São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

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A fé entre dois mundos

Livro e documentário tratam da participação do clero e do laicato católicos na dinâmica social brasileira

JURANDIR FREIRE COSTA
COLUNISTA DA FOLHA

O assassinato da irmã Dorothy Stang [em 12/2] expõe, uma vez mais, a ignomínia crônica de nossa cultura. A sanha homicida dos poderosos parece insaciável e não se explica apenas pela avidez de lucro. Ela exprime a predisposição histórica de muitos brasileiros privilegiados para tratar os mais humildes com um desprezo e uma desumanidade cujas raízes vêm de longe. É sobre as origens e causas dessa nódoa moral que Ângela Randolpho Paiva e Alexandre Rampazzo nos fazem refletir.
Ângela Paiva é socióloga e autora de "Católico, Protestante, Cidadão -Uma Comparação entre o Brasil e os Estados Unidos" (UFMG/Iuperj); Alexandre Rampazzo é autor do documentário "Ato de Fé" (2004).
Ambos tratam da participação do clero e do laicato católicos na dinâmica social brasileira, deixando-nos entender melhor o papel que a fé pode ter na construção de um mundo mais justo.


A fé surge como o ato que funda os ideais de liberdade, igual dade e fraternidade


O espírito do trabalho de Ângela Paiva é bem resumido em uma passagem de Joaquim Nabuco citada no livro: "O movimento contra a escravidão no Brasil foi um movimento humanitário e social antes que religioso; não teve a profundeza moral da corrente que se formou, por exemplo, entre os abolicionistas da Nova Inglaterra". O texto, obviamente, não propõe a hegemonia da vida religiosa sobre a cívica. Mostra, apenas que, neste país, a luta pela igualdade, desde o início, careceu de fundamentos morais sólidos.

Indiferença
No Brasil, a "oligarquia iluminista" combateu a escravidão, e a escravocrata procurou mantê-la a ferro e fogo. Nos dois casos, porém, faltou algo do quilate da fé religiosa que fez do abolicionismo americano um acontecimento motivado por interesses econômicos mas também por razões éticas.
Esse foi o alvo do comentário de Nabuco, que, hélas!, ainda se aplica ao panorama político atual.
Nos anos 50/60, diz Ângela Paiva, o cenário mudou. Parte da Igreja Católica compreendeu, finalmente, que fé banhada em indiferença para com os oprimidos pode ser ópio do povo ou neurose coletiva, mas nunca amor cristão. Pagou caro, e o preço é dolorosamente exibido em "Ato de Fé". O filme, em linhas gerais, centra-se no depoimento de frades e ex-frades dominicanos, que falam da colaboração com a ALN [Ação Libertadora Nacional], movimento de guerrilha urbana comandado por Carlos Marighela.
Deixo de lado as possíveis controvérsias suscitadas pelo documentário: a justificação política da luta armada ou do ideário socialista/comunista dos guerrilheiros; a complacência da hierarquia católica da época para com a brutalidade repressiva da ditadura; o papel vergonhoso da imprensa liberal, que foi, na grande maioria, conivente com a truculência policial etc. Esse quadro vem sendo analisado por quem tem competência no assunto. Passo ao que, no filme, aponta para o que julgo ser uns dos grandes impasses do presente, a fraqueza normativa da fé como ideal de conduta.
No testemunho dos dominicanos, uma coisa é evidente: a fidelidade à ética cristã. Para os mais cínicos, isso soa como ronrom dos que se comprazem com intenções piedosas; para os mais materialistas, como conversa dos que não possuem assertividade e foco -é esse o clichê!- para ser um "vencedor". Puro engano. A ação dos religiosos prova que fé não é idealismo vazio, e, sim, indício de vitalidade cultural.
A fé, na tradição secular, é sinônima de crença irracional em verdades reveladas de natureza sobrenatural. O pensamento racionalista definiu-a dessa maneira e, desde então, tendemos a ver sua presença nos negócios humanos como sinal de despotismo à vista. Observada, porém, à luz do evento dominicano, essa impressão se esfumaça. No episódio, a fé surge como o ato que, com ou sem o adjetivo espiritual, funda os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.
Na atitude dos religiosos, fé nem é blindagem cega contra dúvidas nem flerte com idéias totalitárias. É coragem de sustentar princípios que fazem da vida terrena uma empresa com sentido. Para os que têm fé, a única garantia de verdade é a de que, sem ela, o mundo se torna um lugar extravagante, inóspito, insípido, onde os seres humanos circulam como atores supérfluos de um drama igualmente fútil.
Isso vale para a fé do religioso em Deus como para a do cientista na ciência; para a do artista na arte; para a do moralista nos deveres éticos; para a do humanista nos melhores aspectos das pessoas etc.
A fé, assim, é o primeiro motor da práxis humana; é o que nos faz ver que a vida vale a pena ser vivida, como disse [o pediatra e psicanalista inglês] Winnicott [1896-1971]. No entanto, ao contrário do que se pode pensar, fé não é o mesmo que credulidade e fanatismo, produtos típicos do desespero psicológico ou social.
Para viver e morrer, os crédulos e fanáticos não precisam se dar ao trabalho de buscar o sentido da vida. Basta-lhes crer na existência de hereges e inimigos a serem odiados, perseguidos e exterminados. A fé cristã e o credo humanitário são o justo oposto disso. A primeira prega o "amor ao próximo", o segundo, o "respeito ao próximo", matrizes da reverência pela integridade físico-moral da pessoa. A fé não é o consolo dos impotentes e ressentidos; é, como queria Nietzsche, a marca dos fortes e criadores
É a fé como lei "sine qua non" do convívio humano que surge da fala dos entrevistados do filme de Rampazzo. Em nenhum momento eles renegam o que fizeram, embora estejam perfeitamente conscientes do dilema que, como cristãos, foram forçados a enfrentar: dar abrigo à violência da guerrilha, quando esta aparecia como último recurso contra uma violência ainda maior, a do Estado ditatorial armado.
É, portanto, enobrecedor ver a serenidade e a firmeza do frei Oswaldo Rezende, ao relatar as razões que levaram os dominicanos a apoiar a ALN; é pungente ouvir o ex-frade João Valença e o frei Fernando narrarem o que sofreram e viram outros padecerem sob tortura; é comovente escutar o "Salve Regina" cantarolado pelo ex-frade Yves Lesbaupin, ao relembrar que os guerrilheiros "ateus e marxistas" pediam-lhes para ouvir esse canto nos intervalos entre as sessões de tortura; é dilacerante escutá-los, todos, falarem do suicídio do frei Tito e do torturador que lhe havia dito: "Você pode sair vivo daqui, mas eu matei sua alma".
O torturador, como qualquer fanático, jamais poderia entender que almas como a do frei Tito não morrem. Elas são a inspiração imortal dos que têm fome e sede de justiça. Elas são o lume em meio às trevas dos que perderam a fé na dignidade da vida. Elas animam a fé de todos que, como a irmã Dorothy, permaneceram ou permanecem ao lado dos despossuídos. Nelas, enfim, sopra a fé de que necessitamos para saber que iniqüidades sempre existirão no mundo e, ainda assim, não ceder ao apelo do iníquo em nós e no outro. Leia o livro e veja o filme. São um belo elogio à fé.

Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "O Vestígio e a Aura" (Garamond) entre outros.


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