São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARQUEOLOGIA DE BRASÍLIA

Os artistas plásticos Michael Wesely e Lina Kim falam do trabalho em pesquisar 100 mil imagens da cidade, das quais 600 farão parte de exposição que estréia na quinta no Teatro Nacional, e explicam como elas podem ajudar a repensar o ideário modernista

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Brasília virou um clichê tão repisado da arquitetura moderna que todo mundo acha que conhece a cidade, mesmo sem nunca ter colocado os pés lá. Pode-se, então, jogar no lixo os clichês do Congresso, da Esplanada dos Ministérios e do Alvorada. Uma nova Brasília foi descoberta pelos artistas plásticos Michael Wesely e Lina Kim em arquivos fotográficos. O alemão Wesely e a brasileira Kim analisaram 100 mil imagens em arquivos públicos e privados para chegar às 600 fotos que compõem a exposição que inauguram no Teatro Nacional na próxima quinta, quando Brasília completa 45 anos.
A maioria das fotos nunca foi publicada.
O estado de conservação das imagens era chocante, segundo Wesely. Havia riscos, amassos, mofo; os slides coloridos tinham se tornado vermelhos. A dupla teve de restaurar 4.000 imagens.
O resultado assemelha-se à surpresa das descobertas arqueológicas. Em vez de cartão-postal, a exposição mostra o choque da arquitetura moderna com os miseráveis que erguiam os prédios. Concreto armado e maloca, urbanismo de "highway" e carroça, palácio e favela -era assim a Brasília que dormia nos arquivos.
Não deixa de ser curioso que uma empreitada histórica desse porte tenha sido feita por dois artistas. Wesely é um artista contemporâneo de projeção global. Quando o MoMA (Museu de Arte Moderna) de Nova York decidiu erguer uma torre de US$ 850 milhões (R$ 2,2 bilhões) junto de sua sede, ele foi convidado para fotografar o prédio. Na reabertura do museu, havia uma exposição com essas fotos.
Wesely inventou uma nova técnica de longa exposição para flagrar a velocidade de transformação -no caso do MoMA, as imagens tiveram uma exposição de três anos. Nas fotos que ele mesmo fez de Brasília, o tempo de exposição é menor, de 12 horas.
Enquanto Wesely veio de Berlim para pesquisar Brasília, Kim fez o caminho inverso -saiu de São Paulo para criar obras em prédios abandonados na antiga Berlim Oriental, com uma bolsa.
Na instalação que mostrou na 25ª Bienal, uma sala tomada por espelhos em que tanques de inox lavavam camisas-de-força, Kim mostrou que ordem e desordem são questões que lhe interessam.
Na entrevista, montada a partir de e-mails trocados na semana passada, eles contam que Brasília é essa que estava soterrada nos arquivos.
 

Folha - As fotos encontradas mudam a forma de ver Brasília?
Lina Kim -
Mudam muito porque introduzem o caráter humano e uma dinâmica muito forte. Brasília é parte de um processo civilizatório. No início, era o embate do homem com a natureza, e isso o clichê não mostra. Ele sempre mostra a cidade pronta, a arquitetura e os políticos. Brasília sempre foi uma cidade ligada à idéia de autoridade.
A cidade é a síntese do cartão-postal: suas imagens são sedutoras e essa característica esconde o processo histórico por trás dos prédios.
A gente quer mostrar o nascimento de Brasília, a aventura de fazer uma cidade modernista do meio do nada. O resultado é uma cidade contraditória. Brasília simboliza o poder e é um projeto moderno, que no Brasil é diferente porque está ligado a comunistas e socialistas.

Folha - Qual foi o maior choque que vocês tiveram ao comparar imagens antigas com o estado atual da cidade?
Kim -
O choque maior são as coisas que não existem mais. Poucas pessoas sabem, mesmo em Brasília, que havia dois Catetinhos. Um era o "the beauty one" [o gracioso], como diz Michael. Era especial para convidados, ele foi vendido e não se soube mais. Uma belíssima pintura de Volpi no interior de uma igrejinha foi coberta com tinta branca por ordem dos frades capuchinhos. No lugar onde está o lago Paranoá havia uma vila de trabalhadores, a Vila Amauri.
Tivemos a sorte de encontrar num arquivo particular uma imagem mostrando esse lugar, que foi construído abaixo do nível do lago que estaria por vir. Há também a descoberta dos arquivos com imagens coloridas. Os slides estavam vermelhos, mas conseguimos recuperar as cores e ter uma idéia de outros detalhes da cidade.

Folha - Como você decidiu estudar a história visual de Brasília?
Michel Wesely -
Acidentes regem o mundo. Na minha primeira visita ao Brasil, em 2001, que era preparatória à minha participação na 25ª Bienal de São Paulo, fiz a clássica passagem por Brasília. Cheguei de manhã cedo e retornei a São Paulo à noite. Fiquei surpreso com esse lugar especial, com o desenho da cidade, incluindo a raríssima arquitetura.
Levei dois anos para encontrar uma maneira de pensar em como trabalhar esse lugar. Quando iniciei o projeto, em 2003, também comecei a visitar arquivos públicos para ter um entendimento melhor sobre o layout da cidade, os prédios e a idéia original. As imagens nos arquivos eram surpreendentes e estimulavam a possibilidade de incluí-las no projeto. Lina, que também participou da 25ª Bienal de São Paulo, estava na parte oriental da Alemanha, perto de Berlim, quando iniciei este trabalho em Brasília.
Ela estava fazendo um "site specific" e também uma pesquisa nos espaços abandonados de Berlim Oriental, e nós trocávamos impressões. A relação dela com Brasília é baseada no conhecimento de fatos históricos, políticos e sociais do Brasil. Ela tinha senso de humor. Com a participação de Lina, o projeto tomou uma direção completamente diferente. Minha impressão, que era superficial, guiada pela fascinação pelo modelo utópico de cidade, mudou por causa do conhecimento estético e político de Lina. Aí comecei a ver de forma diferente, e as fotografias que tirei também mudaram.

Folha - A construção de Brasília fez parte de uma utopia segundo a qual era possível criar um novo mundo, mais igualitário, a partir da arquitetura. Dá para ver isso nas fotos?
Kim -
As imagens históricas mostram de uma maneira fascinante o que é, provavelmente, a realização do maior projeto moderno e utópico concebido na América Latina e de importância mundial. No final dos anos 50 todos os jornais do mundo comentavam sobre "o gigante que está acordando".
Por um lado, havia a idéia da cidade ideal, que o grupo de arquitetos modernos ao redor de Le Corbusier [1887-1965] estava discutindo desde o primeiro encontro do CIAM [Congresso Internacional de Arquitetura Moderna], em 1929.
O outro lado era o clima político no Brasil, que encontrou em Juscelino Kubitschek [1902-76] o homem que tinha ambição, visão e apoio suficiente para construir uma cidade numa terra no meio do nada. Oscar Niemeyer criou uma arquitetura nunca vista antes porque tinha uma atitude positiva em relação ao comunismo, à igualdade. A ambigüidade de Niemeyer é que ele fez isso trabalhando para o poder. Havia também o socialismo de Lúcio Costa [1902-1998], mas o ideal maior era o modernismo.

Folha - Sobrou algo dessa utopia dos anos 50?
Wesely -
Atualmente o que domina é uma arquitetura de consumo e o desrespeito ao plano piloto de Lúcio Costa.

Folha - Maria Elisa Costa, filha de Lúcio Costa, vive repetindo que as leis atuais não são suficientes para preservar a cidade. Isso é exagero ou ela tem razão?
Kim -
Brasília está mudando, como qualquer cidade, e é muito complexo pensar sobre isso. Inicialmente, Brasília foi abençoada com prédios originais, não somente projetados por Niemeyer, que definiram a cidade. A história, as mudanças políticas, na arte, na arquitetura, tudo isso afetou a cidade. Não há como Brasília ficar isenta dessas mudanças.

Folha - De onde vieram essas imagens que estão na exposição?
Kim -
Elas estavam em muitos arquivos públicos e particulares de vários lugares do Brasil. Vimos 100 mil imagens, a maior parte delas em negativos. Fizemos uma pré-seleção de 4.000. Todas essas tiveram que ser restauradas para podermos ver o material e depois escolher. O Instituto Moreira Salles gentilmente nos cedeu imagens de Marcel Gautherot -em estado impecável- que necessitávamos para fazer uma exposição mais completa.

Folha - Houve alguma descoberta no processo de pesquisa?
Kim -
Sim. Tivemos a oportunidade de conhecer as pessoas que fizeram parte da construção, que ainda lutam pela dignidade da cidade. Mas muita gente não dá a mínima. Uma das surpresas foi conhecer Paulo Manhães. Ele chegou a Brasília com 18 anos, sozinho, e foi o responsável pelo setor de fotografia do "DC Brasiliense", que era uma edição local do "Diário Carioca", do Rio. Naquele tempo, ele fotografava e escrevia.
Ele tirou fotos muito importantes para o projeto: a imagem da Vila Amauri, o incêndio no Núcleo Bandeirante e eventos engraçados, como o concurso do Broto do Ano. Também tem o Ernesto Silva. Foi diretor da Novacap e trabalhou corpo-a-corpo com Israel Pinheiro e Juscelino Kubitschek. É um dos grandes defensores da memória de Brasília.

Folha - Qual será o destino dessas imagens depois da exposição?
Kim -
Não sabemos nada sobre os planos de cada um dos arquivos. Pelo menos a degeneração do material, que estava a todo vapor e era impressionante, foi paralisada com as imagens que foram escaneadas. Estamos doando o material utilizado para pesquisa, digitalizado, e mais um programa para continuarem a arquivar.
Fora isso, Michael doou uma fotografia dele para um leilão na Alemanha e a verba foi entregue ao Arquivo Público do Distrito Federal e ao Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico, via Unesco de Brasília. Não resolvem todos os problemas, mas já dá para cada um adquirir um "scanner", pelo menos.
É tudo uma questão de educação e informação. Essa é uma das razões pelas quais a exposição tem um simpósio paralelo que irá discutir todos esses tópicos. Neste ano ainda serão publicados dois livros na Alemanha. Um sobre o arquivo, com 2.000 imagens, e outro com as imagens de longa exposição de Michael. No Brasil, as imagens de arquivo vão acompanhar uma compilação de textos de críticos de arte, arquitetos, urbanistas e cientistas políticos. O livro está sendo preparado pela editora Bei.


Texto Anterior: A fé entre dois mundos
Próximo Texto: A cidade das alegorias
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.