São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

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A CIDADE DAS ALEGORIAS

De marco da modernidade a espelho da ditadura, de sede da corrupção até as manifestações de massa, Brasília vem sintetizando as esperanças e frustrações do país

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Brasília: talvez ainda se possam ouvir, nas vogais espevitadas desse nome feminino, os ecos de um período em que desenvolvimento, vida moderna, industrialização e ocupação do território nacional não eram sinônimos de violência, degradação ambiental, miséria e alienação.
Quarenta e cinco anos depois da inauguração da "Novacap" -como a chamavam, no jargão informal e aerodinâmico da época-, o visitante que passa pela Esplanada dos Ministérios ao cair da tarde continua a se espantar com a limpeza do horizonte, com a pureza do mármore branco e a luz de esmeralda a refletir-se nos edifícios do governo.


O que era alegoria do desenvolvimento hoje é alegoria carnavalesca


A idéia de uma perspectiva aberta rumo ao futuro, reta e racional, planejada e simples, parece ter aqui uma tradução plástica, ainda mais quando se lembram as belas frases de Juscelino Kubitschek, afixadas em letras de bronze em algum monumento ali perto: "Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino".
Por certo, quando se discutia ainda a iniciativa de mudar a capital, em meados da década de 1950, já vinham à tona doses iguais de esperança e mistificação, de "ideologia e utopia", para falar como o sociólogo Karl Mannheim.
No período de sua construção, mesmo os entusiastas de Brasília foram capazes de lhe atribuir os sentidos mais diversos. Instrumento para a descoberta do "Brasil real". Vingança do "sertão" contra o cosmopolitismo litorâneo. Símbolo da racionalidade estatal. Exemplo da capacidade improvisadora do povo brasileiro. Ilha de ordem e segurança imprescindível à equilibrada deliberação governamental. Pólo mágico de reorganização demográfica. Obra de arte inspiradora de um futuro sem entraves. Experiência única de igualdade e convivência entre as classes sociais. Avião, cruz, marco de posse no mapa.

Idas e vindas
Nesse imaginoso e algo contraditório espectro de associações, podem-se identificar as preferências, linguagens e projetos dos vários setores que compunham a "base social" do governo Juscelino: proprietários rurais, empresariado urbano, incipientes camadas "tecnocráticas" da classe média, intelectuais de esquerda, sindicatos, parte do estamento militar.
Natural que em 1964, quando se rompeu o chamado "pacto populista", também o imaginário em torno da cidade tenha se destituído de seus adereços mais simpáticos e contrastantes. Durante o regime militar, Brasília se tornou, com seus palácios duros e ruas desertas, apenas a sede de um sistema tecnocrático, desumano, avesso às pressões da sociedade e ainda assim enganosamente "moderno". Construída por um governo democrático, Brasília como que encontrava sua verdadeira vocação durante a ditadura; sobre esse aspecto, o geógrafo José William Vesentini, em "A Capital da Geopolítica" (editora Ática), elaborou contundente estudo crítico.
Nos anos 80 e 90, a crítica filosófica e estética à idéia do "moderno" encontrava também nos problemas urbanos de Brasília boa munição para seus argumentos. Do crítico australiano Robert Hughes, numa conhecida série de TV sobre a arte moderna, ao antropólogo James Holston, em "A Cidade Modernista" (Companhia das Letras), evidenciava-se com fartura de detalhes de que modo o mundo real, com suas contradições irresolvidas, suas favelas e shopping centers, acabara se abatendo sobre o elegante -e, como viemos a perceber, ingênuo- plano urbanístico da capital.
Com a democratização e com o próprio crescimento da cidade, foi possível ver em Brasília o palco de grandes mobilizações de massa. A confusão vibrante das caravanas, dos protestos e das comemorações cívicas parece às vezes colocar novamente a cidade sob o signo da esperança. Não mais uma esperança baseada na técnica e na organização científica, mas sim uma espécie de carnavalização nada programática, no espírito dos fóruns sociais.
O Estado, enfraquecido ao extremo desde a década de 90, parece quase recuar para o segundo plano, com o branco de seus edifícios lembrando, não mais o mármore, mas a aparência da casca de ovo ou do isopor. O que era alegoria do desenvolvimento, na década de 1950, se tornou hoje alegoria carnavalesca, e a Esplanada dos Ministérios, quem sabe, até adquire certos ares de sambódromo.
Sem dúvida, essa nova democratização tem seu contraponto e inclui aquilo que mais notoriamente está associado a Brasília na opinião pública: espécie de mercado político, bazar do baixo clero, balcão de favores, privilégios e informações suspeitas. De uma ótica mais distante, de "longo prazo" (o que não significa tolerar os escândalos do dia-a-dia), essa imagem não deixa de corresponder ao processo de fortalecimento do Legislativo, ocorrido com a Constituição de 88.
Fortalecimento ambíguo, por certo: talvez fosse melhor chamá-lo de desmoralização profunda -de que não se excetua, aliás, qualquer outra instância político-partidária brasileira. Como sempre, assim, Brasília encarna as ambigüidades do país.


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