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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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+ brasil 504 d.C.

Pintura e crise

Corpo a corpo com a obra de arte é o maior trunfo de Argan na "História da Arte Italiana", mas peso da ideologia limita sua percepção do novo

José Arthur Giannotti

História da Arte Italiana", de Giulio Carlo Argan (1909-92), é um monumento que a ed. Cosac & Naify fez traduzir e acabou de publicar com o máximo carinho. Trata-se de uma obra oceânica e peninsular, que descreve o curso e as vicissitudes da arte italiana desde suas primeiras manifestações até a presente crise. Mas o que impressiona neste livro não é tanto sua abrangência -que noutros casos seria sinal de irresponsabilidade e arrogância-, mas o entrelaçamento de uma compreensão geral da história com a análise rica e minuciosa de cada obra. Obviamente, a essa visão panorâmica correspondem marcos teóricos igualmente amplos, inspirados sobretudo na fenomenologia, corrente filosófica que influenciou sobremaneira o pensamento europeu do século 20. Já que um método se avalia por seus melhores resultados, os escritos de Argan apresentam ocasião excepcional para refletir sobre as vantagens e os limites da fenomenologia ao tratar da história da arte e da experiência estética. Aliás, ela mesma se preparou para essa tarefa, moldando seus conceitos de modo a que se tornassem cada vez mais adequados à descrição do belo.

Forma individualizada
Basta lembrar que Edmund Husserl, o filósofo que inaugura esse movimento, começou estudando conceitos aritméticos e lógicos para terminar se dedicando à análise da gênese desses conceitos a partir das experiências cotidianas. Se a experiência é ela mesma travada por formas experimentais, a saber, a priori materiais, fica aberto o caminho para pensar a obra de arte como forma individualizada. Nessa trilha Argan considera os objetos artísticos a partir do modo pelo qual qualificam o mundo da vida e são qualificados por ele. Por isso a arte passa a ser pensada como parte constitutiva da cidade, o mundo da vida por excelência do homem ocidental; cada obra testemunhando um projeto que, distanciando-se do trabalho do artesão, exprime o sistema de produção material e intelectual de uma determinada época histórica. A obra é coisa bela e expressão; no museu um conjunto delas configura um momento da história da arte, mas nele igualmente se dá a primeira abstração e traição que essas obras sofrem ao perderem seus lugares histórico-naturais. Nos últimos tempos, entretanto, as cidades estão sendo substituídas por metrópoles, aglomerados onde as pessoas se atomizam e se perdem na massa, deixando, por fim, de serem protagonistas da história. Se a teoria da história, sempre atenta à diferenças, continua situando cada obra no seu contexto, não é por isso, todavia, que deixa de perceber que se altera o estatuto do próprio objeto artístico. Se este continua carregando um valor espiritual intrínseco que o impulsiona para além de si mesmo, a partir do momento em que passa a girar nos circuitos do mercado e da técnica tende a ver seu valor expressivo cada da vez mais submetido a seu valor de coisa.

Razão e capitalismo
No seu livro "Arte e Cidade", Argan escreve: "Dá-se encerrado o ciclo da civilização em que a ação histórica constituía o modelo supremo do agir humano; anuncia-se o princípio de um novo ciclo, no qual o modelo será a técnica, como momento pragmático da ciência. A história, enfim, deveria transformar-se em ciência antropológica" (pág. 16). E, logo em seguida, uma frase muito significativa: "A noção global da fenomenologia da arte que a cultura moderna possui de fato esvaziou e tornou vão o conceito de arte, e a história da arte, como a história de "poéticas", tomou o lugar da estética, já eliminada do rol das disciplinas filosóficas" (pág. 18). O mundo contemporâneo entrou em crise porque perdeu aquela integridade totalizante que ligava o agir do ser humano à expressão desse ser na qualidade de instaurador da arte. Este foge do passado para se agarrar à contemporaneidade fria, substitui a linguagem histórica por uma linguagem cheia de fórmulas e tecnocientífica, assiste ao colapso daquela liberdade do pensar e do agir humanos, que, para lá da verificação objetiva e da dependência lógica do efeito em relação à causa, fundamentava a ordem moral da interpretação, do juízo e da escolha. Como sempre acontece com os fenomenólogos, a análise da crise do mundo contemporâneo termina se expressando como crise das ciências e da razão. Percebe-se quanto Argan, fantástico analista dos objetos artísticos criados na tradição italiana, capaz de pensá-los inseridos nas cidades, uma das quais, Roma, ele até mesmo soube comandar como prefeito, continua se curvando a uma visão romântica da história e do desenvolvimento da ciência ocidental. O esquema dessa visão é conhecido: já que a massificação atomiza o ser humano e sua razão, o Ocidente e a ciência entram em crise e ficam à espera do "juízo" final, seja da razão recriando-se numa nova totalidade, seja da revolução inaugural. Não há dúvida de que as relações humanas e suas obras postas em sistemas parecem ter perdido aquele espaço de reflexão que as levavam ao pensamento de si e, por isso, soçobraram nas águas metálicas das técnicas, do trabalho monótono e da razão alienada. Mas é isso que revela o estudo da evolução dos conceitos científicos? Não são eles tanto fechamento de questões antigas como abertura para novos problemas? Além do mais, não vejo por que se deve pôr em paralelo a crise da razão e a crise do capital. Parece-me que a primeira simplesmente liberou a teoria da psicose totalizante, abrindo caminho para um pensamento que abandona o projeto de encontrar a determinação completa das coisas e das ações; a segunda, contudo, convive com uma contradição, no seu plano insuperável, entre a criação da riqueza e aumento da miséria em todas as partes do globo. Não vejo como é possível pensar a crise do capital, desse modo de produzir riqueza social que se põe como fim em si mesmo, nos termos de uma razão técnica que tem a liberdade de escolher meios para a consecução de um fim dado. Não é racionalização irracional a riqueza dever crescer simplesmente por crescer, a despeito de se concentrar desmesuradamente e excluir dela a maioria dos seres humanos, que, desempregados ou subempregados, deixam de exercer o direito de viver? A crítica fenomenológica do capital se atém ao modelo fordista da divisão social do trabalho e não soube antever o funcionamento do capital numa sociedade de informação.

O invisível no visível
Acresce ainda que a fenomenologia tem dificuldade em pensar um todo que se dá como um fim em si mesmo alienado, prestes a explodir em todas as direções. Isso porque, na análise das relações humanas, precisa distinguir, de um lado, o trabalho, o processo de escolha e efetivação de meios para lograr um fim dado, de outro, o agir como instauração de um campo de liberdade. Considera o ato de trabalho antes de tudo ancorado no relacionamento do ser humano com a natureza, menosprezando a relação homem a homem mediada por objetos-signos na qual ele se insere necessariamente.
Não é o momento de reexaminar essa questão, mas basta lembrar como o trabalho incide num aparelho moderno: sendo este muito mais do que coisa, já que só funciona ligado a diversos sistemas, como novo objeto de trabalho exige que o ato seja muito mais escolha inteligente do que fria manipulação para chegar a um fim dado. Martelar é muito diferente do que operar um objeto técnico.
O primeiro ato isola o agente dos outros, mas o segundo, até mesmo o pressionar um botão, o liga a uma rede de sistemas entrelaçados. Por isso, nosso trabalho, aliás, como nosso mundo da vida, tanto se move num terreno cinzento que alimenta significados de nossas linguagens quanto se entrelaça à rede de sistemas gramaticalmente determinados. Se o ato de trabalho somente ganha sentido ao ser levado pela gramática do capital, não é no plano dessa gramática que a crise há de ser pensada?
Argan não está imune à ideologia de seu tempo. Não há dúvida de que toma o valor estético sendo gerado no diálogo entre a produção da obra e a avaliação estética, de que sempre procura significados culturais, mas, em virtude de seu pressuposto fenomenológico, esses significados são valores, desprovidos de uma gramática à medida que dão apenas como modo de aparecer. Nunca um modo de conduzir o olhar que se submete a regras elas mesmas criadas no ato de apreciar e avaliar. A busca é sempre do invisível no visível, muito diferente da procura de certa necessidade entre as partes de um quadro ou de uma série deles. No fundo, a noção de harmonia das formas substitui a idéia de uma forma muito específica de linguagem perpassando as obras. Leia-se, por exemplo, o que diz de Morandi, no livro "Arte Moderna" [Companhia das Letras], que finaliza os três volumes agora publicados. Para ele, Morandi é um caso clássico da impossibilidade de ver um pintor a não ser de um ponto de vista fenomenológico. O que, a meu ver, perde essa descrição? Considerar, por exemplo, o efeito da repetição da mesma imagem que, de tanto aparecer mudando de aspecto, se converte num signo de vínculos passados, presentes e futuros.

Jogo de linguagem
Não é assim que se configura como expressão do mundo de Morandi? É como se uma linguagem emergisse da série de quadros e um mundo particular esgueirasse por ela. Ora, essa quase linguagem emergente, que alinhava as partes da obra numa certa necessidade, não se abre para além do conhecimento constituído, à medida que ela, se, de um lado, fecha o sistema desenhado pelo estilo, de outro, igualmente se abre para dizer o novo? Além de coisa e valor, a obra de arte não é igualmente exemplo de um jogo de linguagem, de processo de racionalizar, que explode além de si mesmo? Ao sublinhar o lado do conhecimento inerente a toda obra de arte e menosprezar seu lado centrífugo, parece-me que Argan, assim como outros autores ligados à fenomenologia, deixa de lado a fabricação da necessidade que uma série de obras também empreende; necessidade que, por mais incrível que pareça, é o primeiro salto na busca de novos sentidos. Aqui, creio eu, está o ponto nevrálgico de meu desconforto. Mas só do ponto de vista de sua teoria da arte, da prosa que ele utiliza para explicar seu próprio trabalho de historiador, pois, quando passa para o corpo a corpo com as obras, o resultado é fascinante.

No fundo, a noção de harmonia das formas substitui a idéia de uma forma muito específica de linguagem perpassando as obras

Soluções distintas
Creio ser conveniente frisar essa diferença entre o que ele diz de seu trabalho e o que nós mesmos aprendemos ao ler seus escritos, pois só assim o sucesso desse aprendizado não esconde ou até mesmo não passaria a legitimar esse paralelismo entre a crise da razão e a crise do capitalismo. Não demanda, aliás, soluções diferentes.
A primeira, antes de tudo, ajuda a nos librar da psicose da totalização, como se o conhecimento só fosse legítimo quando total; a segunda, em contrapartida, nos coloca o desafio de encontrar uma forma de produção social que, a despeito de se ancorar no mercado e no desenvolvimento tecnológico, seja capaz de se livrar desse processo louco do capital se totalizar como fim em si mesmo, em vez de satisfazer às necessidades humanas de forma equitativa. Mas, se as tarefas são diferentes, as artes não se situarão melhor neste mundo se, em vez de se pensarem exclusivamente como conhecimento do que é tarefa das ciências, também se pensem como configuração do que está prestes a ser?


José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).


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