São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2000

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Leia a seguir conto do autor russo extraído de "O Diabo e Outras Histórias", que inaugura a coleção "Prosa do Mundo" da editora Cosac & Naify e chega às livrarias no final deste mês
Depois do baile

por Leon Tolstói

Pois bem, vocês dizem que o homem não pode compreender por si só o que é bom, o que é mau, que tudo depende do meio, que o meio devora tudo. Eu, porém, penso que tudo depende do acaso. É de mim que estou falando."
Assim começou a falar Ivan Vassílievitch, respeitado por todos, ao final de uma conversa que tivemos, quando dizíamos que, para o aprimoramento pessoal, era antes necessário mudar as condições de vida dos homens. Ninguém havia dito propriamente que lhe era impossível compreender o que é bom e o que é mau, mas Ivan Vassílievitch tinha aquele jeito peculiar de reagir às idéias que lhe surgiam de uma conversa e tomá-las como ensejo para contar episódios de sua vida. Era frequente esquecer por completo o motivo que o levara a narrar, se deixando arrebatar pela narração. Era o que acontecia naquele momento.
- Eu falo de mim. Toda a minha vida tem sido assim e não de outro jeito, não decorreu do meio, mas de algo bem diferente.
- De que então? -perguntamos nós.
- Essa é uma longa história. Para entendê-la, é preciso contar muita coisa.
- Pois então conte.
Ivan Vassílievitch ficou pensativo, meneou a cabeça.
- É... -disse ele. - Toda a minha vida se transformou em uma noite ou, antes, em uma manhã.
- Mas o que foi que aconteceu?
- Aconteceu que eu estava muito apaixonado. Já estivera apaixonado muitas vezes, mas aquele era o amor mais forte que eu já sentira. Faz muito tempo. Ela já tem uma filha casada. Era a B... Sim, a Várienka (1) B... -Ivan Vassílievitch disse o sobrenome. - Mesmo aos 50 anos, era de uma beleza notável. Mas na mocidade, aos 18 anos, era encantadora: alta, esbelta, graciosa e majestosa, majestosa é a palavra. Porte singularmente ereto, sempre, como se não pudesse ser de outra forma, cabeça levemente inclinada para trás, o que, com aquela beleza e a estatura alta, apesar de ser magra e até ossuda, lhe dava certo ar de rainha, que afastaria as pessoas não fosse ela afável, sempre com um sorriso alegre nos lábios, aqueles olhos magníficos e brilhantes e todo o seu ser jovem e encantador.
- Como Ivan Vassílievitch pinta o quadro!
- É, por mais que eu descreva, não dá para pintar de forma que vocês atinem como ela era. Mas o caso não é esse. O que eu quero contar aconteceu nos anos 40. Naquela época eu era estudante da universidade da Província. Não sei se isso é bom ou mau, mas o fato é que não havia na nossa universidade nenhum círculo, nenhuma teoria, e nós éramos simplesmente jovens e vivíamos como é próprio da juventude: estudávamos e nos divertíamos. Eu era um rapaz esperto, alegre e ainda por cima rico. Tinha um cavalo fogoso, de passo largo; descia os morros a galope em companhia das moças (os patins ainda não estavam na moda), farreava com os colegas (só bebíamos champanhe e, quando o dinheiro acabava, não bebíamos nada, nem vodca, como fazemos agora). Meus maiores prazeres eram as festas e os bailes. Eu dançava bem e não era feio.
- Ora, nada de modéstia! -interrompeu-o uma das senhoras que o ouviam. - Nós conhecemos bem o seu retrato. O senhor não era nada feio, era bem bonito.
- Vamos que fosse bonito, mas não vem ao caso. O fato é que, no período daquele amor mais forte por ela, estava eu no baile do último dia de Carnaval, na casa do chefe da Província, velhinho bonachão, ricaço hospitaleiro e "kammerherr" (2). Bonachona como ele, sua mulher recebia os convidados vestida de veludo marrom, na cabeça um diadema de brilhantes, os ombros e o colo velhos, brancos e roliços, como um retrato de Ielizavieta Pietrovna (3). O baile estava maravilhoso: o salão, lindo, com coros e músicos -os então famosos conjuntos de servos dos senhores de terras aficionados por música-, um bufê esplêndido e um verdadeiro mar de champanhe. Apesar de ser um grande consumidor de champanhe, eu não bebi, porque já estava bêbado -não de vinho, mas de amor; em compensação, dancei até cair -dancei quadrilha, valsa, polca, é evidente que, na medida do possível, com Várienka. Ela estava de vestido branco, cinto cor-de-rosa, luvas de pelica brancas que quase lhe chegavam aos cotovelos magros, pontiagudos, e sapatinhos forrados de cetim branco. Tomaram-me a mazurca, já estava combinada de antemão com o nojentinho do engenheiro Aníssimov, nunca o perdoei por isso: convidou-a logo que ela chegou, enquanto eu corria ao barbeiro atrás de umas luvas e me atrasava. De sorte que não dancei com ela a mazurca, mas com uma alemãzinha que eu antes cortejara um pouquinho. Mas temo que nessa festa eu não tenha sido muito cortês com ela -não conversei nem olhei para ela, só tinha olhos para a silhueta alta e bem feita naquele vestido branco com cinto rosa, para aquele rosto radiante e rosado com covinhas e aqueles olhos carinhosos e encantadores. Todos, e não só eu, olhavam para ela e se deliciavam, homens e mulheres se deliciavam, apesar de ela ofuscar a todos. Era impossível não se deliciar.
Por causa da tal etiqueta social, perdi a mazurca, mas na verdade passamos quase o tempo todo dançando juntos. Sem se perturbar, ela atravessava a sala inteirinha em minha direção, eu saltava, sem esperar o convite, e ela agradecia com um sorriso a minha perspicácia. Quando os pares cruzavam e ela não adivinhava o meu passo, ela encolhia os ombros magros, em sinal de lástima e consolo, e sorria para mim. Quando a figura da mazurca era a valsa, valsávamos longamente e ela, ofegante, sorria e me dizia: "Encore!". Eu rodopiava mais e mais e nem sentia meu corpo.
- Ah! mas como não sentia?! Claro que sentia quando abraçava a cintura dela, sentia o seu corpo e, naturalmente, o dela também -disse um dos convidados.
Ivan Vassílievitch corou subitamente e exclamou, quase zangado:
- Vocês é que são assim, a juventude de hoje! Vocês não enxergam nada além do corpo. No nosso tempo era diferente. Quanto mais eu me apaixonava, mais incorpórea ela se tornava para mim. Vocês agora olham os pés, os tornozelos e mais alguma coisa, desnudam as mulheres pelas quais se apaixonam; para mim, porém, como dizia Alphonse Karr (4) -bom escritor-, o objeto do meu amor esteve sempre vestido de bronze. Nós, além de não despirmos, ainda procurávamos cobrir a nudez, como o bom filho de Noé. Mas qual! Vocês não vão entender.
- Não lhe dê atenção. E depois? -disse alguém.
- O fato é que acabei dançando mais com ela e não percebi o tempo passar. Os músicos, já em desespero de tão cansados -vocês sabem como é no fim dos bailes-, se agarravam ao mesmo tema de mazurca; nas salas de estar os papais e as mamães já se levantavam das mesas de jogo, aguardando o jantar, os criados circulavam rapidamente ajeitando as coisas. Eram mais ou menos três horas. Os últimos minutos precisavam ser aproveitados. Mais uma vez a convidei, e pela centésima vez percorremos o salão.
- Então, depois do jantar, a quadrilha é minha? -disse-lhe, conduzindo-a ao seu lugar.
- Naturalmente, se não me levarem -disse sorrindo.
- Não permitirei -disse eu.
- Dê-me o leque -disse ela.
- Lamento devolvê-lo -respondi, devolvendo-lhe o leque branco e barato.
- Eu lhe dou isto, então, para você não ficar triste -disse ela, arrancando uma pluma do leque e dando-a para mim.
Peguei a pluma e só pude exprimir com o olhar todo o meu êxtase, toda a minha gratidão. Eu estava alegre e satisfeito, estava feliz, abençoado, me sentia bem, eu não era eu, era um ser qualquer de outro planeta, ignorante do mal e capaz de fazer apenas o bem. Guardei a peninha dentro da luva e fiquei ali parado, sem forças para me afastar dela.
- Olhe, estão convidando papai para dançar -disse-me, apontando a figura alta e esbelta do pai, coronel de dragonas prateadas, que estava junto à porta com a anfitriã e outras senhoras.
- Várienka, venha cá -ouvimos a voz forte da anfitriã, a do diadema de brilhantes e ombros ielisavietanos.
Várienka se encaminhou para a porta e eu a segui.
- "Ma chère", convença seu pai a dançar com você. Ah! por favor, Piotr Vladislávitch -voltou-se a anfitriã para o coronel.
O pai de Várienka era muito bonito, elegante, alto, de meia-idade. Rosto corado, bigodes brancos retorcidos para cima, à la Nicolas 1º (5), suíças também brancas, que se uniam aos bigodes, o cabelo nas têmporas penteado para frente e um sorriso carinhoso e alegre como o da filha brilhando nos olhos e nos lábios. Tinha belo porte, uma faixa larga e simples de condecorações cruzava-lhe o peito marcial, ombros fortes e pernas longas, bem proporcionadas. Era um chefe militar, o tipo do antigo servidor de Nicolai.
Quando nos aproximamos da porta, o coronel se desculpava, dizendo que havia desaprendido a dançar; mesmo assim, sorriu, deixando-se levar, com a mão esquerda desembainhou a espada, entregou-a para um empregado e, tirando com dificuldade a luva da mão direita, disse rindo: "Tudo pelo dever!". Tomou a mão da filha e postou-se na expectativa do tempo exato para começar a dançar.
Ao esperado início da mazurca, bateu com desenvoltura um pé, dobrou a outra perna e sua figura alta e pesada se moveu pelo salão num sapateado ora vagaroso e calmo, ora tempestuosamente barulhento. A silhueta graciosa de Várienka flutuava ao seu lado com passos leves, às vezes longos, com seus sapatinhos de cetim branco. Todo salão seguia cada movimento do par. E eu, apaixonado, olhava para eles com enlevo e emoção. Impressionavam-me especialmente as botas dele, com presilhas fortes, belas botas de couro de bezerro, não de bico fino como era moda, mas à antiga, quadradas e sem saltos. Pelo visto, tinham sido feitas pelo sapateiro do batalhão. "Para poder apresentar bem sua filha querida, com boas roupas, ele não compra botas novas e usa as fora de moda" -pensei, e aquelas botas quadradas me emocionaram ainda mais. Era evidente que ele fora outrora um bom dançarino, mas agora estava pesado e as pernas não tinham mais a elasticidade suficiente para todos os passos floreados e rápidos que tentava fazer.
Mesmo assim, fez duas voltas no salão com habilidade. E, quando abriu e fechou depressa as pernas, e, apesar de seu peso, caiu sobre um joelho, e ela, sorrindo e ajeitando a saia que se prendera nele, circundou-o com leveza, todos aplaudiram. Levantando-se com algum esforço, abraçou com ternura e delicadeza a filha, deu-lhe um beijo na testa e conduziu-a para mim, acreditando que a próxima dança era minha. Eu disse que não era o seu par.
- Ah, não importa, agora dance o senhor com ela -disse ele com um sorriso amigável, recolocando a espada na bainha. Como sempre acontece depois que uma gota escorre de uma garrafa e todo o seu conteúdo se derrama aos borbotões, assim o meu amor por Várienka libertou toda a capacidade de amar que eu trazia escondida na alma.
Eu abraçaria o mundo todo com meu amor. Amava a anfitriã de diadema e busto ielisavietano e o seu marido e os seus convidados e os seus criados e até o engenheiro Aníssimov, que fazia pouco caso de mim . Pelo pai dela, com as botas de fabricação caseira, de sorriso amável parecido com o dela, eu sentia naquele momento uma espécie de sentimento misto de enlevo e ternura.
Terminada a mazurca, a anfitriã convidou os hóspedes para o jantar, mas o coronel B... recusou-se, dizendo que precisava se levantar cedo no dia seguinte, e despediu-se dos anfitriões. Tive medo de que ela se fosse também, mas ficou com a mãe.
Depois do jantar, dancei com ela a quadrilha prometida e, apesar de parecer infinita, minha felicidade crescia, crescia mais a cada minuto. Nós nada falávamos de amor. Eu não lhe perguntava, nem a mim, se ela me amava. Para mim era bastante que eu a amasse. Só temia que alguém pudesse atrapalhar minha felicidade. Quando cheguei em casa, me despi e pensei em dormir, mas vi que isso era absolutamente impossível.
Tinha nas mãos a pluma de seu leque e uma luva inteirinha que ela me dera ao sair, quando eu a ajudava a subir com a mãe na carruagem. Olhava para aquelas coisas e, de olhos abertos, eu a via à minha frente a cada instante -quando, vacilando entre dois cavalheiros, me escolhe, e ouço sua voz suave dizer: "Orgulhoso, hein?" e me dá sua mão alegremente; ou quando, no jantar, toma champanhe aos golezinhos e me espia de esguelha com olhos afetuosos. Mais que tudo, porém, vejo-a dançando com o pai, se movendo leve à sua volta e olhando para os espectadores enlevados, alegre e orgulhosa de si e dele. E involuntariamente envolvo os dois em um único sentimento de ternura e comoção.

Quando o cortejo chegou bem perto, vi um soldado à minha frente dar um decidido passo adiante, fazer o cacete zunir no ar e desferi-lo com força nas costas do tártaro

Naquela época, eu vivia com um irmão muito sossegado. De maneira geral, ele não gostava de vida social, não ia a bailes, se preparava para os exames de doutoramento e levava a mais regular das vidas. Estava dormindo quando cheguei. Olhei para a cabeça dele afundada no travesseiro, meio escondida pelo cobertor de flanela. Senti uma piedade afetuosa por ele, por não saber e não compartilhar da minha felicidade.
Nosso criado Pietrucha veio ao meu encontro com uma vela acesa e quis me ajudar a trocar de roupa, mas eu o dispensei. O seu rosto sonolento, de cabelos emaranhados, pareceu-me de uma ternura tocante. Procurando não fazer barulho, fui para meu quarto na ponta dos pés e sentei-me na cama. Não, estava feliz demais e não podia dormir. Além disso, eu sentia calor no quarto muito aquecido e, sem tirar o uniforme, vesti um capote, abri a porta e fui para a rua.
Eu saíra do baile entre as quatro e as cinco horas, mais duas haviam passado com minha ida para casa e o tempo que lá fiquei, de sorte que já estava claro quando saí para a rua. Fazia um tempo típico de Carnaval, neblina, muita umidade, a neve derretendo nos caminhos e gotejando de todos os telhados. Naquela época os B... moravam nos confins da cidade, junto do campo grande, onde havia uma alameda, ao lado de uma escola para moças. Andei por uma travessa deserta e saí na rua principal, onde cruzei com transeuntes e carroceiros carregando lenha nos trenós que arranhavam os patins no calçamento. E os cavalos, que balançavam sem parar as cabeças arqueadas, lustrosas de umidade, e os cocheiros, cobertos por esteiras, que arrastavam enormes botas ao lado das carroças, e as casas da rua, que pareciam muito altas em meio à neblina -tudo assumia para mim um encanto e um significado especial.
Quando cheguei ao lugar onde ficava sua casa, percebi ao longe, na calçada à direita, alguma coisa grande e negra e ouvi sons de flautas e tambores que vinham de lá. Em pensamentos, eu cantava ainda os temas da mazurca e, algumas vezes, chegava mesmo a ouvi-los. Aquela, no entanto, era música diferente, cortante e desagradável.
"O que é isso?" -pensei e, pelo caminho escorregadio que atravessava o campo, segui na direção daquele som. Depois de andar uns cem passos, comecei a distinguir, no meio da névoa, muita gente vestida de preto. Eram soldados. "Devem estar em treinamento" -pensei e, caminhando atrás de um ferreiro de peliça imunda e avental, que carregava alguma coisa, cheguei mais perto. Soldados de uniformes pretos formavam duas colunas, uma à frente da outra, imóveis, com os fuzis junto às pernas. Atrás deles estavam o flautista e os tamborileiros que tocavam ininterruptamente a mesma melodia desagradável e estridente.
- O que estão fazendo? -perguntei ao ferreiro, que tinha parado ao meu lado.
- Estão castigando um tártaro por deserção -disse o ferreiro, zangado, olhando para a outra extremidade das fileiras de homens.
Fiquei olhando também e notei entre as duas alas uma coisa horrível, que vinha para o lado em que eu estava. Era um homem de torso nu, amarrado aos fuzis de dois soldados que o empurravam. Ao lado dele vinha um militar alto, de capote e quepe, que me pareceu conhecido. Arrastando-se, cambaleando na neve derretida sob os golpes que choviam sobre ele de ambos os lados, o condenado avançava na minha direção, ora caindo para trás, e então os sargentos que o levavam preso aos fuzis empurravam-no para a frente, ora caindo para a frente, e novos empurrões dos sargentos o puxavam de volta.
Ao lado, passos levemente vacilantes, caminhava o militar alto. Era o pai dela, rosto corado, bigodes e suíças brancas.
A cada golpe que recebia, o castigado voltava o rosto enrugado de sofrimento para o lado de onde vinha a pancada, como que surpreso, e repetia a esmo sempre as mesmas palavras, rangendo os dentes brancos. Só quando chegou mais perto de mim pude distingui-las. Não falava, soluçava: "Irmãozinhos, tenham dó. Irmãozinhos, tenham dó". Mas os irmãozinhos não se apiedavam e, quando o cortejo chegou bem perto, vi um soldado à minha frente dar um decidido passo adiante, fazer o cacete zunir no ar e desferi-lo com força nas costas do tártaro. O tártaro tombou para frente, mas os sargentos o seguraram e um novo golpe caiu sobre ele, e outro, e mais outro, de um lado, do outro.
O coronel acompanhava e vez por outra olhava para baixo, para seus pés, ou então para o condenado, inspirava o ar inflando as bochechas e o expirava vagarosamente através dos lábios entreabertos. Quando o cortejo passou por onde eu estava, vi rapidamente, por entre as fileiras, as costas do condenado. Eram uma coisa colorida, úmida, vermelha, antinatural, que me fez duvidar que aquilo fosse o corpo de um homem.
- Meu Deus! -exclamou o ferreiro ao meu lado.
O cortejo se distanciava, os mesmos golpes caindo dos dois lados sobre o homem cambaleante, encolhido, com a mesma batida de tambores, o mesmo zunido de flauta e o mesmo andar firme da figura alta e esbelta do coronel junto ao condenado. Súbito, o coronel pára, aproxima-se rápido de um dos soldados.
- Vou lhe ensinar -ouvi sua voz raivosa. - Está fazendo corpo mole? Está?
E vi quando a mão forte na luva de camurça esbofeteou o rosto do soldado fraco e espantado, que não descera o cacete nas costas vermelhas do tártaro com força suficiente.
- Dê uma vergastada pra valer! -gritou ele e, ao olhar à sua volta, me viu. Fazendo de conta que não me conhecia, franziu a testa numa careta raivosa e ameaçadora e se virou rapidamente. Fiquei de tal forma envergonhado que, sem saber para onde olhar, como se fosse culpado de um comportamento vergonhoso, desviei a vista e saí apressado pela rua. Em todo o meu trajeto, nos meus ouvidos, aquele rufar de tambores, o som da flauta, aquelas palavras -"Irmãozinhos, tenham dó"- que eu ouvira, e aquela voz segura, zangada, do coronel gritando: "Está fazendo corpo mole? Está?".
Uma melancolia quase física me invadia o coração, beirando a náusea, tão intensa que algumas vezes tive que parar, com vontade de vomitar, tal era o horror que aquele espetáculo me causara. Não me lembro como consegui chegar em casa e deitar. Mal adormeci, escutei e vi tudo outra vez e levantei-me bruscamente.
"Com certeza, ele sabe alguma coisa que eu não sei" -pensava sobre o coronel. "Se eu soubesse o que ele sabe, entenderia o que vi e isso não me atormentaria." Contudo, por mais que pensasse sobre aquilo, menos compreendia o que o coronel poderia saber e consegui dormir apenas à tarde; depois, fui à casa de um amigo e bebi com ele até cair.
- Então, o que é que vocês acham, a que conclusão cheguei sobre o que tinha visto, que tinha sido uma coisa ruim? De forma alguma. "Se isso foi feito com tanta convicção, e se há uma justificativa que satisfaz a todos, isso é sinal de que sabem alguma coisa que eu não sei" -eu pensava e me esforçava para assimilar aquilo. Mas, apesar de todos os esforços, não consegui aceitar o fato. E, não o aceitando, não fui capaz de ingressar no serviço militar, como queria antes. Não servi o Exército, não servi em lugar nenhum e, como podem ver, não servi para coisa alguma.
- Ora, sabemos muito bem como o senhor não serviu para nada -disse alguém. - Se o senhor não foi útil, o que se pode dizer dos outros?
- Ora, bobagem -disse Ivan Vassílievitch, sinceramente encabulado.
- E, então, o que aconteceu com o amor? -perguntamos.
- O amor? A partir desse dia, o amor começou a minguar. Quando ela ficava pensativa, o que acontecia amiúde, com um sorriso no rosto, no mesmo instante eu me lembrava do coronel na praça e me sentia embaraçado e mal. Comecei a vê-la menos. E assim o amor acabou em nada. É assim que as coisas acontecem e transformam e dirigem toda a vida de um homem. E vocês ainda dizem... -concluiu ele.
Yásnaia Poliana, 20 de agosto de 1903

Notas
1. Apelido carinhoso de Varvara;
2. Título superior ao de cadete na Rússia czarista;
3. Filha de Pedro, o Grande (1672-1725), e czarina da Rússia entre 1741 e 1762;
4. Escritor francês (1809-1890);
5. "À moda de Nicolai 1º" (1779-1855), em francês no original.


Tradução de Beatriz Ricci.


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