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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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Se somos náufragos numa ilha deserta, onde não temos a opção de ligar um computador na tomada, um livro ainda é um instrumento de muita valia

Pessoalmente, tendo começado minha atividade acadêmica como um medievalista, eu gostaria de ter em casa os 221 volumes da "Patrologia Latina", de Migne. Isso é muito caro, mas eu poderia pagar. O que não poderia pagar era um outro apartamento onde depositar os 221 grossos volumes, sem ser obrigado a me livrar de pelo menos outros 500 livros de tamanho normal. Porém pode um disco hipertextual ou a "www" substituir os livros que são feitos para ler? De novo temos de decidir se a pergunta se refere a livros como objetos físicos ou virtuais. De novo, tratemos primeiro do problema físico. Boas notícias: os livros continuarão indispensáveis, não só para a literatura, mas também para quaisquer circunstâncias em que é preciso ler com cuidado, não só com o intuito de receber informações, mas também de especular e refletir sobre elas. Ler uma tela de computador não é o mesmo que ler um livro. Pensem no processo de aprendizagem de um novo programa de computador. Em geral, o programa pode apresentar na tela todas as instruções necessárias. Mas, em geral, os usuários que querem aprender a usar o programa ou imprimem as instruções e as lêem como num livro ou compram um manual impresso. É possível imaginar um programa visual que explique muito bem como imprimir e encadernar um livro, mas para obter instruções sobre como escrever ou como usar um programa de computador precisamos de um manual impresso.

Nova forma de letramento
Após passar 12 horas diante de uma mesa de computador, meus olhos parecem duas bolas de tênis e sinto a necessidade de me recostar confortavelmente numa poltrona e ler um jornal ou talvez um bom poema. Portanto creio que os computadores estão difundindo uma nova forma de letramento, mas são incapazes de satisfazer todas as necessidades intelectuais que estimulam. Por favor, recordem que as antigas civilizações hebraica e árabe tinham por base um livro, e isso não foi independente da circunstância de terem sido civilizações nômades. Os antigos egípcios podiam entalhar seus registros em obeliscos de pedra; Moisés e Maomé não podiam. Quando se pretende atravessar o mar Vermelho ou ir da península Arábica até a Espanha, um rolo de pergaminho é um instrumento mais prático para registrar e transportar a Bíblia ou o Corão do que um obelisco. Por isso essas duas civilizações alicerçadas em um livro privilegiaram a escrita em detrimento das imagens. Mas os livros também têm outra vantagem em relação aos computadores. Mesmo quando impressos no moderno papel ácido que dura apenas 70 anos, aproximadamente, os livros são mais duráveis do que o suporte magnético. Além disso, não são afetados por escassez de energia ou por blecautes e são mais resistentes a impactos. Até agora, os livros representam o modo mais barato, flexível e prático de transportar informação a um custo muito baixo. A comunicação por computador viaja à nossa frente; os livros viajam conosco e na nossa velocidade. Se somos náufragos numa ilha deserta, onde não temos a opção de ligar um computador na tomada, um livro ainda é um instrumento de muita valia. Mesmo que nosso computador tenha bateria de energia solar, não é fácil ler a tela deitado numa rede. Os livros são ainda os melhores companheiros para um naufrágio ou para os dias seguintes. Livros pertencem a essa classe de instrumentos, que, uma vez inventados, não foram aprimorados porque já estão bons o bastante, como o martelo, a faca, a colher ou a tesoura.

Fim das livrarias
Duas invenções novas, porém, estão prestes a ser exploradas industrialmente. Uma é a impressão por encomenda: após vasculhar os catálogos de várias bibliotecas ou editoras, um leitor pode selecionar o livro desejado, o operador apertará um botão e a máquina imprimirá e encadernará um único exemplar usando a fonte que o leitor desejar. Sem dúvida, isso vai modificar todo o mercado editorial. Provavelmente, eliminará as livrarias, mas não os livros, e não eliminará as bibliotecas, o único local onde os livros podem ser encontrados para que o leitor os examine e os reimprima. Em termos mais simples: todos os livros serão confeccionados segundo o desejo do comprador, como acontecia com os antigos manuscritos. A segunda invenção é o livro eletrônico, em que, introduzindo um microdisquete na lombada do livro ou ligando-o à internet, podemos ter um livro estampado à nossa frente. Mesmo nesse caso, contudo, ainda teremos um livro, embora tão diferente de nossos livros atuais quanto estes diferem dos antigos manuscritos em pergaminho e quanto o primeiro fólio de Shakespeare de 1623 difere da mais recente edição da editora Penguin. Porém, até agora, os livros eletrônicos não se mostraram comercialmente viáveis como seus inventores esperavam. Disseram-me que certos hackers, que cresceram diante de computadores e não têm o costume de folhear livros, leram afinal grandes obras-primas da literatura na forma de livros eletrônicos, mas creio que tal fenômeno permanece muito restrito. Em geral, as pessoas parecem preferir o modo tradicional de ler um poema ou um romance em papel impresso. Provavelmente, livros eletrônicos se revelarão úteis para consultar informações, como ocorre com dicionários ou documentos específicos. Provavelmente ajudarão estudantes obrigados a levar consigo dez livros ou mais quando vão à escola, mas não substituirão outros tipos de livro, que gostamos de ler na cama, antes de dormir, por exemplo. De fato, há numerosas criações tecnológicas que não tornaram obsoletas as anteriores. Carros correm mais do que bicicletas, mas não tornaram obsoletas as bicicletas, e nenhum aprimoramento tecnológico pode tornar uma bicicleta melhor do que foi antes. A idéia de que uma nova tecnologia abole uma tecnologia anterior é, com frequência, demasiado simplista. Após a invenção da fotografia, os pintores não mais se sentiram obrigados a servir de artífices cuja tarefa era reproduzir a realidade, mas isso não significa que a invenção de Daguerre apenas estimulou a pintura abstrata. Há toda uma tradição na pintura moderna que não poderia ter existido sem os modelos fotográficos: pensem, por exemplo, no hiper-realismo. Aqui, a realidade é vista pelo olho do pintor através da lente fotográfica. Isso significa que, na história da cultura, nunca houve um caso em que uma coisa simplesmente tenha matado uma outra coisa. Em vez disso, uma nova invenção sempre alterou profundamente uma outra, mais antiga. Para concluir essa questão da impertinência da idéia do desaparecimento físico dos livros, digamos que às vezes esse temor não se refere apenas a livros, mas ao material impresso em geral. Infelizmente, se porventura alguém teve a esperança de que os computadores e sobretudo os processadores de texto contribuiriam para salvar árvores, foi otimismo ingênuo. Ao contrário, os computadores fomentam a produção de material impresso. O computador cria novas modalidades de produção e difusão de documentos impressos. Para reler um texto e corrigi-lo, se não for apenas uma breve carta, é preciso imprimir, depois reler, em seguida corrigir no computador e reimprimi-lo. Não creio que alguém possa escrever um texto de centenas de páginas e corrigi-lo sem reimprimi-lo várias vezes.

Nexo hipertextual
Hoje, existe uma nova poética hipertextual segundo a qual mesmo um livro feito para ler, mesmo um poema, pode ser convertido em hipertexto. Nesse ponto, estamos passando para a pergunta número dois, pois o problema não é mais -ou não é somente- físico, mas concerne à própria natureza da atividade criativa, do processo da leitura, e, para desemaranhar essa mixórdia de perguntas, temos, primeiro, de decidir o que entendemos por nexo hipertextual.
Observem que, se a questão dissesse respeito à possibilidade de infinitas ou indefinidas interpretações da parte do leitor, teria muito pouco a ver com o problema em discussão. Teria a ver, isso sim, com a poética de um Joyce, por exemplo, que entendia seu livro "Finnegans Wake" como um texto que poderia ser lido por um leitor ideal acometido por uma insônia ideal. Essa questão afeta os limites da interpretação, da leitura desconstrutiva e da sobreinterpretação, a que dediquei outros escritos. Não: o que está em consideração no momento são casos em que a infinidade -ou pelo menos a abundância indefinida- de interpretações se deve não só à iniciativa do leitor, mas também à mobilidade física do próprio texto, que é produzido exatamente com o propósito de ser reescrito. A fim de compreender como os textos desse tipo podem operar, temos de decidir se o universo textual que estamos discutindo é limitado e finito ou limitado, mas virtualmente infinito, ou infinito, mas limitado, ou ilimitado e infinito.
Primeiramente, devemos traçar uma distinção entre sistemas e textos. Um sistema, por exemplo, um sistema linguístico, é a totalidade das possibilidades apresentadas por uma dada língua natural. Um conjunto finito de regras gramaticais permite ao falante produzir um número infinito de frases, e toda unidade linguística pode ser interpretada nos termos de outras unidades linguísticas ou semióticas -uma palavra por uma definição, um evento por um exemplo, um animal ou uma flor por uma imagem e assim por diante.
Tomemos um dicionário enciclopédico, por exemplo. Ele pode definir um cão como um mamífero, e então temos de ir à entrada "mamífero" e, se lá os mamíferos são definidos como animais, temos de procurar a entrada "animal" e assim sucessivamente. Ao mesmo tempo, as características dos cães podem ser exemplificadas por imagens de cães de vários tipos; caso se diga que certo tipo de cão vive na Lapônia, temos de ir à entrada sobre a Lapônia para saber onde fica e assim sucessivamente. O sistema é finito, e uma enciclopédia é fisicamente limitada, mas virtualmente ilimitada, no sentido de podermos circunavegar dentro dela, em espiral, "ad infinitum".
Sob esse aspecto, sem dúvida, todos os livros imagináveis estão compreendidos em um bom dicionário e em uma boa gramática. Se estivermos aptos a usar bem um dicionário de inglês, poderemos escrever "Hamlet", e é por mero acaso que outra pessoa o fez antes de nós. Entreguemos um mesmo sistema textual a Shakespeare e a um aluno do ensino fundamental e ambos terão as mesmas chances de produzir "Romeu e Julieta".
Gramáticas, dicionários e enciclopédias são sistemas: ao usá-los, podemos produzir todos os textos que quisermos. Mas um texto propriamente dito não é um sistema linguístico ou enciclopédico. Um texto dado reduz as possibilidades infinitas ou indefinidas de um sistema para criar um universo fechado. Se pronuncio a frase "nesta manhã, comi no desjejum...", por exemplo, o dicionário me permite listar muitas unidades possíveis, contanto que todas sejam orgânicas. Mas, se eu produzo meu texto de forma definida e pronuncio "nesta manhã, comi no desjejum pão e manteiga", excluí o queijo, o caviar, o pastrami e as maçãs. Um texto castra as possibilidades infinitas de um sistema. "As Mil e uma Noites" podem ser interpretadas de muitas, muitas maneiras, mas a história se passa no Oriente Médio, e não na Itália, e relata, digamos, as façanhas de Ali Babá ou de Xerazade, e não se refere a um capitão determinado a capturar uma baleia branca nem a um poeta toscano em visita ao inferno, ao purgatório e ao paraíso.
Tomemos um conto de fadas, como "Chapeuzinho Vermelho". O texto parte de um conjunto de personagens e situações -uma menina, uma avó, um lobo, uma floresta- e, por meio de uma série finita de passos, chega a um desfecho. Sem dúvida, podemos ler o conto como uma alegoria e atribuir diferentes significados morais aos fatos e às ações dos personagens, mas não podemos transformar "Chapeuzinho Vermelho" em "Cinderela". "Finnegans Wake" é, sem dúvida, aberto a muitas interpretações, mas é certo que nunca nos dará uma demonstração do teorema de Fermat ou uma bibliografia completa de Woody Allen. Isso parece banal, mas o equívoco radical de muitos desconstrucionistas foi crer que podemos fazer o que bem entendermos com um texto. Isso é clamorosamente falso. Agora suponham que um texto finito e limitado está organizado de forma hipertextual por muitos nexos que ligam determinadas palavras a outras. Num dicionário ou numa enciclopédia, a palavra "lobo" está potencialmente ligada a toda palavra que faça parte da sua possível definição ou descrição (lobo está ligado a animal, a mamífero, a feroz, a pernas etc.). Em "Chapeuzinho Vermelho", o lobo pode estar ligado apenas às seções textuais em que ele se manifesta ou em que é explicitamente evocado. A série de nexos possíveis é finita e limitada. Como podem as estratégias hipertextuais ser usadas para "abrir" um texto limitado e finito?

Commedia dell'arte
A primeira possibilidade é tornar o texto fisicamente ilimitado, no sentido de poder uma história ser enriquecida pelas contribuições sucessivas de autores diversos e, num duplo sentido, digamos, de forma bidimensional ou tridimensional. Entendo por isso que em "Chapeuzinho Vermelho", por exemplo, o primeiro autor propõe uma situação inicial (a menina entra na floresta) e colaboradores diversos podem, em seguida, desenvolver a história, um após o outro, por exemplo, ao fazer a menina encontrar Ali Babá, em lugar do lobo, ao fazer ambos entrarem num castelo encantado, defrontarem-se com um crocodilo mágico e assim por diante, de sorte que a história pode prosseguir anos a fio. Mas o texto também pode ser infinito, no sentido de poderem muitos autores fazer muitas opções diversas, a cada disjunção narrativa, por exemplo, quando a menina entra na floresta. Para um determinado autor, a menina pode encontrar Pinóquio; para outro, ela pode ser transformada num cisne ou entrar nas pirâmides e descobrir o tesouro do filho de Tutancâmon. Isso hoje é possível, e podemos encontrar na internet alguns exemplos interessantes de tais jogos literários. Nesse ponto, pode-se levantar a questão da sobrevivência da própria noção de autoria e de obra de arte, como um conjunto orgânico. E eu quero simplesmente informar à minha platéia que isso já ocorreu no passado, sem perturbar nem a autoria nem os conjuntos orgânicos. O primeiro exemplo é o da comedia dell'arte italiana, em que, a partir de um "canovacio", ou seja, uma sinopse histórica, cada apresentação diferia das demais, conforme a disposição e a imaginação dos atores, de sorte que não podemos identificar uma obra única, escrita por um autor único, intitulada "Arlecchino Servo di Due Padroni", e podemos apenas registrar uma série ininterrupta de apresentações, em sua maioria perdidas para sempre e, sem dúvida, diferentes umas das outras.
Ausência de autoria Outro exemplo seria uma sessão de jazz. Podemos crer que houve, outrora, uma execução superior de "Basin Street Blues", embora só tenha sobrevivido uma execução gravada posteriormente, mas sabemos que isso é falso. Houve tantas "Basin Street Blues" quantas foram suas execuções, e, no futuro, haverá muitas outras, sobre as quais ainda não sabemos, tão logo dois ou mais músicos se encontrem outra vez e experimentem sua versão pessoal e inventiva do tema original. O que quero dizer é que já estamos acostumados à idéia da ausência da autoria na arte popular coletiva, em que cada participante acrescenta alguma coisa, com experiências de história intermináveis, à semelhança do que ocorre no jazz. Tais maneiras de implementar a criatividade livre são bem-vindas e fazem parte do tecido cultural da sociedade.
Porém há uma diferença entre implementar a atividade de produzir textos infinitos e ilimitados e a existência de textos já produzidos, que podem, talvez, ser interpretados de infinitas maneiras, mas que são fisicamente limitados. No interior da nossa cultura contemporânea, aceitamos a avaliamos segundo diversos critérios tanto uma nova execução da "Quinta Sinfonia" de Beethoven como uma nova jam session do tema de "Basin Street".
Nesse sentido, não vejo como o fascinante jogo de produzir histórias coletivas e infinitas por meio da internet possa nos privar da literatura autoral e da arte em geral. A rigor, marchamos rumo a uma sociedade mais liberada, em que a criatividade livre vai coexistir com a interpretação de textos já escritos. Eu gosto disso. Mas não podemos dizer que substituímos uma coisa antiga por uma nova. Temos as duas.
Zapear a tevê é outra atividade que nada tem a ver com assistir a um filme, no sentido tradicional. Esse expediente hipertextual permite que inventemos novos textos que nada têm a ver com a nossa capacidade de interpretar textos preexistentes. Tentei desesperadamente encontrar um exemplo de situação textual ilimitada e finita, mas não consegui. De fato, se temos à disposição um número infinito de elementos, por que nos limitarmos à produção de um universo finito?
É uma questão teológica, uma espécie de esporte cósmico em que alguém -ou Alguém- poderia implementar todo e qualquer desempenho possível, mas prescreve a si mesmo uma regra, ou seja, limita, e engendra um universo pequeno e muito simples. Permitam-me, porém, examinar outra possibilidade que à primeira vista promete um número infinito de possibilidades com um número finito de elementos, como um sistema semiótico, mas na realidade oferece apenas uma ilusão de liberdade e de criatividade.
Um hipertexto pode dar a ilusão de abrir mesmo um texto fechado: uma história de detetive pode ser estruturada de tal modo que seus leitores podem selecionar sua própria solução, decidir no fim se o culpado será o mordomo, o bispo, o detetive, o narrador, o autor ou o leitor. Assim, eles podem montar sua própria história pessoal. Tal idéia não é nova. Antes da invenção dos computadores, poetas e narradores sonhavam com um texto totalmente aberto, que os leitores pudessem recompor infinitamente, de várias maneiras. Tal era a idéia de "Le Livre", exaltada por Mallarmé. Raymond Queneau também inventou um algoritmo combinatório mediante o qual era possível compor, a partir de um conjunto finito de versos, milhões de poemas.
Antes da invenção dos computadores, poetas e narradores sonhavam com um texto totalmente aberto, que os leitores pudessem recompor infinitamente

O encanto da literatura trágica reside em que sentimos que seus heróis poderiam ter escapado de seu destino, mas não o conseguem em razão de sua fraqueza, de seu orgulho, de sua cegueira
No início da década de 1960, Max Saporta escreveu e publicou um romance cujas páginas poderiam ser deslocadas para compor histórias diferentes, e Nanni Balestrini deu a um computador uma lista desconexa de versos que a máquina combinava de maneiras diferentes para compor poemas diferentes. Muitos músicos contemporâneos produziram partituras cuja manipulação permite compor diversas execuções musicais. Todos esses textos fisicamente móveis dão uma impressão de liberdade absoluta para o leitor, mas é só uma impressão, uma ilusão de liberdade. O mecanismo que permite a alguém produzir um texto infinito com número finito de elementos existe há milênios e é o alfabeto. Ao usar um alfabeto com um número limitado de letras, podem-se produzir bilhões de textos, e é exatamente isso o que tem sido feito desde Homero até hoje. Em contraste, um texto-estímulo que nos oferece, não letras ou palavras, mas sequências predeterminadas de palavras ou de páginas, não nos dá a liberdade de inventar nenhuma coisa que desejarmos. Somos livres apenas para deslocar blocos textuais, em um número muito elevado de maneiras. Um móbile de Calder é fascinante não porque produz um número infinito de movimentos possíveis, mas porque nele admiramos a regra férrea imposta pelo artista, uma vez que o móbile só se movimenta das maneiras que Calder desejava.

Chapeuzinho come o lobo
Na última fronteira da textualidade livre, pode haver um texto que começa como um texto fechado, digamos, "Chapeuzinho Vermelho" ou "As Mil e uma Noites", e que eu, o leitor, posso alterar conforme minhas inclinações, elaborando dessa forma um segundo texto, que já não será mais o original e cujo autor sou eu mesmo, embora a afirmação da minha autoria seja uma arma contra o conceito de uma autoria definida. A internet está aberta a tais experiências, e a maioria delas pode ser bela e compensadora. Nada nos proíbe de escrever uma história em que Chapeuzinho Vermelho devora o lobo. Nada nos proíbe de unir duas histórias diferentes numa espécie de colcha de retalhos narrativa. Mas isso nada tem a ver com a verdadeira função e com o encanto profundo dos livros. Um livro nos oferece um texto que, ao mesmo tempo em que está aberto a múltiplas interpretações, nos diz algo que não pode ser modificado. Suponhamos que estejamos lendo "Guerra e Paz", de Tolstói: desejamos ardentemente que Natacha não aceite a corte do detestável canalha Anatóli; desejamos ardentemente que essa pessoa maravilhosa que é o príncipe Andriei não morra e que ele e Natacha vivam juntos para sempre. Se tivéssemos "Guerra e Paz" num CD-ROM interativo e hipertextual, poderíamos reescrever nossa própria história segundo o nosso desejo; poderíamos inventar inumeráveis "Guerras e Pazes", em que Pierre Besuchov consegue matar Napoleão ou, conforme as tendências da pessoa, Napoleão consegue uma vitória completa contra o general Kutuzóv. Que liberdade, que emocionante! Quaisquer Bouvard ou Pécuchet poderiam se tornar um Flaubert! Infelizmente, com um livro já escrito, cujo destino está determinado por uma decisão autoral e repressiva, não podemos fazê-lo. Somos obrigados a aceitar o destino e compreender que somos incapazes de alterar a fortuna. Um romance hipertextual e interativo nos permite praticar a liberdade e a criatividade, e espero que essa atividade inventiva venha a ser implementada nas escolas do futuro. Mas o romance "Guerra e Paz", já escrito em caráter definitivo, não nos põe frente a frente com as possibilidades infinitas da nossa imaginação, mas sim com as leis severas que governam a vida e a morte. De modo semelhante, em "Os Miseráveis" Victor Hugo nos oferece uma descrição maravilhosa da batalha de Waterloo. A Waterloo de Hugo é o oposto da de Stendhal. Em "A Cartuxa de Parma", Stendhal vê a batalha pelos olhos do seu herói, que observa de dentro do evento e não compreende sua complexidade. Hugo, ao contrário, descreve a batalha do ponto de vista de Deus e a acompanha em todos os detalhes, dominando todo o cenário com a sua perspectiva narrativa. Hugo não só sabe o que aconteceu como também o que poderia ter acontecido e de fato não aconteceu. Sabe que, se Napoleão estivesse ciente de que, além do monte Saint Jean, havia um penhasco, os couraceiros do general Milhaud não teriam sucumbido aos pés do Exército inglês, mas suas informações na ocasião eram vagas e falhas. Hugo sabe que, se o pastor que guiou o general Von Bulow tivesse sugerido um caminho diferente, o Exército prussiano não teria chegado a tempo de causar a derrota dos franceses.

Para salvar Napoleão
De fato, num jogo de RPG, uma pessoa poderia reescrever Waterloo de sorte que Grouchy chegasse com seus soldados para salvar Napoleão. Mas a beleza trágica da Waterloo de Hugo reside em que os leitores sentem que as coisas se passam de forma independente de seus desejos. O encanto da literatura trágica reside em que sentimos que seus heróis poderiam ter escapado de seu destino, mas não o conseguem em razão de sua fraqueza, de seu orgulho, de sua cegueira. Além disso, Hugo nos diz: "Tamanha vertigem, tamanho engano, tamanha ruína, tamanha queda, que assombrou a história inteira, será algo sem uma causa? Não... O desaparecimento desse grande homem foi necessário para a vinda do novo século. Alguém, a quem ninguém pode fazer objeções, cuidou do evento ... Deus omitiu-se, Dieu a passé".
Isso é o que todo grande livro nos diz, que Deus se omitiu, e Ele se omitiu para o crente e para o cético. Há livros que não podemos reescrever porque sua função é nos instruir acerca da necessidade e, só quando respeitados tal como são, podem eles nos fornecer tal sabedoria. Sua lição repressiva é indispensável para alcançarmos uma condição mais elevada de liberdade intelectual e moral.
Espero e desejo que a Bibliotheca Alexandrina continue a guardar esse tipo de livro, para oferecer a novos leitores a experiência insubstituível de lê-los. Vida longa a este templo da memória vegetal.

Umberto Eco é romancista e e semiólogo italiano, autor de, entre outros livros, "A Ilha do Dia Anterior" e "O Pêndulo de Foucault", ambos pela editora Record. O texto acima foi publicado originalmente no jornal egípcio "Al-Ahram".

Tradução de Rubens Figueiredo.


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