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+ música
Arrigo Barnabé comemora
20 anos do lançamento
de "Clara Crocodilo",
que está saindo
pela primeira vez em CD
O retorno do monstro mutante
Ademir Assunção
especial para a Folha
Depois de 20 anos aprisionado num assombroso círculo de silêncio imposto pela mídia eletrônica, o perigoso marginal "Clara Crocodilo" está voltando às ruas. A notícia é das mais
alentadoras: em novembro, o compositor Arrigo Barnabé lança em CD o disco que causou um verdadeiro
terremoto na música brasileira. No ano passado, o compositor fez uma regravação ao vivo, em versão mais camerística, com quarteto de cordas, naipe de metais, percussão de orquestra e instrumentos elétricos. Agora, está saindo o original -uma obra histórica, que só existia
em vinil e se encontrava totalmente fora de catálogo.
Gravado em 1980, "Clara Crocodilo" tornou-se um
marco divisório da música contemporânea produzida
no Brasil. A mistura de atonalismo com "rock and roll",
as narrativas influenciadas por histórias em quadrinhos, os vocais parodiando programas radiofônicos
policiais, o cenário urbano onde trafegam office boys,
viciados em fliperamas e monstros mutantes, enfim, todo o caráter inovador e absolutamente futurista causaram um impacto como não se via desde o tropicalismo.
Diante da dissonante criatura de Arrigo Barnabé, a indústria musical e muitos dos artistas reagiram de forma
estranha: em vez de enfrentarem o desafio proposto pelo compositor, procuraram esquecê-lo gradativamente.
"Clara Crocodilo" transformou-se numa obra histórica, sempre comentada com respeito, mas cada vez menos ouvida. Vinte anos depois, no entanto, ela retorna
para cumprir a profética trajetória do seu personagem
principal.
A faixa que dá nome ao disco narra a história de um
office boy que é transformado em um perigoso monstro mutante, vítima de uma experiência maligna de laboratórios multinacionais. Perseguido por todos, o
monstro passa duas décadas aprisionado, até ser libertado por um incauto ouvinte, que compra o vinil em
um sebo e o coloca para tocar na vitrola, na noite de réveillon do ano 2000.
Além de "Clara Crocodilo", Arrigo Barnabé está lançando em CD seus dois trabalhos posteriores, "Tubarões Voadores" e "Cidade Oculta", todos pelo selo
Thanx God. Na entrevista a seguir, o compositor comenta os propósitos estéticos que nortearam as composições, o ostracismo imposto a sua criatura e o seu
ressurgimento na cena musical.
Festejando a notícia, compositores em atividade na
música brasileira celebram a entrada do monstro mutante na era digital. ""Clara Crocodilo" continua atualíssimo e revolucionário", afirma Chico César. "É uma gota de bálsamo no meio dessa dolorosa situação atual",
reforça Tom Zé.
Como o criador vê a criatura 20 anos depois?
As composições do "Clara Crocodilo" ainda conservam um grau de ineditismo muito acentuado. São
praticamente as minhas primeiras composições. Eu
estava tentando combinar elementos da música popular e da música erudita, estava querendo explodir
com o formato da canção. "Clara Crocodilo" é realmente um disco de ruptura. Eu achava que seria o
próximo passo depois do tropicalismo.
Havia essa intenção de ruptura? Uma coisa pensada?
Havia, claro. Eu queria romper com a forma da
canção, tanto na parte musical quanto nas letras.
"Clara Crocodilo" traz elementos da música erudita contemporânea, como o atonalismo, o dodecafonismo. São células musicais. Não tem a melodia
cantada. Era uma outra coisa.
A melodia é determinante para a música ser popular?
A melodia é muito importante. Mas é cada vez
mais rara a melodia inteligente. Geralmente, as
músicas populares de sucesso são feitas na escala
pentatônica. É uma escala bem básica. Mas não se
tem hoje em dia uma canção como antes. A idéia da
canção já desapareceu. Existem coisas bem feitas,
mas geralmente ou é diluição da bossa nova ou um
trabalho que considera a expectativa de beleza dentro de um âmbito mercadológico.
O disco fez muito barulho, mas nem todos conseguiram
assimilar aquela música estranha. Aconteceram muitas
cobranças devido a esse caráter de ruptura?
Houve uma cobrança muito grande. Muitos diziam que não era música popular, que o povo não
entendia. Eles tinham razão. "Clara Crocodilo" não
é popular mesmo. Mas por que tem que ser popular? Não existe mais essa coisa pura, de música popular, como existia antes. Vivemos numa cultura
de massas, tudo está contaminado pela mídia eletrônica, pela TV, pela publicidade. Por que a necessidade de fazer algo popular? Existe um endeusamento da cultura pop com o qual não concordo.
Um crítico escreveu um texto há algum tempo dizendo
que sua música é não-tribal, não-melódica. Por isso não
consegue ser popular. O que você pensa disso?
Mas eu não quero que seja tribal nem melódica.
Por que o cara acha que tem que ser assim? O cara
diz que a música erudita brasileira não existe. Diz
que existe Villa-Lobos e só. E o Cláudio Santoro, o
Marlos Nobre? Esses caras não são importantes?
Qual o problema de eu não ser popular, popularesco? Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti também
não o são. Não penso no povo quando estou compondo. Penso no ser humano. Acho um absurdo o
cara propor uma maneira de fazer música. Esse
maneirismo, é isso que existe. Todo mundo fazendo música à maneira de... É isso que a gente vê no
festival da Globo. Todo mundo fazendo música à
maneira daquilo que alguns consideram como a
"maneira brasileira", "do povo", tudo entre aspas.
No disco "Gigante Negão" (1990), você fala de um processo de clonagem. Na música parece que os clones estão aparecendo cada vez mais rápidos...
É, parece que muitos jovens compositores festejam
hoje a diluição como se fosse um êxito. Consideram um êxito conseguir diluir Milton Nascimento!
As raízes musicais do seu trabalho são essencialmente
européias?
Principalmente no aspecto melódico. Valsas como
"Londrina", "Sinhazinha em Chamas" ou "Cidade
Oculta", embora sejam consideradas como o aspecto mais brasileiro do meu trabalho, nasceram
de fontes européias. Já no aspecto rítmico, existe de
tudo: da música indiana ao rock, ritmos brasileiros
e idéias da música erudita do século 20.
Apesar de ter conseguido enorme repercussão, "Clara
Crocodilo" ficou à margem nesses anos todos. Isso tem
a ver com essa "diluição" na música popular?
Na realidade não foi "Clara Crocodilo" que ficou à
margem. Foi Arrigo Barnabé que deixou de gerar
fatos para a imprensa. Eu continuo acreditando no
ser humano e acho que o ouvinte pode ser um crítico muito criativo. Esse problema de baixar o nível
me parece que não preocupa realmente quem já está estabelecido. E, se você começa a reclamar, dizem que você ou é rancoroso ou incompetente. Eu
acho que não se trata disso. A loteria já foi sorteada,
a música "popular", entre aspas, já foi rifada, e todos aqueles que adquiriram uma capitania querem
mantê-la. Então precisam estar de mãos dadas com
a indústria. Por isso toda essa condescendência e
até essa legitimação do descartável.
Mas no meio desse contexto todo há novos criadores fazendo um trabalho bom, criativo.
O que tenho ouvido não é exatamente o que eu esperava que acontecesse. Eu era muito ingênuo,
acreditava que a música ligada à indústria poderia
alcançar um horizonte artístico relevante e não
permanecer como mero fato cultural. Claro, existem pessoas fazendo coisas competentes, existe a
esfera da competência. Mas eu imaginava outro
panorama no século 21.
No ano passado você fez uma regravação do disco, ao
vivo, com uma formação mais erudita. A impressão é de
que estava querendo se distanciar ainda mais dos elementos da cultura de massas. É isso mesmo?
Eu gosto de música, gosto de escrever música. Obviamente meu ideal está mais próximo da música
escrita, com partitura e tudo. E no entanto a música
escrita pode estar vertiginosamente perto da cultura de massas. É só você ouvir esses concertos de vários tenores e os clássicos para milhões.
A concepção que você queria desde o início é a que surgiu na regravação?
Queria ter experimentado mais do que fiz em 1980.
Naquela época eu fiz o possível e gosto do resultado. Mas sempre pensei que não era definitivo. Na
verdade, eu fiz essa gravação ao vivo para mim. E
fiquei quase satisfeito com o meu trabalho.
Com o relançamento do disco original em CD, você espera que "Clara Crocodilo" seja mais bem entendido?
Bom, já não tenho mais essa expectativa, mesmo
porque lancei no ano passado essa nova versão, ao
vivo. Mas acredito que o disco original tem uma
aura, é histórico. Então vai ser um acontecimento.
Vinte anos depois, que desafios "Clara Crocodilo" continua propondo?
Penso que é um trabalho bem sucedido de música
inteligente. Tirando "Instante", que ficaria melhor
em outro contexto, existe uma unidade muito
grande nas peças e isso é o que me agrada mais. Antes ninguém usava locuções longas, intervenções
faladas, isso é praticamente inédito, e ao mesmo
tempo o assunto é a vida urbana -algo bem atual.
Ademir Assunção é jornalista e poeta, autor de "A Máquina Peluda" (Ateliê Editorial).
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