São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

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Reações opostas dos presidentes Lula e Néstor Kirchner à morte do papa João Paulo 2º ajudam a explicar as relações do Brasil e da Argentina com a igreja ao longo da história

Regimes em suspensão

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

As atitudes dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner a respeito das cerimônias pela morte do papa foram contrapostas. Como se sabe, Lula rumou para o Vaticano e com ele, a seu convite, voaram dois ex-presidentes, líderes de outras religiões, políticos etc. Enquanto isso, Kirchner ficou em Buenos Aires, limitando-se a enviar representante.
A atitude do presidente argentino prende-se a sua visão liberal acerca de temas comportamentais, que acabou se chocando com um truculento capelão militar, o bispo Antonio Baseotto.


A inauguração espetacular do Cristo Redentor marcou a aproximação entre Getúlio e a igreja


Numa alegoria sinistra, que se nutre das imagens da ditadura militar, o bispo declarou que o ministro da Saúde argentino, Ginés González, em razão de sua defesa da descriminalização do aborto, merecia ser "atirado ao mar, com uma pedra no pescoço". Kirchner não foi atendido pelo Vaticano em seu pedido de remoção do bispo. Diante disso, revogou o decreto que designava Baseotto para a nunciatura das Forças Armadas, suspendeu seu salário e decidiu não ir ao Vaticano, ao menos para o enterro do papa.
As condutas episódicas diversas do presidente brasileiro e do argentino se abrem para o tema das semelhanças e diferenças históricas das relações entre o Estado e a Igreja Católica nos dois países. As diferenças avultam, e aqui tomo um único, mas expressivo, exemplo, dentre vários outros: o de dois regimes tidos como muito semelhantes -os de Getúlio Vargas [1883-1954] e Juan Domingo Perón [1895-1974].
Para se entenderem as distinções, é preciso levar em conta o pano de fundo institucional. A partir da Constituição republicana de 1891, deixou de existir no Brasil uma religião oficial, enquanto, na Argentina, a Constituição de 1853 criou uma relação de entrelaçamento ambíguo entre a igreja e o Estado. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, o texto constitucional argentino não definiu a Igreja Católica como religião do Estado, mas estatuiu a obrigação estatal de "sustentar a igreja" além de dispor que o presidente e o vice-presidente da república seriam necessariamente católicos.
A expressão ambígua levou a infinitos atritos e, às vezes, a choques entre as duas instituições, envolvendo sobretudo o direito do padroado; ou seja, o direito do Estado argentino de nomear eclesiásticos, responsabilizando-se, entre outros aspectos, por sua remuneração. Jamais aceito pelo Vaticano, o padroado desses novos tempos, que vinha da colônia, foi mitigado por um modus vivendi que interessou às duas partes, mas só em 1966, quase no fim do governo Frondizi [1908-95], firmou-se uma concordata entre a Argentina e o Vaticano.
A partir daí, vamos aos dois populismos. O longo primeiro governo de Getúlio (1930-1945), notadamente, caracterizou-se pelas boas relações entre a igreja e o Estado, baseadas em razões de interesse recíproco, tanto no plano da legitimidade quanto no plano material; já o governo Perón foi marcado por uma brusca oscilação, pois passou do entendimento quase pleno a uma tempestuosa ruptura.

Agnóstico
Curiosamente, Getúlio não era católico, e sim um agnóstico fortemente influenciado pelas idéias cientificistas e positivistas. A tal ponto que somente em 1934 casou-se no religioso com Darcy, sua mulher, numa discreta cerimônia realizada em São Borja. Mas, se não era católico, Getúlio sabia que tinha muito a ganhar ao aproximar-se da igreja, atitude que começou a ganhar forma no bom entendimento com o cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, Sebastião Leme. A inauguração espetacular do monumento ao Cristo Redentor, no Corcovado (outubro de 1931), marcou simbolicamente essa aproximação que perdurou ao longo dos anos, incluindo um tratamento preferencial à Igreja Católica no campo educativo e nas subvenções a obras sociais, embora Getúlio nunca tenha oficializado o ensino religioso obrigatório nas escolas públicas.
Por fim, na sua queda, em 1945, não foi a igreja, mas a cúpula do Exército, o ator de primeiro plano.
No caso de Perón, considerando-se aqui a década peronista -período que vai da vitória de Perón nas eleições de fevereiro de 1946 até sua deposição em setembro de 1955, o quadro foi bem outro. Perón foi eleito com o apoio majoritário da igreja, muito simpática a seus propósitos de instituir uma nova ordem, em que a restauração cristã deveria ter um papel proeminente. Não por acaso, ele insistia, em seus discursos, numa "terceira via", distante do liberalismo e do comunismo, fazendo contínuas referências às encíclicas de conteúdo social.

Excomunhão
Como mostram Roberto di Stefano e Loris Zanatta, em sua excelente "Historia de la Iglesia Argentina" [História da Igreja Argentina, Grijalbo-Mondadori, 2000], a partir de 1949 as diferenças entre o governo e a igreja começaram a vir à luz, seja pela instituição do sindicalismo único, que comprometia a autonomia das organizações sociais católicas, seja pela insistência de Perón em exercer o direito de padroado.
As desavenças chegaram a um limite extremo, que levou à excomunhão de Perón pelo papa Pio 12 depois de uma escalada de medidas e de violência, envolvendo a expulsão de bispos, a decretação da lei de divórcio, a supressão do ensino religioso nas escolas públicas, o bombardeio pela Marinha, onde era grande a influência católica, da praça de Maio e o incêndio de igrejas, por parte de partidários de Perón. Para culminar, muito ligada às Forças Armadas, a cúpula da igreja apoiou o movimento militar que derrubou Perón, colocando no poder, por um breve tempo, o general Lonardi, católico de estrita observância.
Não quero sugerir uma aproximação entre a figura do presidente Kirchner com Perón e, menos ainda, uma aproximação entre o presidente Lula e Getúlio. Os tempos são outros e os temas, até certo ponto, também. Mas, para se acompanhar, no presente, as diferenças de atitude dos dois governos assim como os atritos entre a igreja e o governo argentino, que eventualmente poderão ganhar maior significação, convém não voltar as costas ao passado. De uma forma ou de outra, ele acaba se infiltrando na compreensão do presente.

Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente no Mais!.


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