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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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O AUTOR DE "METALINGUAGEM E OUTRAS METAS" FAZ UM BALANÇO DA CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA E DISCUTE A CONTRIBUIÇÃO DE NOMES COMO ALFREDO BOSI, BENEDITO NUNES E FLORA SÜSSEKIND

UMA MEDIDA CONCRETA

Costa Lima, além de ser um crítico, é, sobretudo, um pensador teórico como não temos quase no Brasil

José Marcio Rego
especial para a Folha

Haroldo de Campos lecionou na pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, entre 1973 e 1989, no programa de teoria literária e posteriormente comunicação e semiótica. Apesar de ter sido aluno da semiótica da PUC, não tive o privilégio que meus professores Fernando Segolin e Maria Lúcia Santaella (minha orientadora no doutorado) tiveram, de terem sido alunos de Haroldo. Como lembra Maria Lúcia: "Ele dava aula à noite, e a força inspiradora que ele transmitia era tal que, ao sair da aula, eu não conseguia dormir. Passava o resto da noite estudando e sonhava um dia dar aula como ele". Em 1990 a PUC concedeu a ele o título de professor emérito. Ele, também por isso, tinha um grande carinho pela PUC, o que facilitou muito no estabelecimento de nossa amizade. A entrevista (da qual o Mais! publica um trecho, sobre comentários de Haroldo a alguns críticos), desenvolvida no âmbito de um amplo projeto financiado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) de conversar com os mais importantes intelectuais brasileiros, foi dada a mim e a Janne Paiva em sua casa, no bairro de Perdizes, em São Paulo, em 4 de fevereiro de 2000. Com relação a Antonio Candido, ausente no trecho reproduzido, Haroldo afirmava o que é consenso: "Trata-se de nosso mais importante crítico literário"-com a ressalva habitual de lamentar a ausência do barroco na "Formação da Literatura Brasileira".

Dos críticos, seus contemporâneos ou mais recentes, quem o sr. destaca?
Eu não posso deixar de destacar desde logo o João Alexandre Barbosa, que é um crítico extremamente culto, extremamente erudito, tem uma técnica fina, uma capacidade de leitura tanto da prosa como da poesia. Também o Luiz Costa Lima, que eu considero um grande teórico. O João Alexandre é um estudioso da história literária, mas é, sobretudo, um crítico de autores -tem um livro extremamente importante sobre João Cabral. O Costa Lima, além de ser um crítico, é, sobretudo, um pensador teórico como não temos quase no Brasil -toda a teoria do problema da mimese, do controle do imaginário que ele tem desenvolvido na sua obra, mas, sobretudo, a partir do momento em que ele tem contato com as teorias alemãs, a teoria alemã da recepção.
E um crítico com penetração internacional....
Um crítico que tem a sua obra de reflexão teórica traduzida para o inglês, traduzida para o alemão é um crítico, realmente, de repercussão internacional.
Como também o João Alexandre é um crítico respeitado internacionalmente nos meios universitários. Das novas gerações, seguramente, para mim, o maior talento crítico em análise, da poesia e da prosa, é o Nelson Ascher, que também é o melhor tradutor que surgiu entre nós, das gerações mais novas. Excelente tradutor e finíssimo ensaísta.
E relativamente novo. O Nelson deve ter uns 45?
Quase, 44 anos. Muito erudito, tem uma magnífica biblioteca e se ocupa não apenas da literatura brasileira, mas da literatura internacional. A formação dele é também na FGV de São Paulo.
É, em administração de empresas...
Ele se formou em administração. Antes havia feito uma tentativa de estudar medicina e, finalmente, fez o curso de mestrado aqui na PUC de São Paulo e tem se dedicado muito ao jornalismo. Hoje em dia ele só se dedica a escrever, ele tem uma situação pessoal abonada... E é o único herdeiro do pai, que é um industrial, de origem húngara. Uma das grandes contribuições que ele tem feito é na tradução de poesia húngara. Ele traduz de várias línguas -inclusive, ele está me devendo -eu sou teoricamente o orientador dele- uma antologia da poesia húngara para a coleção que eu coordeno na [editora] Perspectiva, antologia que ele já tem praticamente pronta. Tem mais de 60 poemas traduzidos, mas, perfeccionista como é, a cada vez que eu o cobro, ele diz: não, tem mais um poema para traduzir. Eu vou conseguir extrair isso nem que seja na base da coação mesmo. (risos)
E a Flora Süssekind?
A Flora também é uma pessoa de muito bom nível. Acho que ela tem um grande talento crítico. E ela tem também uma vertente pessoal, que, aliás, é muito respeitável e importante; ela é uma grande pesquisadora, da história literária. Ela tem se detido muito sobre contextos da literatura brasileira e mesmo de autores praticamente esquecidos. Recentemente fez uma bela edição, um belo prefácio a um livro muito peculiar do [Joaquim Manuel de] Macedo [1820-82], que eu por coincidência também li. Na minha época de formação li extensivamente a literatura brasileira, poesia e prosa. E li do Macedo coisas que nem se lembram hoje as pessoas, como "A Luneta Mágica", "A Carteira de Meu Tio" e uma série de outras coisas. Eu ia aos sebos e comprava tudo o que estava indicado na antologia do Américo Werneck, uma antologia escolar. Tudo o que estava listado, que eu pudesse encontrar, eu comprava, eu e Augusto, meu irmão. Acho então que a Flora deu essa contribuição. Além de ser uma fina e aguda crítica literária, ela também é uma pesquisadora da história literária que tem trazido alguns aspectos importantes dessa história, inclusive, como eu dizia, esse trabalho que ela faz sobre o Macedo na sua veia cômica, na sua veia irônica, que é um Macedo curiosamente mais próximo de "Memórias de um Sargento de Milícias" e até do Machado de Assis do que daquele Macedo mais conhecido de "A Moreninha".
E o Alfredo Bosi?
Acho ele um homem erudito, tem uma contribuição importante, mas ele tem muitas limitações. Uma delas eu chamaria, na falta de outra expressão, um pietismo cristão exacerbado, que o leva a ver a literatura um pouco numa certa ótica meio caritativa. Talvez até por uma espécie de crise de consciência, porque um professor universitário (aliás, um casal de professores, a mulher dele também é professora, a Ecléa) não está propriamente entre os despossuídos, embora deva ter, como tem, consciente participação no destino desses despossuídos. Como eu disse recentemente, repetindo Walter Benjamin, "a esperança existe exatamente por causa dos desesperados". Exatamente porque existe gente sem terra e sem teto que nós, que temos teto (e temos pelo menos a terra onde estão as nossas casas), devemos lutar para que essa esperança se atualize numa redenção desses despossuídos. Mas o Bosi é demasiadamente caritativo, ele tem uma visão um pouco populista, tingida assim de um sentimento de culpa quase de fundo religioso, embora ele tenha muitas vezes lances de penetração crítica que eu considero agudos, como no caso do Sousândrade -ele é um dos críticos que recebeu a revisão do Sousândrade com maior...
Beneplácito?
Calor, até porque o Sousândrade tem aspectos participantes antecipatórios notáveis. Em 1870 ele faz exatamente uma espécie de sarabanda orgiástica na Bolsa de Nova York. Uma crítica ao capitalismo americano na época das grandes corrupções de Nova York. Na época em que o grande capitalismo americano, na época dourada, estava passando por fatos como no Brasil hoje. Havia corrupção em tudo, malandragens em ações da Bolsa, negócios confusos com ferrovias... e aí o Sousândrade surpreende isso. Ele vive dez anos em Nova York e surpreende isso e, evidentemente, antecipa toda uma coisa que nós estamos vivendo hoje no mundo moderno, no grande capitalismo. No Brasil é a corrupção extraordinariamente difusa. Há autores em relação aos quais o Bosi, portanto, tem uma compreensão maior, talvez uma afinidade maior -Machado de Assis é um deles, o Mário de Andrade é outro. Mas já, por exemplo, com relação ao Oswald de Andrade, eu tenho a impressão de que ele reage àquele anticlericalismo, talvez até um pouco voltairiano, do Oswald. Mas que, naquela época em que o Oswald escrevia, fazia parte de uma polêmica. Nunca esquecer que o Oswald combatia pessoas como o depois respeitável Tristão de Athayde....
Que, à época, era integralista...
Que ele chamava -se não me engano na peça "A Morta", que é uma sátira inteiramente livre ao integralismo- de "Tristinho de Ataúde". Depois, há um testemunho num artigo de jornal que mostra que, no fim da vida, quando o Oswald estava doente, ele foi visitado pelo Tristão de Athayde, se reconciliaram; felizmente, Oswald não guardava rancor de ninguém. Oswald era um homem que dizia as maiores barbaridades e depois estava disposto a se reconciliar. Ele era afetivo e ao mesmo tempo preferia perder um amigo a perder uma colocação, uma piada. Num dado momento, ele fazia a piada e perdia o amigo. Depois, ele queria ver se consertava, mas não dava. Por exemplo, com o Mário de Andrade nunca conseguiu consertar, porque o Mário, que era mais sério, mais provinciano, jamais admitiu...
O Mário não teve essa atitude do Tristão de Athayde, de perdoar...
Não, mas era o espírito dele, era um homem mais fechado e até frustrado, porque o Oswald era um homem plenamente realizado, o Mário tinha também aquele problema da homossexualidade dele jamais assumida, que sempre o torturou...
Que foi pouco explorada também, não é?
O Décio tem falado, mas agora existe um livro de um professor americano, gay, que fez uma tese doutoral -publicada naturalmente em inglês, nos EUA, e que vai ser publicada pela [editora] Unesp-, que desenvolveu sua pesquisa na Universidade Estadual de Campinas, sobre o homossexualismo no Brasil [trata-se de "Além do Carnaval", de James Green, lançado no Brasil em 2000]. Quais os problemas que atravessou, nas várias épocas, e ele apanha, entre os exemplos literários, mas mais ou menos daquele período, o João do Rio, que é conhecido, e o caso do Mário. Mas, enfim, o Oswald já é mais duramente assimilável. Não é assimilável assim pelo Bosi com tanta facilidade. Já acho que ele se abespinha um pouco com aquele modo desbocado do Oswald tratar a religião cristã e católica. Não esquecer que Oswald teve formação católica no colégio São Bento. Foi educado pela mãe de maneira extremamente piedosa, mas rompeu com tudo isso e esteve no Partido Comunista um período. Foi, mais do que tudo, um espírito anarquista... Um homem que, naturalmente, como acabei de dizer, não deixava de fazer um comentário corrosivo, uma piada arrasadora, quando fosse necessário.
Há o caso, que o sr. conta, da conferência de Ledo Ivo...
Essa é ótima. Ledo Ivo, um representante da Geração de 45, num período áureo, veio fazer uma conferencia aqui em São Paulo sobre a revalidação do modernismo, no Museu de Arte Moderna, e o Oswald se levantou para fazer um aparte -ele sempre participava, sempre gostava de participar das conferências, nunca ficava calado, queria participar. E ele fez alguma pergunta de que o Ledo Ivo não gostou, e o Ledo Ivo se virou para ele e disse: "O senhor não pode dizer nada porque o senhor é e sempre foi o calcanhar-de-aquiles do modernismo". E o Oswald não esperou, disparou assim no ato: e o senhor é o "chulé de Apolo" da Geração de 45. (risos) Acabou a conferência. (risos) Chulé de Apolo da Geração de 45? Depois dessa você vai dizer o quê?
No ato, ali no ato.
Esse era o Oswald: na hora que saía o tiro, ele dava no pique. Quer dizer, recebia e já devolvia a bola, a peteca... "Chulé de Apolo"... Trataram logo de fazer uma retirada estratégica, acabou a coisa aí.
E o Benedito Nunes?
Bom, o Benedito Nunes é outro caso. O Benedito Nunes e o Gerd Bornheim [morto em 2002] são dois casos que têm certos pontos de contato, de filósofos que fazem crítica e a fazem muito bem. Com muitas armas de conhecimento e sensibilidade. O Gerd tem sido, sobretudo, um crítico de teatro, além dos livros importantes que tem publicado no campo filosófico, desde a tese de livre-docência. Ele tem escrito muito sobre teatro, é especialista em Brecht, talvez o nosso mais notável especialista em Brecht. E o Benedito Nunes, que também, em certo aspecto, é um...
Heideggeriano.
Heideggeriano. Benedito já se dedicou mais a outros aspectos literários. À Clarice Lispector, por exemplo, da qual, parece, é um dos mais argutos estudiosos. Ao João Cabral, ao Guimarães Rosa... Enfim, é uma pessoa que tem se dedicado, ao lado de sua formação de filósofo, ao estudo literário, o que é raro no ambiente brasileiro, em que, sobretudo, nas universidades -sobretudo na USP, graças a um certo tipo de inclinação que surgiu na evolução dos seus participantes do departamento-, a literatura sempre esteve à margem, não é? Enquanto, por exemplo, na filosofia francesa, Sartre desde logo sempre se ocupou da literatura e da literatura de vanguarda. Não esquecer, por exemplo, o Sartre escrevendo sobre Faulkner, o Derrida escrevendo sobre Francis Ponge, o Foucault escrevendo sobre o Roussel, um surrealista extremamente marginal que ele interpreta de uma forma extremamente sofisticada, de maneira muito fina, não é? Um homem que faz um livro a partir de anagramas. Enquanto aqui nossos filósofos eram especializados em determinadas angulações e raramente passava...
A estética no campo filosófico brasileiro não é tão explorada, principalmente a literatura...
Para eles está fora de cogitação dedicarem-se ao estudo de uma obra literária, de uma obra teatral, como é o caso do Gerd ou do Benedito Nunes, não é? Você costuma indicar o Bento [Prado Jr.], que seria exceção à regra. Bem, Bento Prado, tanto quanto eu sei das coisas dele, é uma pessoa que publicava, se não me engano, em "O Estado de S. Paulo", sonetos parnasianos. Ele tem contribuições, tem escritos sobre Guimarães Rosa, sobre Cabral, mas não são contribuições que acrescentem alguma coisa de especial aos numerosos estudos anteriores, embora seja louvável essa preocupação. Agora, tomá-lo como um crítico de porte não dá... Ele tem interesses literários, mas não se podem comparar os trabalhos que o Bento fez nesse campo seja com os trabalhos do Gerd, seja com os trabalhos do Benedito -essa é minha opinião.
Por que o sr. tem diminuído a intervenção na prosa crítica de temática mais ampla e mais pedagógica, como no caso de "Metalinguagem e Outras Metas" e "A Arte no Horizonte do Provável"?
Eu sou uma pessoa para quem o que anima, o que faz sentir vivo aos 70 anos de idade, com uma grande energia para trabalhar, é o fato de eu ser alimentado por uma curiosidade permanente. E essa curiosidade me faz me mover de campo, muito rapidamente. De repente eu me interesso em traduzir a poesia bíblica. Estudei seis anos o hebraico. Agora estou traduzindo a "Ilíada", já traduzi 15 cantos -são 24. Quer dizer, então, eu me divido por muitos campos, mas eu pretendo publicar uma reedição da operação inteira, que faz parte desse conjunto de trabalhos dessa mesma época. Primeiro saiu "Arte, Movimento Plural", depois "Operação de Texto", depois veio a "Metalinguagem" na primeira edição. Eu pretendo fazer uma edição ampliada com pelo menos 13 textos novos, e em que eu vou voltar a vários desses assuntos que eu abordei na época, naturalmente, com aspectos novos.


José Marcio Rego é professor de economia na FGV-SP e PUC-SP.


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