São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

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Modernismo entre colunas e curvas

Criação da Escola Politécnica levou ao predomínio da técnica entre os arquitetos paulistas, como Vilanova Artigas, os quais acabaram se contrapondo à liberdade plástica da escola carioca, como em Niemeyer

CARLOS A.C. LEMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em seu concurso na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em junho de 1984, João Batista Vilanova Artigas, respondendo a uma das argüições, diz: "Quando Carlos Lemos termina seu livro sobre arquitetura brasileira, me atribui a responsabilidade de ter criado a arquitetura paulista. Ele poderia ter levado isso mais além: O que Artigas fez para poder criar uma arquitetura dele? Fiquei com esse peso enorme na cabeça e com a necessidade de dizer: "Que diabo, se você criou uma arquitetura paulista, onde ela está?".".
Em seguida, aquele emérito professor aceita a idéia de ele ter feito "uma arquitetura diferente daquela que se faz no Rio", sugerindo, inclusive, a existência de "uma espécie de oposição entre Rio e São Paulo", idéia "sem sentido". Agora, passados mais de 20 anos, vimos aqui tentar responder suas pretensas dúvidas, pois certamente estava fazendo charme diante de Carlos Guilherme Mota, seu argüidor.
Estas nossas reflexões evidentemente nada têm a ver com a sempre propalada rixa entre cariocas e paulistas. Simplesmente vamos tentar aqui discorrer sobre diferenças entre conceitos ou comportamentos que percebemos existir entre arquitetos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Tudo decorrência de escolas diversas -e nem façamos juízos de valor daquilo que hoje se pratica.

Aspectos técnicos
Quando fundaram a Escola Politécnica de São Paulo, em 1894, Paula Souza e Ramos de Azevedo estavam imbuídos de uma certeza: haveriam de criar uma entidade que ensinasse ciências exatas, sistemas racionais de estruturas autônomas, resistência dos materiais e, enfim, tudo aquilo que o progresso trazido pelo café estivesse exigindo, não só nas construções das estradas de ferro, com suas pontes, viadutos e túneis, mas também nas obras urbanas e novos edifícios trazidos por inesperados programas, sobretudo aqueles ligados à nascente indústria. Chegava a ser calamitosa a ausência de profissionais habilitados.
Com esse espírito, a Politécnica abriu suas portas. O próprio Ramos, já nesses dias arquiteto famosíssimo, em suas disciplinas dava aulas voltadas aos aspectos técnicos, deixando para outros as lições sobre história das artes, estilos e demais matérias inspiradas no currículo da "Beaux Arts" de Paris. A construção em si era o que importava no momento. São Paulo necessitava de gente apta a enfrentar as solicitações do progresso. O professor Anhaia Mello resumiu tudo com a expressão: "Andava a arquitetura divorciada da construção. (...)". Agora, era a vez do edifício bem feito e belo.
No final do século 19, no Rio de Janeiro, também já se chegava a uma conclusão semelhante àquela dos fundadores da Politécnica paulista. Uma comissão do Instituto Politécnico Brasileiro, ainda em 1870, comentava que o arquiteto saído da Academia Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro não tinha "noção alguma de resistência dos materiais e muito menos de sua estrutura, composição química e aplicações racionais, além da natureza dos terrenos, das condições de higiene, ventilação, aquecimento etc. etc. Oferece apenas os elementos para formar desenhistas".
Esse texto, na verdade, sugeria que os arquitetos cariocas saídos da academia como "desenhistas" estavam tão-somente aptos a projetar fachadas e pormenores "artísticos" de acabamento. Ainda 30 e tantos anos depois, já nos princípios do século 20, o prefeito Passos inspirou os famosos concursos de fachadas para os novos edifícios da avenida Central, confirmando a assertiva de Anhaia Mello, demonstrando a permanência, ainda nas construções cariocas, daquele divórcio entre a arquitetura e a construção.
Hoje, daqui de São Paulo, não sabemos dizer com precisão, pensamos que aquele espírito estetizante alheio às ciências da construção perdurou até os anos 30, quando da "revolução" pedagógica instalada por Lúcio Costa no curso de arquitetura da academia.

Diferentes posturas
Os anos passaram, as técnicas se aperfeiçoaram, as escolas de arquitetura se multiplicaram, mas em plena segunda metade do século 20 ainda podíamos perceber no ar uma diferença de postura -ou de comportamento- entre arquitetos cariocas e paulistas ditos modernos diante das questões estruturais, sobretudo em relação ao concreto armado.
No livro "Brazil Builds" [Brasil Constrói], editado em 1942 pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, já vemos, até aquele ano, a hegemonia flagrante da arquitetura carioca. Ali, os paulistas são minoritários, com dois ou três projetos de Rino Levi e Warchavchik. Na verdade, para os americanos, arquitetura moderna brasileira era aquela dos arquitetos formados no Rio e, com eles, como se tivesse havido um acordo tácito, uma mesma linguagem "tropical" envolvendo e condicionando a produção evidentemente inspirada em Le Corbusier.
A intenção plástica, tão bem identificada por Lúcio Costa, se sobrepujando a tudo, a todos os demais determinantes do partido arquitetônico. Beleza e plasticidade antes de tudo. Os velhos dogmas estéticos da Academia de Grandjean de Montigny ainda vigiam traduzidos pela modernidade funcionalista. E, nos primeiros dias dos anos 40 do século passado, Oscar Niemeyer submete o concreto armado à sua vontade e inaugura a liberdade plástica na arquitetura moderna brasileira. Liberdade às margens plácidas do lago da Pampulha, em Belo Horizonte.
Na Pampulha, a igreja de São Francisco de Assis apresenta abóbadas saídas diretamente do chão e pela primeira vez o espaço litúrgico é definido sem o auxílio de colunas ou de paredes. Tudo ali é inusitado, do púlpito ao rés-do-chão, a falta de retábulo, substituído por grande pintura de Cândido Portinari, os azulejos da fachada posterior, a sineira, a iluminação zenital da área do altar, tudo, porém, satisfazendo ao programa milenar do ritual católico. Continente inesperado para um conteúdo tradicional.
É desnecessário recordar aqui toda a trajetória da arquitetura de Oscar depois dos anos 40. Somente devemos gravar a constatação de que a curva, tanto na sinuosidade das lajes como na formação das abóbadas, as mais variadas, é uma constante consubstanciada, por exemplo, nas colunas do Palácio da Alvorada, em Brasília. E ressurge impactante no Museu de Niterói.
Está visto que essa imaginação criadora esteve e está dependendo fundamentalmente de calculistas sensíveis e predispostos a cumprir uma tarefa espinhosa de conciliar a intenção do arquiteto com as normas técnicas vigentes. Acreditamos não ser errado considerarmos, por exemplo, Joaquim Cardozo como co-autor das citadas colunas do Alvorada, que viraram símbolo da própria capital brasileira.
Vemos aí a técnica submetida à intenção estetizante, não numa dócil subordinação, mas num acordo entre iguais a partir de uma idéia original do arquiteto. Com Niemeyer o citado "divórcio entre a arquitetura e a construção" desaparece, dando azo a magistrais diálogos entre a forma e a força da gravidade a ser vencida de qualquer modo.

O ponto de apoio
Temos a convicção de que o espírito politécnico paulistano ainda domina a arquitetura aqui praticada. Aqui, a decomposição de esforços deve ser evitada e, sempre que possível, as cargas lá de cima das edificações devem ser transmitidas verticalmente ao solo. Sempre colunas verticais. Daí, nos anos 50, o culto a Mies van der Rohe. Certa vez, Plínio Croce (mackenzista, mas dependente de calculistas politécnicos) nos afirmou que de seu escritório jamais sairia um projeto onde houvesse uma laje de transição, como a do Copan. Em São Paulo, colunas sempre explícitas e verticais.
A nosso ver, Vilanova Artigas não escapou a esse fascínio do "ponto de apoio", tema lembrado pelo examinador Flávio Mota quando priorizava em sua argumentação as colunas do edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP).
Ao contrário do que ocorre com a obra de Niemeyer, nos trabalhos de Artigas há a presença dominante da técnica. Em certo momento, respondendo a Milton Vargas ele diz: "Eu, como engenheiro-arquiteto, ainda guardo a necessidade de sentir como a técnica contribui e pode ser pensada artisticamente para determinar as formas". Continuando, na segunda argüição, reafirma sua posição: "Na aula de ontem, procurei mostrar minha formação teórica, inclusive essa da Escola Politécnica, porque você percebe um conhecimento cujas raízes estão lá, em nossa querida célula-mater". Logo adiante, diz não praticar as "curvas da mulher amada" de Niemeyer porque "somos personalidades diversas".

A casa paulista
Encerrando o exame, na quinta argüição, diz que no começo calculou pessoalmente um terraço em balanço para a casa do advogado Rio Branco Paranhos, inspirado em Lloyd Wright, mas logo adiante recorda que imaginou para a casa de Ivo Viterito "uma estrutura apoiada em quatro pontos, quatro colunas e duas vigas que correm para um lado e outro. Num certo momento, essa casa serviu de padrão para a elaboração de uma série de outras casas, uma vez que colegas meus, arquitetos, viram nela algumas soluções que podíamos transformar em soluções para a casa paulista".
Agora ele acabou de dizer tudo: criara a receita "para a casa paulista", não para as suas, mas para as de todas as de seus seguidores. Isso tudo estava implícito em nossa afirmação sobre a sua responsabilidade na criação de uma arquitetura paulista, uma arquitetura onde "é preciso fazer cantar o ponto de apoio", frase de Perret proferida por Flávio Mota naquele exame memorável do maior significado político, além de encerrar com ovação a carreira professoral de João Batista Vilanova Artigas.


Nota
As argüições mencionadas neste texto comparecem no capítulo "A Função Social do Arquiteto", do livro "Vilanova Artigas - Caminhos da Arquitetura" (Cosacnaify), organizado por Rosa Artigas e José Tavares Correia de Lira, 2004. Quanto à nossa obra citada por Artigas, trata-se de "Arquitetura Brasileira" (Edusp/Melhoramentos, 1979).

Carlos A.C. Lemos é professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e autor de "O Que É Arquitetura" (Brasiliense) e "História da Casa Brasileira" (Contexto).


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