São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2001
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+ literatura O Prêmio Nobel de 2000, Gao Xingjian, discute a estrutura de suas obras e a ocidentalização por que está passando a língua chinesa Personagens dissolvidos
Betty Milan
Gao Xingjian é romancista, dramaturgo, pintor
e diretor de teatro. Nasceu em 1940 na China e
é considerado um grande pioneiro das artes e
da literatura modernas em seu país. O seu primeiro ensaio sobre a arte do romance moderno (1981)
suscitou na China um grande debate sobre modernismo ou realismo.
Isso significa que há três formas de narração. A originalidade do seu trabalho estaria nisso? Sim, embora Michel Butor já tenha usado o "tu" para o sujeito. Em "O Mais Perto Possível do Real" o senhor diz que houve uma virada na sua vida quando entrou na universidade e começou a ler os autores franceses. O que foi que eles lhe trouxeram? Acho que é muito útil para um escritor ter várias línguas como referência. Só assim ele conhece as nuanças de expressão. Gostaria que o senhor me dissesse o que há de chinês no seu texto e o que há de ocidental. De chinês eu não sei. Tudo que é exotismo não me interessa. Eu estou me referindo à tradição chinesa... O meu texto é marcado pela língua chinesa, está muito ligado a ela. A língua já é uma cultura e ela engendra uma mentalidade, uma forma de pensar, de sentir, de exprimir. Lendo seus romances eu tive o sentimento de que a escrita chinesa é muito fluida. A fluidez é decorrente da minha escrita, mas também da língua chinesa, porque nela o sujeito é frequentemente negligenciado. Os verbos em chinês não se conjugam, e o sujeito fica dissimulado. Como nós não temos as obrigações gramaticais das línguas ocidentais, temos mais liberdade, e a escrita pode ser mais fluida. Mas há escritores chineses que introduzem a estrutura gramatical das línguas ocidentais no chinês. Isso também é possível. O chinês moderno tende a se ocidentalizar gramaticalmente e eu sou o primeiro que chamou a atenção para esse perigo. Perigo? Sim, porque se trata de um péssimo chinês. Não sou contra a infiltração recíproca das línguas, mas é preciso que o elemento estrangeiro seja bem assimilado pela estrutura da língua chinesa, como, por exemplo, os termos do budismo originários do hindu. Para os chineses não existe uma gramática como a do Ocidente. As gramáticas da língua chinesa foram feitas para que os ocidentais aprendessem o chinês. Lendo "A Montanha da Alma" eu cheguei à conclusão de que o sr. é um escritor mais livre do que os escritores do "nouveau roman" e que nós, brasileiros, podemos ter essa liberdade. Fui eu que introduzi o "nouveau roman" na China, mas eu acho que ele inova do ponto de vista formal sem que haja uma pesquisa profunda sobre a consciência humana. Sempre me pergunto se a língua pode traduzir o que nós sentimos. Procuro escrever num chinês moderno que exprima o sentimento das pessoas de hoje. Isso me interessa mais do que contar uma história. Quero uma língua que exprima da maneira mais rigorosa o que nós sentimos. A língua do dia-a-dia está muito longe disso. O sr. diz que a razão de ser da literatura é a dificuldade de existir do gênero humano. O que a literatura pode fazer pela humanidade? A literatura não tem finalidade, ela é inerente à espécie humana -porque a espécie tem uma consciência, e a consciência precisa se afirmar. Existe a necessidade de comer mas também a de se exprimir. Do contrário nós ficamos doentes. Nós, escritores, não podemos mudar o mundo. No seu discurso em Estocolmo o senhor disse que o homem tem dificuldade de se entender, que a literatura é apenas a observação do homem por ele mesmo e que, quando ele se observa, tem uma consciência que o ilumina. O que é que a literatura propicia que as outras formas de expressão não propiciam? A música e a pintura também são formas de expressão da consciência sentimental. Mas a expressão pela língua é a mais refinada, a mais sutil. Gostaria que o senhor falasse da sua dramaturgia. No meu teatro a personagem fala na primeira pessoa mas também na segunda e na terceira. Às vezes é o "eu", às vezes o "tu", às vezes é "ela". Quando introduzimos essas três pessoas, o efeito sobre o trabalho dos atores é interessante. Assim, quando o ator diz "tu" referindo-se a si mesmo, é criada uma distância e uma teatralidade que é inerente ao desempenho. A teatralidade da minha peça não está no espaço do teatro, ela está no trabalho do ator, que varia segundo o pronome que ele usa, o "eu", o "tu" ou o "ele". E, se houver um parceiro, que fala de si na terceira pessoa, a situação se complica ainda mais, ela se enriquece. Há peças em que os personagens começam dizendo "eu". De repente, usam o "tu" e o espectador não sabe se o "tu" se refere a ele ou ao personagem. É precisamente essa ambiguidade que me interessa criar. Além de escritor o sr. é pintor. Gostaria de saber se essa relação com a escrita e a imagem é uma maneira de perpetuar uma tradição chinesa ou é uma expressão da modernidade? Trata-se de um grande tema para um colóquio, sem nenhum interesse para um criador. A ele o que interessa é fazer algo absolutamente pessoal. Procura o caminho que lhe é próprio, particular. Eu escrevo e pinto desde criança. É a modernidade que impõe às pessoas a escolha de uma única profissão. Mas na Antiguidade não era assim. Os letrados chineses se exprimiam em diferentes meios. Para mim tanto a escrita quanto a pintura são prazerosas. O sr. diz que a arte não foi feita para agradar a quem quer que seja. Qual a relação entre a arte e o mercado? Há uma relação, mas para o artista o que interessa é a liberdade de se exprimir. Claro que ele precisa viver e a questão que pode se colocar para ele é a de aceitar ou não as limitações que o mercado impõe. Agora, no momento da criação, é importante que o artista não tenha que pensar na venda. O que significou para o sr. ter recebido o Nobel? Acabou com o meu sossego. Preciso me reorganizar para voltar à calma. Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "O Clarão" (Cultura Editores Associados), entre outros. Texto Anterior: Luiz Costa Lima: Os sentidos da trama Próximo Texto: José Simão: E-mail em Portugal é carta voadora! Índice |
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