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ARQUEOLOGIA DE BRASÍLIA
Os artistas plásticos Michael Wesely e Lina Kim falam do trabalho em pesquisar
100 mil imagens da cidade, das quais 600 farão parte de exposição que estréia na quinta
no Teatro Nacional, e explicam como elas podem ajudar a repensar o ideário modernista
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
Brasília virou um clichê tão repisado da arquitetura moderna que todo mundo acha que
conhece a cidade, mesmo sem
nunca ter colocado os pés lá. Pode-se,
então, jogar no lixo os clichês do Congresso, da Esplanada dos Ministérios
e do Alvorada. Uma nova Brasília foi
descoberta pelos artistas plásticos
Michael Wesely e Lina Kim em arquivos fotográficos. O alemão Wesely e a
brasileira Kim analisaram 100 mil
imagens em arquivos públicos e privados para chegar às 600 fotos que
compõem a exposição que inauguram no Teatro Nacional na próxima
quinta, quando Brasília completa 45
anos.
A maioria das fotos nunca foi publicada.
O estado de conservação das imagens era chocante, segundo Wesely.
Havia riscos, amassos, mofo; os slides
coloridos tinham se tornado vermelhos. A dupla teve de restaurar 4.000
imagens.
O resultado assemelha-se à surpresa das descobertas arqueológicas. Em
vez de cartão-postal, a exposição
mostra o choque da arquitetura moderna com os miseráveis que erguiam os prédios. Concreto armado e
maloca, urbanismo de "highway" e
carroça, palácio e favela -era assim a
Brasília que dormia nos arquivos.
Não deixa de ser curioso que uma
empreitada histórica desse porte tenha sido feita por dois artistas. Wesely é um artista contemporâneo de
projeção global. Quando o MoMA
(Museu de Arte Moderna) de Nova
York decidiu erguer uma torre de
US$ 850 milhões (R$ 2,2 bilhões) junto de sua sede, ele foi convidado para
fotografar o prédio. Na reabertura do
museu, havia uma exposição com essas fotos.
Wesely inventou uma nova técnica
de longa exposição para flagrar a velocidade de transformação -no caso
do MoMA, as imagens tiveram uma
exposição de três anos. Nas fotos que
ele mesmo fez de Brasília, o tempo de
exposição é menor, de 12 horas.
Enquanto Wesely veio de Berlim
para pesquisar Brasília, Kim fez o caminho inverso -saiu de São Paulo
para criar obras em prédios abandonados na antiga Berlim Oriental, com
uma bolsa.
Na instalação que mostrou na 25ª
Bienal, uma sala tomada por espelhos
em que tanques de inox lavavam camisas-de-força, Kim mostrou que ordem e desordem são questões que lhe
interessam.
Na entrevista, montada a partir de
e-mails trocados na semana passada,
eles contam que Brasília é essa que estava soterrada nos arquivos.
Folha - As fotos encontradas mudam
a forma de ver Brasília?
Lina Kim - Mudam muito porque introduzem o caráter humano e uma
dinâmica muito forte. Brasília é parte
de um processo civilizatório. No início, era o embate do homem com a
natureza, e isso o clichê não mostra.
Ele sempre mostra a cidade pronta, a
arquitetura e os políticos. Brasília
sempre foi uma cidade ligada à idéia
de autoridade.
A cidade é a síntese do cartão-postal: suas imagens são sedutoras e essa
característica esconde o processo histórico por trás dos prédios.
A gente quer mostrar o nascimento
de Brasília, a aventura de fazer uma
cidade modernista do meio do nada.
O resultado é uma cidade contraditória. Brasília simboliza o poder e é um
projeto moderno, que no Brasil é diferente porque está ligado a comunistas e socialistas.
Folha - Qual foi o maior choque que
vocês tiveram ao comparar imagens
antigas com o estado atual da cidade?
Kim - O choque maior são as coisas
que não existem mais. Poucas pessoas sabem, mesmo em Brasília, que
havia dois Catetinhos. Um era o "the
beauty one" [o gracioso], como diz
Michael. Era especial para convidados, ele foi vendido e não se soube
mais. Uma belíssima pintura de Volpi no interior de uma igrejinha foi coberta com tinta branca por ordem
dos frades capuchinhos. No lugar onde está o lago Paranoá havia uma vila
de trabalhadores, a Vila Amauri.
Tivemos a sorte de encontrar num
arquivo particular uma imagem
mostrando esse lugar, que foi construído abaixo do nível do lago que estaria por vir. Há também a descoberta dos arquivos com imagens coloridas. Os slides estavam vermelhos,
mas conseguimos recuperar as cores
e ter uma idéia de outros detalhes da
cidade.
Folha - Como você decidiu estudar a
história visual de Brasília?
Michel Wesely - Acidentes regem o
mundo. Na minha primeira visita ao
Brasil, em 2001, que era preparatória
à minha participação na 25ª Bienal de
São Paulo, fiz a clássica passagem por
Brasília. Cheguei de manhã cedo e retornei a São Paulo à noite. Fiquei surpreso com esse lugar especial, com o
desenho da cidade, incluindo a raríssima arquitetura.
Levei dois anos para encontrar uma
maneira de pensar em como trabalhar esse lugar. Quando iniciei o projeto, em 2003, também comecei a visitar arquivos públicos para ter um
entendimento melhor sobre o layout
da cidade, os prédios e a idéia original. As imagens nos arquivos eram
surpreendentes e estimulavam a possibilidade de incluí-las no projeto. Lina, que também participou da 25ª
Bienal de São Paulo, estava na parte
oriental da Alemanha, perto de Berlim, quando iniciei este trabalho em
Brasília.
Ela estava fazendo um "site specific" e também uma pesquisa nos espaços abandonados de Berlim Oriental, e nós trocávamos impressões. A
relação dela com Brasília é baseada
no conhecimento de fatos históricos,
políticos e sociais do Brasil. Ela tinha
senso de humor. Com a participação
de Lina, o projeto tomou uma direção
completamente diferente. Minha impressão, que era superficial, guiada
pela fascinação pelo modelo utópico
de cidade, mudou por causa do conhecimento estético e político de Lina. Aí comecei a ver de forma diferente, e as fotografias que tirei também mudaram.
Folha - A construção de Brasília fez
parte de uma utopia segundo a qual
era possível criar um novo mundo,
mais igualitário, a partir da arquitetura. Dá para ver isso nas fotos?
Kim - As imagens históricas mostram de uma maneira fascinante o
que é, provavelmente, a realização do
maior projeto moderno e utópico
concebido na América Latina e de
importância mundial. No final dos
anos 50 todos os jornais do mundo
comentavam sobre "o gigante que está acordando".
Por um lado, havia a idéia da cidade
ideal, que o grupo de arquitetos modernos ao redor de Le Corbusier
[1887-1965] estava discutindo desde o
primeiro encontro do CIAM [Congresso Internacional de Arquitetura
Moderna], em 1929.
O outro lado era o clima político no
Brasil, que encontrou em Juscelino
Kubitschek [1902-76] o homem que
tinha ambição, visão e apoio suficiente para construir uma cidade numa
terra no meio do nada. Oscar Niemeyer criou uma arquitetura nunca vista
antes porque tinha uma atitude positiva em relação ao comunismo, à
igualdade. A ambigüidade de Niemeyer é que ele fez isso trabalhando para
o poder. Havia também o socialismo
de Lúcio Costa [1902-1998], mas o
ideal maior era o modernismo.
Folha - Sobrou algo dessa utopia dos
anos 50?
Wesely - Atualmente o que domina
é uma arquitetura de consumo e o
desrespeito ao plano piloto de Lúcio
Costa.
Folha - Maria Elisa Costa, filha de Lúcio Costa, vive repetindo que as leis
atuais não são suficientes para preservar a cidade. Isso é exagero ou ela tem
razão?
Kim - Brasília está mudando, como
qualquer cidade, e é muito complexo
pensar sobre isso. Inicialmente, Brasília foi abençoada com prédios originais, não somente projetados por
Niemeyer, que definiram a cidade. A
história, as mudanças políticas, na arte, na arquitetura, tudo isso afetou a
cidade. Não há como Brasília ficar
isenta dessas mudanças.
Folha - De onde vieram essas imagens que estão na exposição?
Kim - Elas estavam em muitos arquivos públicos e particulares de vários lugares do Brasil. Vimos 100 mil
imagens, a maior parte delas em negativos. Fizemos uma pré-seleção de
4.000. Todas essas tiveram que ser
restauradas para podermos ver o material e depois escolher. O Instituto
Moreira Salles gentilmente nos cedeu
imagens de Marcel Gautherot -em
estado impecável- que necessitávamos para fazer uma exposição mais
completa.
Folha - Houve alguma descoberta no
processo de pesquisa?
Kim - Sim. Tivemos a oportunidade
de conhecer as pessoas que fizeram
parte da construção, que ainda lutam
pela dignidade da cidade. Mas muita
gente não dá a mínima. Uma das surpresas foi conhecer Paulo Manhães.
Ele chegou a Brasília com 18 anos, sozinho, e foi o responsável pelo setor
de fotografia do "DC Brasiliense",
que era uma edição local do "Diário
Carioca", do Rio. Naquele tempo, ele
fotografava e escrevia.
Ele tirou fotos muito importantes
para o projeto: a imagem da Vila
Amauri, o incêndio no Núcleo Bandeirante e eventos engraçados, como
o concurso do Broto do Ano. Também tem o Ernesto Silva. Foi diretor
da Novacap e trabalhou corpo-a-corpo com Israel Pinheiro e Juscelino
Kubitschek. É um dos grandes defensores da memória de Brasília.
Folha - Qual será o destino dessas
imagens depois da exposição?
Kim - Não sabemos nada sobre os
planos de cada um dos arquivos. Pelo
menos a degeneração do material,
que estava a todo vapor e era impressionante, foi paralisada com as imagens que foram escaneadas. Estamos
doando o material utilizado para pesquisa, digitalizado, e mais um programa para continuarem a arquivar.
Fora isso, Michael doou uma fotografia dele para um leilão na Alemanha e a verba foi entregue ao Arquivo
Público do Distrito Federal e ao Departamento de Patrimônio Histórico
e Artístico, via Unesco de Brasília.
Não resolvem todos os problemas,
mas já dá para cada um adquirir um
"scanner", pelo menos.
É tudo uma questão de educação e
informação. Essa é uma das razões
pelas quais a exposição tem um simpósio paralelo que irá discutir todos
esses tópicos. Neste ano ainda serão
publicados dois livros na Alemanha.
Um sobre o arquivo, com 2.000 imagens, e outro com as imagens de longa exposição de Michael. No Brasil, as
imagens de arquivo vão acompanhar
uma compilação de textos de críticos
de arte, arquitetos, urbanistas e cientistas políticos. O livro está sendo preparado pela editora Bei.
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