São Paulo, domingo, 16 de julho de 2000


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+ brasil 501 d.C.

Jurandir Freire Costa

Aposta contra os ressentidos


João Moreira Salles, ao apostar na face criativa de um "marginal", apenas foi leal ao ideário democrático, oferecendo uma chance de vida digna a alguém fadado a ser carne humana para abate; como Luiz Eduardo Soares, ele nadou contra a corrente ao jogar fora hábitos carcomidos e dar início ao novo


O mérito nem sempre é premiado no devido tempo. O caso de Luiz Eduardo Soares e João Moreira Salles ilustra essa experiência corrente. Luiz Eduardo foi exonerado do cargo na Secretaria de Segurança Pública do Rio e está, hoje, nos EUA; João Moreira Salles foi levado a depor na CPI do narcotráfico e a enfrentar insinuações levianas sobre sua pretensa "complacência" no trato com marginais. Tais tipos de reação, é verdade, não foram unânimes. Muitos universitários, políticos, membros de organizações comunitárias não-governamentais etc. manifestaram seu apoio aos dois, nos episódios da "banda podre da polícia" e da perseguição policial ao traficante Marcinho VP. Longe da vertigem dos acontecimentos, é importante pensar no que ocorreu. Uma das origens da violência urbana no Brasil parece, hoje, indiscutível: desigualdade máxima combinada com máxima injustiça. Como mostrou o economista Ricardo Henriques, 10% dos brasileiros mais ricos, aproximadamente 18 milhões de pessoas, possuem 28 vezes mais renda do que os 40% mais pobres, aproximadamente 72 milhões de pessoas. Nos Estados Unidos, a mesma relação é de 5 vezes; na Argentina, de 10 vezes, e, na Colômbia, de 15 vezes. Se pensarmos, além disso, que a concentração de renda entre os 10% tem o mesmo perfil do resto da economia, não é difícil imaginar a razão de tantos crimes.

Bandidos e nababos
Ao longo dos últimos 20 anos, o quadro não mudou, não obstante a diversidade partidária dos sucessivos governantes. Gastamos somas fabulosas com segurança pública e privada, mas educar e transferir renda continuam sendo expressões banidas do vocabulário dos brasileiros mais ricos. Acontece que, pobres ou ricos, não somos números abstratos em estatísticas econômicas; somos pessoas com desejos, crenças, julgamentos e motivações para agir. Criamos, por isso, padrões de comportamento que refletem e retroalimentam a moralidade da cultura em que vivemos. Um desses padrões é o ressentimento, que, embora difundido em toda a sociedade, é mais visível no topo e na base da pirâmide social. O ressentimento pode se exprimir de várias maneiras. Entre nós, ele se sedimentou na atitude de mágoa, rancor ou desejo de revanche em relação ao outro e auto-indulgência na relação consigo. O ressentido se acha uma vítima real ou potencial da dureza do mundo e, por esse motivo, se autoriza a agir ou reagir violentamente para fazer valer seus "direitos" ou pretensões pessoais. Assim, bandidos, nababos e seus prepostos ideológicos procuram tomar de assalto a vida cultural, engolindo o espaço dos noticiários e transformando a cena pública num espetáculo de dois atores: os escroques no poder e os que disputam o butim da escroqueria. Essa aliança mórbida entre elite e lúmpen tem uma história longa e funesta. No passado, ela redundou, por exemplo, no terror nazista ou no desgoverno mafioso das burocracias comunistas do leste europeu; no presente, o script se repete no conluio do cassino financeiro com a indústria de armas e o comércio de drogas ilegais. Os mentores dessas atividades e os defensores da visão de mundo que as legitima corporificam a versão tacanha e disforme do mito utilitarista da natureza humana. Acreditam, de fato, que são lobos uns dos outros e agem como mercenários de uma guerra suja. No fundo, são refugos de uma cultura que rompeu com a tradição, não encontrou seu futuro e repete o pior do passado.

Denúncia dos vícios
Luiz Eduardo Soares e João Moreira Salles denunciaram os vícios desse etos. Luiz Eduardo desmontou o chavão da "polícia corrupta e delinquente", afirmando que existem policiais honestos e desonestos! E os honestos tendem a se corromper por constatarem, rapidamente, que são bucha de canhão usada para defender os mais torpes interesses do clube dos 10%. A polícia, no Brasil, é chamada de "corrupta e delinquente" por se aliar aos bandidos em sequestros, roubos e extorsões. Isso é verdade, mas apenas meia verdade. Pois a mesma "banda corrupta da polícia", ao dar cobertura ao tráfico de cocaína e seus intocáveis fregueses, ao aceitar suborno dos "acima da lei" ou espancar grevistas, sem-terra e desempregados que tentam sobreviver como camelôs, é descrita de outra forma. No máximo, é chamada de "incompetente" por não ser suficientemente truculenta na repressão aos pobres ou suficientemente fria no assassinato de marginais! A "boa sociedade" é useira e vezeira em manipular a "polícia corrupta e delinquente" quando bem lhe interessa. Corrupção e delinquência são vinhetas para o público externo. Para o público interno, escrúpulo é moralismo de subúrbio, prurido de elenco de segunda ou "coisas de além-túnel!". Do lado de cá, a língua é outra. Vende-se e compra-se tudo, e a polícia deve estar lá para garantir a tranquilidade dos negócios que vão da cocaína à distribuição de informações financeiras privilegiadas. João Moreira Salles foi de encontro ao estereótipo do "bandido bom é bandido morto!". Viu em Marcinho VP uma pessoa além do rótulo de "bandido" que foi levado a encarnar. O bandido urbano é a caricatura grotesca dos donos do poder e seus pífios ideais: ostentação desenfreada; impiedade sem limites em relação aos mais frágeis; sede de lucro fácil; fascínio idiota por fama e assim por diante. Seu destino resume o ressentimento brasileiro, em tempos de drogadição, irresponsabilidade política, superficialidade cultural e, "last but not least", falta de sentido de viver.

Tempero mesquinho
João Salles, ao apostar na face criativa de um "marginal", apenas foi leal ao ideário democrático, oferecendo uma chance de vida digna a alguém fadado a ser carne humana para abate. Como Luiz Eduardo, nadou contra a corrente ao jogar fora hábitos carcomidos e dar início ao novo! Ambos se arriscaram, mas nisso, justamente, está a grandeza cívica de seus gestos.
O ressentido não se arrisca. Sua voz é a voz do rebanho. Ele nada faz para que algo mude, mas faz tudo para desmoralizar, escarnecer, caluniar ou banalizar qualquer ato criador. O gosto da derrota, da queixa, da inveja ou do deboche servil é o tempero mesquinho dessas vidas agarradas ao nada!
Luiz Eduardo e João Salles trouxeram à luz do dia o que a mediocridade procura manter à sua sombra: "Nem todos capitulamos!". Eles, como outros brasileiros justos e decentes, são felizes exemplos de que a honradez nunca é em vão.


Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. É autor de "Inocência e Vício - Estudos sobre o Homoerotismo" e "A Ética e o Espelho da Cultura". Ele escreve regularmente na seção "Brasil 501 d.C." E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br

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