ora em estado latente, ora afluindo de modo súbito e agressivo.
A subconversa desmascara o diálogo, revela seu caráter secreto de luta pela auto-afirmação, pela defesa de auto-imagens ameaçadas, e leva sempre o falante ao sentimento de sua absoluta solidão. Esse é, aliás, o sentido da metáfora de "Le Planétarium": as personagens como planetas solitários, cada um em sua órbita, cruzando com outros e às vezes entrando em choque. A rota pessoal de Sarraute já estava traçada desde o primeiro livro. O aparecimento de outros romancistas experimentais, nos anos 50, fez com que ela se visse anexada, involuntariamente, ao movimento chamado "novo romance", representado por autores como Alain Robbe-Grillet, Michel Butor e Claude Simon. Na verdade, Sarraute sempre foi absolutamente independente e, por temperamento, avessa a grupos e programas coletivos. É sintomático que, em 1971, num colóquio tardio consagrado ao "novo romance", a única e brusca intervenção da romancista nos debates tenha sido para contradizer o teórico do movimento, Jean Ricardou. E quem a viu, por ocasião de uma breve passagem pelo Brasil, nos anos 60, guarda a imagem de uma senhora severa, de casaco e chapéu, visivelmente pouco propensa às festividades desse tipo de visita. Passada a onda do "novo romance", Sarraute prosseguiu no caminho que nunca havia abandonado: o da exploração dos seísmos subterrâneos que ocorrem sob a crosta das falas convencionais. Na década de 70, escreveu mais alguns romances: "Entre la Vie et la Mort", "Vous Les Entendez?", "Disent les Imbéciles" e "Tu Ne t'Aimes Pas". Em 1983, publicou "Enfance", narrativa autobiográfica que coloca em dúvida a própria possibilidade de narrar lembranças da infância. Seus últimos textos não traziam mais indicação de gênero.

Repúdio ao conformismo
Os romances de Sarraute não são apenas experiências formais. Todos eles têm um caráter de crítica da sociedade burguesa, de repúdio ao conformismo e ao culto das aparências que a caracterizam. A romancista desmascara a falsidade das relações sociais pela inspeção minuciosa da linguagem de suas personagens, eivada de lugares-comuns e declarações pomposas, sob os quais se escondem motivações mesquinhas. O diálogo é a forma privilegiada em sua ficção, e vários de seus romances se iniciam com uma fala precedida de travessão. Essa forma dialógica deu à sua obra, desde sempre, um aspecto virtualmente teatral. O ouvido finíssimo da romancista, capaz de captar e transmitir todos os tons e semitons das conversas de salão e das disputas familiares, apura o ouvido do próprio leitor, que ouve o texto mais do que o lê. A virtualidade cênica de sua obra não escapou a certos leitores especializados, como Werner Spies, produtor radiofônico de Stuttgart, que, em 1963, lhe encomendou uma peça. Convencida, inicialmente, de que não seria capaz de dominar o gênero dramático, Sarraute acabou aceitando e escreveu "Le Silence". Nessa peça, os interlocutores, designados apenas pelas iniciais F e H (de "femme" -mulher- e "homme" -homem), acompanhadas de números (F.1., F.2., ... H.1., H. 2., ...), se vêem terrivelmente incomodados pelo silêncio obstinado da única personagem com nome, Jean-Pierre, que eles tentam fazer falar. A conversa é comandada pela escuta silenciosa de Jean-Pierre e acaba por desandar, deixando a nu a solidão e a angústia dos falantes. Um drama psicossociológico com toques humorísticos, daquele humor a frio que os franceses chamam de "pince-sans-rire". A experiência foi tão bem-sucedida que Sarraute escreveu uma segunda peça, "Le Mensonge". Juntamente com "Le Silence", essa foi encenada pela companhia de Jean-Louis Barrault, em 1967. Depois disso, ela escreveu mais quatro peças de teatro, sendo que uma delas, "Pour un Oui ou pour un Non", foi levada ao palco primeiramente em Nova York e alcançou depois um grande sucesso na França, onde estourou no Festival de Avignon e teve, em seguida, versões televisivas e cinematográficas. A romancista, que não pensava em escrever obras dramáticas, na verdade, nunca havia feito outra coisa. Ela se deu conta de que nunca conseguira "ver" as personagens de suas obras, mas apenas "ouvi-las", o que, finalmente, conferia uma grande liberdade aos encenadores e uma grande responsabilidade aos atores, que deviam compor suas personagens a partir de suas falas e vozes. Um de seus encenadores, Claude Régy, observou que os textos de Sarraute não são psicológicos, mas musicais, tudo neles sendo uma questão de entonação: "Sarraute prevê cada inflexão, que vai do ínfimo até o desastre histórico". O texto do qual apresento agora a tradução parcial não foi escrito para o teatro, mas é evidentemente teatral. "Ouvrez" foi publicado quando a autora estava com 97 anos e tem um frescor juvenil. Sarraute descartou as personagens humanas (que, afinal, ela detestava) e colocou as próprias palavras como personagens. São as palavras e expressões que, cansadas de serem usadas e domesticadas, se revoltam e resolvem tomar o controle das conversas, criticando-as, preparando motins, fugas e investidas fulminantes. O resultado é cáustico e desopilante. A agilidade das réplicas é a realização máxima do estilo Sarraute. O narrador de "Martereau" dizia dos bons escritores: "Eles possuem o que falta à nós outros, modelos informes, caos em que se entrechocam mil possibilidades -o estilo, o exagero revelador, a simplicidade e a nitidez audaciosa do traço". E a própria romancista definia o trabalho do estilo como uma performance atlética, pautada pela eficácia. Embora eminentemente verbal, por sua temática e sua matéria-prima, "Ouvrez" tem uma grande movimentação cênica. Os blocos de personagens-palavras comprimidas atrás de uma divisória e as passagens clandestinas de um lado para outro têm algo de farsesco. Não por acaso, uma das encenações de "Le Silence" que mais agradou à autora foi a de Elisabeth Chailloux, em que as personagens F e H eram representadas como palhaços de circo. Os clowns, como já comprovara Beckett, são o que há de mais sério quando se trata de mostrar o absurdo de nossa condição. O ludismo e a má-criação das palavras-personagens de "Ouvrez" são a realização literal de um impulso infantil, que Sarraute narrou em "Enfance". Em resposta às palavras proibitivas dos adultos, a criança que ela foi reagia dizendo o contrário: "Sob sua pressão, algo igualmente forte em mim, algo ainda mais forte, se levanta, se eleva... as palavras que saem de minha boca o carregam, o projetam para fora...". É exatamente essa força libertária e jubilatória que anima "Ouvrez".

Tiques de linguagem
A tradução integral de "Ouvrez" seria uma tarefa, se não impossível (já que tudo é traduzível, dependendo da habilidade do tradutor), pelo menos muito difícil. A maioria das "cenas" gira em torno de expressões idiomáticas ou usos coloquiais especificamente franceses que, para serem traduzidos, precisariam ser recriados com lugares-comuns ou tiques de linguagem da outra língua. E, como se trata de linguagem corrente, o texto brasileiro seria diferente de um eventual texto português.
De qualquer modo, a extrema atenção à linguagem, a codificação de seu uso e o horror à banalidade são características da cultura francesa, uma cultura que, dos salões de Versalhes às reuniões burguesas atuais, fez do dito espirituoso uma obrigação e condenou os falantes a um risco permanente; pois tanto a falta de espírito como o excesso do mesmo podem levar ao ridículo.
A fascinação pela "bobagem", como notaram Flaubert, Valéry e Barthes, é uma armadilha perigosa para qualquer pessoa, porque, quanto mais a vemos, mais a identificamos em nós mesmos. Embora tipicamente francês, o verbalismo de Sarraute tem um valor crítico aplicável a qualquer língua e a qualquer sociedade contemporânea. "Ouvir" o que dizemos habitualmente, como faz Sarraute, é uma experiência ao mesmo tempo salutar e aterrorizante. Salutar, porque nos torna mais atentos e vigilantes com relação à ideologia que dita as mais simples de nossas frases, e aterrorizante, porque podemos nos tornar autocríticos até o extremo de optar pelo silêncio.


Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de, entre outros, "Inútil Poesia", coletânea de ensaios que está sendo lançada pela Companhia das Letras.



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