São Paulo, domingo, 13 de outubro de 2002

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Uma história cultural do tempo

Peter Burke

Em 1988 Stephen Hawking publicou sua hoje famosa "Uma Breve História do Tempo" (editada no Brasil pela Rocco), do ponto de vista de um físico teórico ou cosmólogo. No entanto essa não é a única história do tempo possível. Uma alternativa é escrever a história do tempo do ponto de vista de um historiador cultural ou social, examinando os sistemas de tempo de acordo com nossas construções sociais ou culturais. À primeira vista essa visão cultural do tempo pode parecer estranha, pois é difícil pensar nossa própria experiência de tempo ou percepção do tempo como algo que não seja natural, mas uma abordagem comparativa logo estabelece a variedade dessas experiências e percepções. A percepção do tempo de uma criança, por exemplo, é muito diferente da de um adulto. Lembro-me de minha mãe parando na rua para conversar com amigas durante o que para mim, com 4 anos, pareciam horas, enquanto pelo tempo do relógio a conversa provavelmente durava apenas 5 minutos. Também há diferenças nas noções de pontualidade em diferentes partes do mundo. Como inglês, eu tive de aprender a não me surpreender com que uma conferência na Itália, digamos, ou no Brasil comece pelo menos meia hora depois da hora impressa no programa, em vez de 5 minutos depois, o que me parece normal e "natural". O choque cultural é pelo menos tão grande no sentido inverso, como os ingleses percebem ao visitar uma cultura ainda mais rigidamente pontual, como a da Alemanha! Como Gilberto Freyre gostava de dizer, o mundo anglo-saxão era governado pelo "tempo mecânico", ao passo que os ibéricos viviam de acordo com o "tempo telúrico".

Três grandes pontos
Como se escreve uma história cultural do tempo? Há pelo menos três grandes pontos a abordar, assim como inúmeros outros menores. Um desses pontos se refere à cronologia, o segundo, à geografia, e o terceiro, à sociologia. O primeiro ponto é sobre uma grande tendência na história humana, a mudança de um tipo de experiência do tempo que pode ser descrita, para resumir e simplificar, como "ecológica", para outra que podemos chamar de "mecânica". A experiência tradicional do tempo depende intimamente do ambiente local, não apenas no sentido de que um "dia" pode se expandir no verão e se contrair no inverno, mas também porque o tempo é muitas vezes reconhecido em termos das tarefas necessárias para a sobrevivência. O antropólogo britânico Edward Evans-Pritchard, estudando o povo nuer do Sudão, escreveu sobre seu "relógio do gado". Para os nueres, cujas vidas giravam em torno dos animais de que dependia sua sobrevivência, o ciclo de tarefas pastorais era central para a percepção do tempo, em nível de hora, dia, mês ou ano. Esse "tempo orientado por tarefas" já foi universal. No entanto a invenção e a gradual disseminação dos relógios mecânicos permitiram que o tempo fosse dividido em partes iguais, enquanto a iluminação artificial das ruas e casas, primeiro a gás e depois a eletricidade, libertou as atividades humanas da dependência do Sol e da Lua, ou pelo menos substituiu as restrições naturais pelas culturais. O segundo grande ponto a tratar é a geografia do tempo. Culturas diferentes têm maneiras muito diferentes de dividir e descrever o tempo. A idéia de que uma hora se divide em 60 minutos e 1 minuto em 60 segundos é generalizada hoje, mas 7.000 anos atrás ela se limitava a um único povo do Oriente Médio, os sumérios. A semana de sete dias se disseminou a partir do antigo Israel ou possivelmente da Babilônia. Na década de 1930, Evans-Pritchard encontrou os nueres se levantando ao nascer do Sol e usando o "relógio do gado", enquanto ele vinha de um país habituado aos relógios de pulso e à luz elétrica. No século 16, quando os europeus estavam invadindo e explorando tantas outras partes do mundo, descobriram diversas "culturas do tempo" diferentes, como poderíamos chamar: chinesa, japonesa, asteca, maia e assim por diante. No Japão, por exemplo, as horas eram mais longas no verão do que no inverno, uma semana tinha dez dias e os anos eram descritos em termos de animais, como o macaco ou o cavalo. Os visitantes não devem ter ficado surpresos com essas descobertas, já que na Europa os católicos, cristãos ortodoxos, judeus e muçulmanos usavam calendários diferentes. Ao longo dos últimos cinco séculos, porém, houve uma tendência para o estabelecimento de um sistema de tempo global, pelo menos em nível oficial. Em um país após o outro, os europeus incentivaram, quando não obrigaram, os habitantes locais a pensar em termos do tempo do relógio ocidental, considerado bom para a disciplina do trabalho, e na divisão dos "séculos" em antes ou depois de Cristo. A hora de Greenwich, adotada na Grã-Bretanha em 1848, chegou aos Estados Unidos em 1873, ao Japão em 1888 e ao Brasil em 1914. Esse breve relato da divulgação do tempo ocidental e dos relógios ocidentais para o resto do mundo vem tratando a "cultura do tempo" européia como se fosse homogênea. Se examinarmos um pouco melhor a Europa, porém, logo descobriremos que não era o caso. Um dos pioneiros nesse campo, o historiador francês Jacques le Goff, escreveu sobre um conflito entre duas culturas do tempo na Europa medieval: "O tempo da igreja" e o "tempo dos mercadores". A igreja enfatizava o tempo sagrado e o ano litúrgico, enquanto os mercadores viam o tempo de maneira mais secular. Eles gostavam de dizer que "tempo é dinheiro", que o tempo pode ser calculado, usado sabiamente ou desperdiçado.

Outros tempos
Esse contraste entre dois tipos de tempo é esclarecedor, mas certamente é necessário pensar em termos de ainda mais variedades, incluindo o "tempo camponês", o tempo do ano agrícola.
Também existe o "tempo industrial", não apenas a extensão do tempo do mercador às fábricas, primeiramente na Inglaterra e depois em todo o mundo, mas também a padronização do tempo seguindo o surgimento de novas formas de transporte. O estabelecimento de uma rede de carruagens públicas na Europa do século 18 dependia de um "horário", um sistema de organização que mais tarde se estendeu às viagens de trem e avião. Hoje, nosso "tempo livre", "feriados" e lazer, assim como nossas horas de trabalho, são governados pelo relógio e pelo horário.
Em suma, a comparação de Freyre entre o "tempo telúrico" e o "tempo mecânico" deve ser situada num quadro maior de contrastes e convergências. Do ponto de vista das estrelas ou mesmo dos cosmólogos, essas diferenças e mudanças de atitude em relação ao tempo podem parecer extremamente recentes e até relativamente sem importância. Do mesmo modo, do ponto de vista dos seres humanos comuns, elas são profundas.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "História e Teoria Social" (ed. Unesp) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.



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