São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2000

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Leia abaixo monólogo do dramaturgo russo que será lançado neste mês, em nova tradução, pela Ateliê Editorial

Os males do tabaco

por Anton Tchecov

A cena representa o estrado de um clube de província

Niúkhin (de suíças longas, sem bigodes, com um velho fraque surrado, entra majestosamente, faz uma reverência e arruma o colete) - Prezadas senhoras e, de certo modo, prezados senhores. (Cofia as suíças) Pediram à minha mulher que eu realizasse aqui uma conferência qualquer de interesse geral para fins beneficentes. E daí? Uma conferência não passa de uma conferência -para mim, decididamente, dá na mesma. Eu, naturalmente, não sou um catedrático e não pertenço ao meio científico, mas, mesmo assim, já faz mais ou menos 30 anos que eu, ininterruptamente e, se pode até dizer, com o prejuízo de minha própria saúde e coisa e tal, venho me dedicando a questões de caráter estritamente científico, refletindo e até mesmo escrevendo, vez ou outra, imaginem os senhores, artigos científicos, isto é, não propriamente científicos, mas, perdoem a expressão, do gênero científico, por assim dizer. Entre outras coisas, foi escrito nesses dias por mim um artigo enorme, intitulado "Dos Males de Alguns Insetos". As filhas gostaram muito, principalmente no que dizia respeito aos percevejos, mas eu li e rasguei. Pois dá na mesma escrever ou não escrever, mas sem pó da Pérsia ninguém vive. Em casa, até no piano de cauda há percevejos...
Como assunto da minha conferência de hoje escolhi, por assim dizer, os males que acarreta à humanidade o uso do tabaco. Eu mesmo fumo, mas minha mulher mandou-me falar hoje sobre os males do tabaco e, sendo assim, não há o que discutir. Falar sobre o tabaco ou não, para mim, decididamente, dá na mesma, mas aos senhores, prezados ouvintes, peço que encarem esta minha conferência com a devida seriedade, caso contrário, não haverá proveito. Quem se assusta com uma conferência científica árida, quem não aprecia, então pode não assisti-la e retirar-se. (Arruma o colete)
Peço a particular atenção dos senhores médicos aqui presentes, que poderão extrair de minha conferência muitos testemunhos úteis, uma vez que o tabaco, apesar de seus efeitos nocivos, é empregado igualmente na medicina. De modo que, se uma mosca, por exemplo, pousar em cima de uma tabaqueira, ela, provavelmente, morrerá de distúrbio nervoso. O tabaco é principalmente uma planta... Quando faço uma conferência, tenho o hábito de piscar com o olho direito, mas os senhores não reparem: isso se deve à emoção. Sou uma pessoa muito nervosa, falando de um modo geral, e meu olho começou a piscar em 13 de setembro de 1889, no mesmo dia, de qualquer maneira, em que nasceu a quarta filha da minha mulher, a Varvara. Todas as minhas filhas nasceram num dia 13. Por outro lado (depois de consultar o relógio), em vista do adiantado da hora, não vamos nos afastar do assunto da conferência.
É preciso que os senhores saibam que minha mulher mantém uma escola de música e um pensionato particular, isto é, não se trata propriamente de um pensionato, mas de algo do gênero. Cá entre nós, minha mulher gosta de se queixar da falta de dinheiro, mas ela tem uns 40 ou 50 mil escondidos, e eu, nem um tostão furado -ora, não há o que discutir! No pensionato eu cuido da parte administrativa. Compro os mantimentos, controlo a criada, tomo nota das despesas, costuro os cadernos, extermino os percevejos, levo o cachorrinho da minha mulher para passear, caço os ratos...
Ontem à noite, era minha obrigação entregar à cozinheira farinha e manteiga para fazer panquecas. Pois bem, resumindo, hoje, quando as panquecas já estavam prontas, minha mulher foi à cozinha dizer que três educandas não iam comer panquecas porque estavam com os gânglios inchados. Resultado: tínhamos feito algumas panquecas a mais. O que acham que fizemos com elas? Primeiramente minha mulher mandou guardá-las no porão, mas depois pensou melhor e disse: "Coma você mesmo essas panquecas, seu espantalho".
Ela, quando não está bem disposta, chama-me assim: espantalho ou víbora ou satanás. Mas que diabo de satanás sou eu? Ela nunca está bem disposta. Quanto a mim, eu não as comi, mas engoli sem mastigar, porque vivo morto de fome. Ontem, por exemplo, ela não me deu a janta. "Você, seu espantalho, não tem precisão de comida..." Porém, no entanto (consulta o relógio), ficamos aqui proseando e nos afastamos um pouco do tema. Vamos continuar.
Embora, naturalmente, os senhores preferissem ouvir agora uma romança, ou uma sinfonia qualquer, ou mesmo uma ária... (Cantarola) "Estaremos, sem pestanejar, no pó da batalha..." Nem lembro de onde vem isso... A propósito, esqueci de dizer-lhes que na escola de música da minha mulher, além da administração, tenho também a meu encargo o ensino da matemática, da física, da química, da geografia, da história, do solfejo, da literatura etc. Pela dança, pelo canto e pelo desenho minha mulher cobra à parte, embora continue sendo eu mesmo a ensinar dança e música. Nosso estabelecimento musical fica no beco dos Cinco Cachorros, casa número 13. Aí está, provavelmente, o porquê de minha vida ser tão azarada: é por morarmos no número 13. Além disso, minhas filhas nasceram num dia 13 e em nossa casa temos 13 janelas... Ora, isso não vem ao caso!
Para entrevistas, pode-se encontrar minha mulher em casa a qualquer hora, e o programa da escola, se quiserem, encontra-se à venda com o porteiro por 30 copeques o exemplar. (Tira do bolso alguns programas) Se quiserem, eu mesmo posso ceder alguns. Trinta copeques o exemplar! Alguém quer? (Pausa) Ninguém quer? Deixo por 20! (Pausa) Que pena! Pois então, é a casa número 13!
Comigo nada dá certo, envelheci, estou ficando gagá... Fazendo aqui esta conferência, pareço estar alegre, mas no íntimo tenho ganas de gritar até perder a voz ou de sair voando para algum lugar no fim do mundo. E não tenho a quem me queixar, até vontade de chorar eu sinto...
Os senhores diriam: tem as filhas... Qual o quê! Falo com elas, e só fazem dar risadas... Minha mulher pôs sete filhas no mundo... Não, desculpem, parece que foram seis... (Com vivacidade) Sete! Anna, a mais velha de todas, tem 27 anos, a mais nova, 17. Prezados senhores! (Olha ao redor) Sou um infeliz, tornei-me um imbecil, um inútil, mas, no fundo, os senhores estão vendo diante de si o mais feliz dos pais. No fundo, é assim que deve ser e eu não ouso dizer o contrário. Se os senhores soubessem! Estou vivendo há 33 anos com minha mulher e posso dizer que foram os melhores anos da minha vida, nem todos os melhores, mas, no geral, foram assim. Em suma, passaram como um momento único de felicidade, propriamente falando, ao diabo com eles. (Olha ao redor) Por sinal, parece que ela ainda não chegou, não está aqui e se pode falar à vontade...
Morro de medo... quando ela está me olhando. Pois é, estava dizendo, minhas filhas ainda não tiveram a oportunidade de casar porque são retraídas e porque nunca se deixam ver pelos homens. Minha senhora não pode dar festas à noite, para o jantar ela nunca tem convidados, é uma mulher muito avarenta, implicante, muito briguenta, e por isso ninguém aparece em casa, mas... posso lhes dizer cá entre nós... (Aproxima-se da beira do tablado) As filhas de minha mulher podem ser vistas em festas importantes na casa da tia Natália Semiônovna, aquela mesma que sofre de reumatismo e usa aquele vestido amarelo com manchinhas pretas que parecem baratas. Lá costuma ter comes e bebes. E, quando minha mulher não vai, se pode até... (Faz o gesto de quem bebe)
Devo dizer aos senhores que, para me deixar grogue, basta um cálice, e isso já me faz bem à alma, ao mesmo tempo em que me deixa tão triste que nem sei como dizer; sabe-se lá por quê, faz-me lembrar dos tempos da juventude e me dá vontade de fugir, ah, e que vontade, se os senhores soubessem! (Com empolgação)
Fugir, jogar tudo para cima e fugir sem olhar... para onde? Tanto faz para onde... contanto que consiga fugir dessa vida suja, vulgar, miserável, que me transformou num velho, num velho imbecil e desprezível, num velho, num desprezível idiota, fugir dessa minha mulher estúpida, mesquinha, malvada, malvada, unha de fome malvada, que me atormenta há 33 anos, fugir da música, da cozinha, do dinheiro dela, de todas essas misérias e vulgaridades... e ir parar nalgum lugar bem longe no campo e me transformar em árvore, em poste, num espantalho de pássaros, a céu aberto, e passar a noite contemplando a lua clara, silenciosa, que paira acima da gente, e esquecer, esquecer...
Oh, como eu gostaria de não lembrar mais nada!... Como eu gostaria de arrancar do corpo este fraque velho e nauseabundo com o qual me casei há 30 anos... (tira o fraque), com o qual sempre faço conferências para fins beneficentes... Tome! (Pisoteia o fraque) Tome! Sou um velho, um coitado, desprezível como este velho colete, com as costas puídas... (Mostra as costas) Eu não preciso de nada! Estou acima, sou mais puro que isso tudo, eu, na juventude, era inteligente, fazia a universidade, sonhava, considerava-me um homem... Hoje, não preciso de nada! Nada, a não ser de paz! (Olha para o lado e veste rapidamente o fraque) Minha mulher encontra-se nos bastidores, chegou e está lá à minha espera... (Consulta o relógio) O tempo já se foi... Se ela perguntar, tenham a bondade de dizer, peço-lhes, que a conferência foi... que o espantalho, isto é, eu, portou-se com dignidade. (Olha para o lado, pigarreia) Ela está olhando para cá... (Elevando a voz) Partindo-se de que o tabaco encerra em si o terrível veneno, do qual acabo de falar, não se deve fumar absolutamente, em caso algum, e eu, seja como for, permito-me a esperança de que esta minha conferência sobre "os males do tabaco" tenha sido de alguma utilidade. Tenho dito. "Dixi et animam levavi"! ("Disse e aliviei a alma!") (Faz uma reverência e sai majestosamente)
 Cortina


Tradução de Aurora Fornoni Bernardini.


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