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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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+ música

SAARIAHO MELOS SEM MEL

MISTURANDO INSTRUMENTOS, ELETRÔNICA, VOZ E POESIA, A COMPOSITORA FINLANDESA CONSEGUE CONCILIAR RADICALISMO E INTUIÇÃO

Saariaho. Esse nome de sonoridade estranha é o de mais uma compositora fora do tom, que começa a brilhar neste começo de novo século, mantendo acesas e luminosas as propostas das vanguardas musicais do século 20. Finlandesa, nascida em Helsinki, em 1952, Kaija Saariaho é uma das grandes surpresas da nova safra de compositores que emergiu nos últimos anos.
Na sua formação musical chamam a atenção os estudos em 1979, em Siena, com o italiano Franco Donatoni, e em 1980-82, em Freiburg, com o inglês Brian Ferneyhough, figura de proa da chamada "nova complexidade". Influenciou-a também, sobremodo, a música "espectral" dos franceses Tristan Murail e Gérard Grisey, fulcrada na microanálise dos harmônicos superiores do som. A partir de 1982, iniciou-se nas técnicas digitais, frequentando os cursos do Ircam, o famoso Instituto de Música dirigido por Pierre Boulez em Paris, onde passou a viver e a trabalhar. Antes de dedicar-se à música, estudou na Universidade de Artes Visuais de Helsinki, episódio não descartável de sua vida artística, dados os seus interesses interdisciplinares. Suas primeiras composições conhecidas datam do fim dos anos 70, mas suas obras principais, que se desenvolvem a seguir com crescente intensidade, só vieram a alcançar maior repercussão na década de 90, quando sua música começou a ser interpretada por quartetos conhecidos como o Kronos e o Arditti e a ser difundida em gravações de companhias de maior porte, com a participação de artistas renomados, como o violinista Gidon Kramer e o maestro Esa-Peka Salonen.
Dentre as suas composições mais relevantes estão "Laconisme de l'Aile", para flauta (1981-82), "Lonh", para soprano e eletrônica (1995-96), "Près", para violoncelo e eletrônica (1992), "Noa Noa", para flauta e eletrônica (1992), "Amers", para violoncelo e conjunto (1992), "Six Japanese Gardens", para percussão e eletrônica (1999), "L'Aile du Songe", para flauta e orquestra (2000). A ópera "L'Amour de Loin" estreou em Paris em 2001. E há notícia de uma composição orquestral mais recente, "Orion", apresentada em janeiro deste ano nos Estados Unidos.
No CD-ROM "Prisma" (1999), de que tratarei mais adiante, podem-se ouvir ainda, além da música eletrônica que leva esse título e das execuções integrais de "Amers" e "Mirrors" (1997), fragmentos de outras composições importantes: "Du Cristal" (1989), "Nimphea" (1987), "Fall" (1995), "Caliban's Dream" (1996), "La Dame a la Licorne" (1993), "Graal Theatre" (1996).
Uma característica de Saariaho, que sobressai à primeira audição, é o seu radicalismo. Ela não facilita. Leva suas perquirições musicais às últimas consequências. Mas o faz com inteligência, sensibilidade e até com glamour. Ela quer criar música para ser ouvida, e não apenas apreciada pela sua escritura. Parte da análise e da síntese exploratória do som, compõe com computador, joga com vozes, instrumentos e eletrônica, mas reelabora a matéria formal dando liberdade aos processos intuitivos com vista a um resultado expressional impactante. Outra característica é a sua convivialidade com a poesia, que integra visceralmente a sua música, do trovador provençal Jaufre Rudel ao francês Saint-John Perse.

Mediadas e sensibilizadas frequentemente pelo texto poético, as composições de Saariaho encantam, convidam à escuta, mais do que se propõem a um severo "approach" de viés técnico

Mas o que chama a atenção, desde logo, é a colorística de suas obras. Menos que o estruturalismo harmônico dos pós-serialistas, a tonalidade ou a atonalidade, o que avulta em suas composições é a presença da materialidade sonora, acentuada por diferentes formas de ataque e de toque e de novas configurações microintervalares, obtidas por técnicas como a da "scordatura" ou desafinação programada das cordas do instrumento -abordagens que cresceram de interesse nos últimos anos através da obras de compositores como Scelsi, Ligeti, Ferneyhough. Mediadas e sensibilizadas frequentemente pelo texto poético, as composições de Saariaho encantam, convidam à escuta, mais do que se propõem a um severo "approach" de viés técnico.

Raiz da fala
Preocupam-na acima de tudo o timbre e as microssondagens do som, a cor, o corpus sonoro e as suas mínimas reverberações acústicas, daí resultando uma música extremamente sensorial, plástica, provocativa. Os textos poéticos são instigações vocoverbais, que levam à raiz da fala, onde se confundem, em articulações pré-silábicas, ruidísticas, com o sopro da flauta e o hausto dos ataques do som. "Transformar a respiração em som musical" é um dos lemas da compositora. Fala-se, a propósito de sua música, em "som-cor", "harmonia-timbre" (Ivanka Stoianova). Ela mesma se diz interessada em "utilizar certos fenômenos sonoros como base da escrita da harmonia". Em outras palavras, o timbre é o ponto de partida para a construção da harmonia, que se processa muitas vezes por meio da fusão de instrumentos com eletrônica, e a base exploratória do som, o que ela chama de "eixo timbral" (abrangendo as gamas do som claro ao ruído). Há, porém, uma qualidade vivencial nessas obras em que a melodia cede a primazia à "harmonia-timbre". Sim, há vida vivida nesse "melos" sem mel. Ela diz, por exemplo, que começou a escrever "Du Cristal" quando ouviu pela primeira vez, num exame pré-natal, a ecografia do coração do seu filho Alex, e que a experiência de ouvir dois corações no seu corpo, um batendo mais rápida, outro mais compassadamente, e mais adiante de observar o coração do filho que crescia ir aproximando o seu andamento das batidas do seu próprio coração, influenciou as soluções rítmicas daquela peça. Esse alento vital anima outras considerações musicais, mais específicas, da compositora. A flauta e a voz, em estreita associação, assim como o violoncelo, contaminados pela eletrônica, são dominantes em sua esfera composicional. Ela afirma que, quando pensa na flauta, imagina uma gama, mas não propriamente uma escala de alturas musicais, e sim uma gama que vem dos sons mais graves, ruidísticos, com muita respiração, aos sons mais agudos e brilhantes nos registros altos. É uma escala material, timbrística, do ruído ao som, a que ela tem em mente, antes que uma escala intervalar. Utiliza todo um arsenal de técnicas para produzir sons inusitados: sons soprados, sussurrados, silabados, fala e canto simultâneos com o som da flauta, estalos, cantos, vibratos e glissandos, trilos com harmônicos. O mesmo se passa com o violoncelo, em que ela visualiza um quadro variável de sons claros, tocados normalmente, contrapostos à gama de ruídos produzida por várias práticas como o emprego do arco em regiões inusitadas do instrumento, os toques "sul tasto" (sobre o tasto, ou divisória das cordas ) ou "sul ponticello" (na região do cavalete), os tremolos e suas variantes. Posto que há muito integradas ao repertório da música contemporânea (lembre-se o exemplo paradigmático dos "Cinco Movimentos para Quarteto de Cordas", op. 5, de Webern, ou o da "Suíte Lírica", de Berg), essas técnicas aqui são alvo de uma sistematização obsessiva, que acaba constituindo um traço caracterológico da compositora. Embora a música de Saariaho possa ser ouvida, a essa altura, em diversas gravações, o álbum "Prisma" merece consideração especial porque, a par de difundir, na íntegra, em CD-áudio, algumas de suas obras mais significativas, contém ainda um CD-ROM, a meu ver modelar como construção comunicativa, que constitui uma introdução sofisticada, abrangente e cativante do seu trabalho. Pioneiro, nesse sentido, foi o CD-ROM "All My Hummingbirds Have Alibis", com a música eletrônico-vocal de Morton Subotnik, lançado há 10 anos pela produtora Voyager, de Nova York. Beneficiado pela riqueza informacional dos novos softwares e por uma concepção criativa, com mais de 15 horas de animações, o multimídia de "Prisma", além de proporcionar uma torrente de audições analisadas e de informações sobre Saariaho e seus métodos de trabalho, vai animar o usuário, por certo, a ouvir as composições "Lonh", "Près", "NoaNoa" e "Six Japanese Gardens", que se encontram no áudio, amostragens exuberantes da sua obra, com ênfase, respectivamente, na voz, no violoncelo, na flauta e na percussão. "Lonh" é um capítulo à parte. A música provém da canção do trovador provençal Jaufre Rudel, que se ouve parcialmente no idioma e na melodia modalizante original e que renasce em torturada desconstrução expressiva, sob o crivo da linguagem espectro-sensorial -a harmonia de timbres- da compositora.Quem certamente a introduziu no universo trovadoresco foi o poeta Jacques Roubaud, seu amigo, de quem musicou também um texto poético e que é um especialista na poesia em "langue d'oc". "Lohn", que significa "longe", em provençal, daria origem à ópera "O Amor de Longe", em que é tematizada a vida de Rudel, já encenada na Europa e nos Estados Unidos, depois de sua estréia parisiense. A poesia avulta ainda num outro CD no qual reina a flauta, sob inspiração dos textos de Saint-John Perse, em duas composições, "Laconisme de l'Aile" e "L'Aile du Songe", que Saariaho faz entremear com a leitura de poemas do livro "Oiseaux", em "ambientação sonora" de cantos de pássaros mixados à flauta e a material computadorizado.

Intervenção lúdica
Criado sob a supervisão de Saariaho e Jean-Baptiste Barrière, o CD-ROM de "Prisma" é dividido em cinco seções, "Nuages" (Nuvens), "Moissons" (Colheitas), "Spectres" (Espectros), "Amers" (A-mar-gos), "Mirrors" (Espelhos), cada qual subdividida em outras tantas, com fartura de material musical e visual. A primeira seção apresenta, em autobiografia, entrevistas e opiniões da Saariaho, além de trechos de composições de suas várias fases numa imaginária sala de concertos com interpretações ao vivo. Narrada fragmentariamente pela compositora, a autobiografia se articula sobre variações metamórficas do seu rosto, montadas sobre fotos e vídeos digitalizados, com resultados expressivos e imprevistos.
Em "Colheitas" podemos contactar os intérpretes, o violoncelista Anssi Kartunen e a flautista Camila Huitinga, que nos levam a conhecer intimamente as técnicas utilizadas nas composições, com apoio em vídeos, partituras e vocabulário didático. "Espectros", a cargo de Jean-Baptiste Barrière, explicita as ferramentas digitais e eletrônicas de que Saariaho se utiliza, os procedimentos de análise, síntese e filtragem sonora, os vários modos de tratamento do som, em estúdio e ao vivo. "Amers" nos põe em contato com essa composição, explicada minudentemente, com acesso à partitura, pela musicóloga Ivanka Stoianova, que nos traz também informações sobre a gênese da obra e as suas relações com a poesia de Saint-John Perse. "Mirrors", finalmente, é uma composição interativa especialmente feita para provocar a intervenção lúdica do usuário, que também pode "ouvê-la" num belo vídeo de imagens ondulatórias criado por Jean-Baptiste Mathieu.
A programação digital da peça, escrita para flauta e violoncelo, com disposição visual em duas pistas coloridas acompanhadas dos respectivos fragmentos partiturais, permite que se rearranjem os fragmentos pré-gravados numa reconstrução livre ou de acordo com os critérios estipulados pela compositora. A concepção de todo o CD-ROM é muito atrativa, sugerindo novos caminhos para a veiculação e a assimilação da música contemporânea: as provocações e surpresas audiovisuais que o multimídia desencadeia estimulam o espectador a deixar a apatia e a enfrentar a maior complexidade e novidade dessa linguagem musical em relação aos padrões habituais da música de consumo. Uma das mais bem-vindas novidades na área da música erudita, nos últimos tempos, foi o crescente número de compositoras significativas. Ustvólskaia, Gubaidulina, Tania León, Saariaho, para citar algumas das mais eminentes cujas obras despontaram ou foram reveladas nas duas últimas décadas, revitalizam a paisagem musical, trazendo para a linguagem contemporânea, sem perda de rigor ou radicalismo, as marcas da intuição, da sensorialidade e da sensibilidade, características do universo feminino, que matizam e reanimam as tantas vezes áridas sondagens da música-pensamento.


Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de "Música de Invenção" e "Despoesia" (ed. Perspectiva), entre outros livros.


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