São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998

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Saudades do Rio


Leia trechos do "Diários da Inglaterra" em que Mário Peixoto reclama da solidão e conta como quase esqueceu o português


MÁRIO PEIXOTO

Dia 3/1/1927 (segunda-feira )
Vi a vida novamente!
Um dos meus maiores desejos era ver Londres outra vez. Quando estive lá, pela primeira vez, vi apenas o que Londres tinha de mais comum e que não fazia jus a ela, apenas no último dia, estive em Regent e Oxford Street.
Agora, sentado na cama, mesmo cansado da viagem e de tanta mudança, sinto que devo externar ou ao menos expressar meus pensamentos por escrito.
Meu pequeno diário vai guardar esta grande alegria para mim, que me faz lembrar tanto de minha terra, de minha avenida Rio Branco, quando, nos sábados, fica cheia de gente e animação. Quando cheguei a Londres tive uma impressão muito estranha: parecia que o tempo que eu tinha passado em Hopedene não tinha existido e que, subitamente, eu tinha voltado a ser eu mesmo e estava vendo novamente à minha volta vida e movimento. Isto mesmo! Vida e movimento! Sempre gostei disso! Sei que muitas vezes a vida é dura e nem sempre vale a pena ser vivida! -mas, o que fazer? É muito cedo para ficar "blasé". Ainda sou uma criança! Trago comigo juventude e esperança e, afinal de contas, amo a vida!...
Fiquei um longo tempo admirando a Regente e a Oxford Street, vendo os belos prédios e as lojas. Tudo à minha volta era ruído e tráfego, e logo me enchi de animação. Estava em um paraíso! Que diferença de Eastbourne, tão pequena e quieta. Agora entendo porque, quando estive em Londres, com Mr. Morley, não gostei dela. Não tinha tido tempo de ver o coração da cidade. Depois de comprar abotoaduras na Austin Reed, fui com meus amigos a um restaurante japonês no Strand. Lá comi e apreciei muito a comida japonesa.
Só não gostei de uma coisa: do costume japonês de cada um se servir de um prato central e geral com os mesmos pauzinhos postos, tantas vezes, na boca.
Isso estragou, em parte, meu jantar, mas controlei-me e, afinal, tornei-me também um japonês.
A volta para casa foi como se eu voltasse da luz para a escuridão. E aqui estou eu, em minha cama, com muito sono e cansado. Creio que vou terminar, por esta noite...

Dia 6/1/1927 (quinta-feira)
Nenhum pensamento, nenhum romantismo, nada desta espécie, hoje. Fiquei o dia todo em casa.
Estas tardes úmidas e ventosas, na verdade, nos fazem ter medo de sair e nos convidam a ficar aconchegados a um bom fogo, escrevendo ou lendo um romance interessante.
Resolvi escrever uma carta enorme para minha prima (Nella), porque há muito não o fazia. Ainda não acabei. Sou muito preguiçoso para escrever! Mas, quando me resolvo, escrevo até meus dedos ficarem duros. É um de meus maiores defeitos. Devia escrever cartas menores e mais frequentemente.
Infelizmente, não consigo.

Dia 7/1/1927 (sexta-feira)
Conheci hoje um rapaz brasileiro que viria para Hopedene, mas a mãe dele, ao ver como este lugar era horrível e sem conforto, não o deixou vir. Está agora em outro colégio em Eastbourne, e, aparentemente, feliz.
Há muito eu não falava português, e vi, com vergonha e embaraço, que estava falando minha própria língua com dificuldade. As palavras me custavam a vir e às vezes eu usava uma palavra inglesa no meio da conversa, crente que a estava dizendo em português. Meu compatriota ria muito e dizia que o mesmo acontecia com ele. Quantas vezes disse "yes", em vez de sim. Nem sei. Mas estou orgulhoso de estar fazendo progressos apesar de correr o risco de, ao voltar ao meu país, fazer como aquele que perguntava pelo "celim(sic) com burraca na meio".

Dia 8/1/1927 (sábado)
Para mim, a recordação é um dos mais perfeitos poderes que a natureza deu ao homem. Nada há de mais maravilhoso e mágico do que o fato de alguém poder, em qualquer tempo e em qualquer lugar, chamar à mente fatos passados, quase esquecidos com o correr do tempo. É estranho e, ao mesmo tempo, fascinante! Como deve ser perfeito o cérebro (brain) humano, como deve ser também arguto e bem organizado para ser capaz de tal coisa! Recordação! O simples som desta palavra me faz tremer. Não é pela recordação que os velhos costumam viver? Não é a recordação que nos dá prazer e tristeza? Quando, mergulhado em pensamento e meditações, deixo muito tempo passar sem me dar conta do que acontece a meu redor, sinto uma tal transformação que, muitas vezes, imagino se nestes momentos não é um outro eu que controla minha mente (brain).
Quem sabe se não temos um duplo espírito? É possível ter-se duas personalidades? A primeira, a comum, a que está conosco todos os dias; a segunda, a que preserva o passado e, então, aquela que induz sentimentos como a recordação e os remorsos? Não sei. Esta é uma questão bastante profunda, cuja obscuridade confundiu muitas pessoas! Então, por que meu lápis escreveu estas linhas? Se não tenho um fim em vista, como pude tomar este caminho?
Ah! mas não aprendi, hoje, tal como os velhos, com a recordação?

Dia 23/3/1927 (quarta-feira)
Mrs. Des Combes deu-nos uma bela festa. As garotas foram convidadas, mas que garotas! Aqui, não sabem o que é bonito. Se ao menos pudessem ver uma das nossas brasileiras! Na dança, meu par era ótimo: leve e encantadora, coisa muito rara, na Inglaterra!

Dia 24/3/1927 (quinta-feira)
Chuva! chuva! e chuva! É para comemorar meu aniversário, amanhã!

Dia 5/5/1927 (quinta-feira)
Um pouco melhor, hoje. Acho que o hábito é realmente tudo. De qualquer modo, o tempo tem estado muito agradável. Tudo vai-se tornando normal novamente, e os velhos hábitos vão voltar. É por isso que não gosto de férias: quando acabam, a gente perdeu totalmente o hábito de estudar.
Fui ao cinema com Nishi e Hidé. "So This Is Paris" é uma produção de Ernst Lubitsch muito boa e engraçada. Lembro-me particularmente de um dia em Petrópolis em que eu e Genoca vimos "Kiss Me Again", uma obra-prima dirigida pelo mesmo autor. Ah! Mário, você voltou a ser escravo do velho vício.

Dia 6/5/1927 (sexta-feira)
Hoje fiquei entediado, o tempo todo. O dia esteve quente, muito quente mesmo, e creio que logo teremos uma tempestade. Fiquei em casa a tarde toda, pois amanhã irei a Eastbourne. Nishi saiu com Miss Goldsmith, e ainda não voltaram até agora. Da janela, posso apreciar a bela noite, lá fora... tudo está calmo, nada se mexe... E, assim, está o meu espírito.

Dia 7/5/1927 (sábado)
Finalmente, depois de sete meses, usei meu querido terno de Palm Beach pela primeira vez. O dia estava quentíssimo, e hoje fui um homem muitíssimo elegante.
Nishi pediu-me que entregasse a Vera uma carta rompendo o noivado: fiquei muito perturbado e tive uma conversa séria com ela. Vera passou a noite bem, apesar de estar quase chorando. Finalmente desejou a Nishi muitas felicidades. Sentia-se muito satisfeita por ele ter encontrado a moça certa. Não gosto de mencionar no diário fatos tão delicados, mas quando pego o lápis, tudo o que está em minha cabeça/mind é imediatamente transcrito. Não devia ter feito isso, mas a mente/brain humana é muito obstinada. (Vi Rod L. Ro in "Gigolo").

Dia 6/6/1927 (segunda-feira)
Enfim, vi "Metropolis". Como estava um dia chuvoso, Nishi e Hidé foram também. Que filme maravilhoso. O cinema estava apinhado e, se Nishi não tivesse feito reserva, não teríamos achado um só lugar! Brigitte Helm, maravilhosa, mas o herói, muito ruim, eu preferiria que fosse Percy Marmont ou Joseph Schildkraut.

Dia 7/6/1927 (terça-feira)
É muito triste dizer isto, mas hoje é o último dia de Nishi em Eastbourne. Fomos ao cinema novamente, a fim de dizer um último adeus aos dias tão bons que passamos juntos. O filme foi bom, mas não pude apreciá-lo muito bem porque fiquei pensando que seria a última ocasião, talvez, em que estaríamos juntos num cinema. Ah! vida! Você é tão estranha. Quão subitamente você nos faz despertar de um sonho maravilhoso, e sem piedade desafia-nos a enfrentar a dura realidade. Voltamos todos a Hopedene, no carro de Nishi, nosso tão querido carro, que talvez eu veja também pela última vez! Chegamos, dissemos adeus, e aqui estou, quase chorando de tristeza, pois Nishi era um verdadeiro amigo! Oh! sim, quem sabe se algum dia eu o verei outra vez!? Às vezes, a vida não nos engana, mesmo em nossos planos mais firmes?
Um dia que se foi para sempre, um dia triste, mas que jamais esquecerei! Até a sua própria escuridão ajudou a infundir a inquietação e desânimo em minha alma.

Dia 8 (quarta-feira)
Estou escrevendo apenas o que meu coração dita! Para mim, hoje não parece ser um dia, parece um pesadelo!... Então, Nishi se foi e Mrs. Des Combes também!
Oh, quanto a ela, tenho certeza de que nunca, nunca mais a verei outra vez! Nunca! Oh, como esta palavra é fria! Nunca! Não exprime ela, ao mesmo tempo, nada e muito?
Ontem à noite fui conversar com ela, como costumava fazer todas as noites, desde que vim para cá. O quarto, sempre tão acolhedor, estava vazio e frio, toda a sua bagagem já tinha ido. Um arrepio me percorreu todo o corpo e senti algo além da compreensão... Então, conversamos, e nossas boas risadas, mais uma vez, e também pela última vez, ecoaram entre as paredes. Brinquei com ela sobre o lugar infernal que Hospedene é, e até falei com ela: me coat, me dress etc... Ah, noite cruel! Ria para não chorar. E quando dei boa-noite a ela, parei à porta e disse: - Então, Mrs. Des Combes, é a última noite, última para sempre!? E todos estes oito meses passados? Não me lembrarei deles com ansiedade? Não foi ela quem me salvou do desespero e saudades de casa, logo que cheguei aqui?
Realmente, alguns dias atrás tivemos uma rusga e me lembro de que fiquei furioso e escrevi algo sobre ela no meu diário! Mas Gostava dela! Oh, pobre amiga querida!
Esta manhã, tudo aconteceu como num sonho: Nishi veio, fugi das aulas de Mr. Ellis, desci, disse adeus a Mrs. Des Combes (as palavras comuns, mas no íntimo, só Deus sabe o tormento que machucava minha alma), dei a Nishi meu endereço no Brasil, disse adeus a ele e... e... Estou, agora, na fria realidade!...
Daqui a dois anos Nishi irá ao Brasil com Miss Goldsmith, então Mrs. Nishikawa.
Mas, até lá, muita coisa pode acontecer! Oh, Deus! Será que, um dia, ainda verei algum deles?...

Agosto
Espero ter melhor sorte!

Dia 1 (segunda-feira)
Fui a Eastbourne, para a aula de dança. Ainda estou melhorando. Acho que é o último mês na Inglaterra.

Dia 2 (terça-feira)
Quarta aula de dança. Nenhum tênis, as mãos ainda em mau estado. Vou a Uckfield amanhã.

Dia 3 (quarta-feira)
Última aula de dança. Despedi-me de Miss Joyce Marple e tirei algumas fotos dela. Uckfield é um lugar muitíssimo bonito e consegui um quarto muito elegante.

Dia 4 (quinta-feira)
Fui a uma festa de caridade. Podre! Tempo perdido. Rosita esteve aqui com uma amiga.

Dia 5 (sexta-feira)
Fui a Londres e comprei passagem para o Alcântara. Parte no dia 24 deste mês. É um belo navio, mas por alguma razão me sinto atordoado. Mr. Ellis foi muito gentil e nos levou, Edu e eu, para almoçar no Trocadero. Belo lugar. Depois fomos ao consulado brasileiro e a língua portuguesa me soou estranhamente. Caminhamos por toda Londres e agora aqui estou na cama, pensando e pensando intensamente, pois tenho tanta coisa para fazer que não sei por onde começar.

(Aqui termina o diário da Inglaterra.)



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