São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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+ música
Arrigo Barnabé comemora 20 anos do lançamento de "Clara Crocodilo", que está saindo pela primeira vez em CD
O retorno do monstro mutante

Ademir Assunção
especial para a Folha

Depois de 20 anos aprisionado num assombroso círculo de silêncio imposto pela mídia eletrônica, o perigoso marginal "Clara Crocodilo" está voltando às ruas. A notícia é das mais alentadoras: em novembro, o compositor Arrigo Barnabé lança em CD o disco que causou um verdadeiro terremoto na música brasileira. No ano passado, o compositor fez uma regravação ao vivo, em versão mais camerística, com quarteto de cordas, naipe de metais, percussão de orquestra e instrumentos elétricos. Agora, está saindo o original -uma obra histórica, que só existia em vinil e se encontrava totalmente fora de catálogo.
Gravado em 1980, "Clara Crocodilo" tornou-se um marco divisório da música contemporânea produzida no Brasil. A mistura de atonalismo com "rock and roll", as narrativas influenciadas por histórias em quadrinhos, os vocais parodiando programas radiofônicos policiais, o cenário urbano onde trafegam office boys, viciados em fliperamas e monstros mutantes, enfim, todo o caráter inovador e absolutamente futurista causaram um impacto como não se via desde o tropicalismo.
Diante da dissonante criatura de Arrigo Barnabé, a indústria musical e muitos dos artistas reagiram de forma estranha: em vez de enfrentarem o desafio proposto pelo compositor, procuraram esquecê-lo gradativamente. "Clara Crocodilo" transformou-se numa obra histórica, sempre comentada com respeito, mas cada vez menos ouvida. Vinte anos depois, no entanto, ela retorna para cumprir a profética trajetória do seu personagem principal.
A faixa que dá nome ao disco narra a história de um office boy que é transformado em um perigoso monstro mutante, vítima de uma experiência maligna de laboratórios multinacionais. Perseguido por todos, o monstro passa duas décadas aprisionado, até ser libertado por um incauto ouvinte, que compra o vinil em um sebo e o coloca para tocar na vitrola, na noite de réveillon do ano 2000.
Além de "Clara Crocodilo", Arrigo Barnabé está lançando em CD seus dois trabalhos posteriores, "Tubarões Voadores" e "Cidade Oculta", todos pelo selo Thanx God. Na entrevista a seguir, o compositor comenta os propósitos estéticos que nortearam as composições, o ostracismo imposto a sua criatura e o seu ressurgimento na cena musical.
Festejando a notícia, compositores em atividade na música brasileira celebram a entrada do monstro mutante na era digital. ""Clara Crocodilo" continua atualíssimo e revolucionário", afirma Chico César. "É uma gota de bálsamo no meio dessa dolorosa situação atual", reforça Tom Zé.

Como o criador vê a criatura 20 anos depois?
As composições do "Clara Crocodilo" ainda conservam um grau de ineditismo muito acentuado. São praticamente as minhas primeiras composições. Eu estava tentando combinar elementos da música popular e da música erudita, estava querendo explodir com o formato da canção. "Clara Crocodilo" é realmente um disco de ruptura. Eu achava que seria o próximo passo depois do tropicalismo.

Havia essa intenção de ruptura? Uma coisa pensada?
Havia, claro. Eu queria romper com a forma da canção, tanto na parte musical quanto nas letras. "Clara Crocodilo" traz elementos da música erudita contemporânea, como o atonalismo, o dodecafonismo. São células musicais. Não tem a melodia cantada. Era uma outra coisa.

A melodia é determinante para a música ser popular?
A melodia é muito importante. Mas é cada vez mais rara a melodia inteligente. Geralmente, as músicas populares de sucesso são feitas na escala pentatônica. É uma escala bem básica. Mas não se tem hoje em dia uma canção como antes. A idéia da canção já desapareceu. Existem coisas bem feitas, mas geralmente ou é diluição da bossa nova ou um trabalho que considera a expectativa de beleza dentro de um âmbito mercadológico.

O disco fez muito barulho, mas nem todos conseguiram assimilar aquela música estranha. Aconteceram muitas cobranças devido a esse caráter de ruptura?
Houve uma cobrança muito grande. Muitos diziam que não era música popular, que o povo não entendia. Eles tinham razão. "Clara Crocodilo" não é popular mesmo. Mas por que tem que ser popular? Não existe mais essa coisa pura, de música popular, como existia antes. Vivemos numa cultura de massas, tudo está contaminado pela mídia eletrônica, pela TV, pela publicidade. Por que a necessidade de fazer algo popular? Existe um endeusamento da cultura pop com o qual não concordo.

Um crítico escreveu um texto há algum tempo dizendo que sua música é não-tribal, não-melódica. Por isso não consegue ser popular. O que você pensa disso?
Mas eu não quero que seja tribal nem melódica. Por que o cara acha que tem que ser assim? O cara diz que a música erudita brasileira não existe. Diz que existe Villa-Lobos e só. E o Cláudio Santoro, o Marlos Nobre? Esses caras não são importantes? Qual o problema de eu não ser popular, popularesco? Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti também não o são. Não penso no povo quando estou compondo. Penso no ser humano. Acho um absurdo o cara propor uma maneira de fazer música. Esse maneirismo, é isso que existe. Todo mundo fazendo música à maneira de... É isso que a gente vê no festival da Globo. Todo mundo fazendo música à maneira daquilo que alguns consideram como a "maneira brasileira", "do povo", tudo entre aspas.

No disco "Gigante Negão" (1990), você fala de um processo de clonagem. Na música parece que os clones estão aparecendo cada vez mais rápidos...
É, parece que muitos jovens compositores festejam hoje a diluição como se fosse um êxito. Consideram um êxito conseguir diluir Milton Nascimento!

As raízes musicais do seu trabalho são essencialmente européias?
Principalmente no aspecto melódico. Valsas como "Londrina", "Sinhazinha em Chamas" ou "Cidade Oculta", embora sejam consideradas como o aspecto mais brasileiro do meu trabalho, nasceram de fontes européias. Já no aspecto rítmico, existe de tudo: da música indiana ao rock, ritmos brasileiros e idéias da música erudita do século 20.

Apesar de ter conseguido enorme repercussão, "Clara Crocodilo" ficou à margem nesses anos todos. Isso tem a ver com essa "diluição" na música popular?
Na realidade não foi "Clara Crocodilo" que ficou à margem. Foi Arrigo Barnabé que deixou de gerar fatos para a imprensa. Eu continuo acreditando no ser humano e acho que o ouvinte pode ser um crítico muito criativo. Esse problema de baixar o nível me parece que não preocupa realmente quem já está estabelecido. E, se você começa a reclamar, dizem que você ou é rancoroso ou incompetente. Eu acho que não se trata disso. A loteria já foi sorteada, a música "popular", entre aspas, já foi rifada, e todos aqueles que adquiriram uma capitania querem mantê-la. Então precisam estar de mãos dadas com a indústria. Por isso toda essa condescendência e até essa legitimação do descartável.

Mas no meio desse contexto todo há novos criadores fazendo um trabalho bom, criativo.
O que tenho ouvido não é exatamente o que eu esperava que acontecesse. Eu era muito ingênuo, acreditava que a música ligada à indústria poderia alcançar um horizonte artístico relevante e não permanecer como mero fato cultural. Claro, existem pessoas fazendo coisas competentes, existe a esfera da competência. Mas eu imaginava outro panorama no século 21.

No ano passado você fez uma regravação do disco, ao vivo, com uma formação mais erudita. A impressão é de que estava querendo se distanciar ainda mais dos elementos da cultura de massas. É isso mesmo?
Eu gosto de música, gosto de escrever música. Obviamente meu ideal está mais próximo da música escrita, com partitura e tudo. E no entanto a música escrita pode estar vertiginosamente perto da cultura de massas. É só você ouvir esses concertos de vários tenores e os clássicos para milhões.

A concepção que você queria desde o início é a que surgiu na regravação?
Queria ter experimentado mais do que fiz em 1980. Naquela época eu fiz o possível e gosto do resultado. Mas sempre pensei que não era definitivo. Na verdade, eu fiz essa gravação ao vivo para mim. E fiquei quase satisfeito com o meu trabalho.

Com o relançamento do disco original em CD, você espera que "Clara Crocodilo" seja mais bem entendido?
Bom, já não tenho mais essa expectativa, mesmo porque lancei no ano passado essa nova versão, ao vivo. Mas acredito que o disco original tem uma aura, é histórico. Então vai ser um acontecimento.

Vinte anos depois, que desafios "Clara Crocodilo" continua propondo?
Penso que é um trabalho bem sucedido de música inteligente. Tirando "Instante", que ficaria melhor em outro contexto, existe uma unidade muito grande nas peças e isso é o que me agrada mais. Antes ninguém usava locuções longas, intervenções faladas, isso é praticamente inédito, e ao mesmo tempo o assunto é a vida urbana -algo bem atual.


Ademir Assunção é jornalista e poeta, autor de "A Máquina Peluda" (Ateliê Editorial).



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