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Modernismo entre colunas e curvas
Criação da Escola Politécnica
levou ao predomínio da técnica entre
os arquitetos paulistas, como
Vilanova Artigas, os quais acabaram
se contrapondo à liberdade plástica
da escola carioca, como em Niemeyer
CARLOS A.C. LEMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em seu concurso na Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo
da USP, em junho de 1984,
João Batista Vilanova Artigas,
respondendo a uma das argüições,
diz: "Quando Carlos Lemos termina
seu livro sobre arquitetura brasileira, me atribui a responsabilidade de
ter criado a arquitetura paulista. Ele
poderia ter levado isso mais além: O
que Artigas fez para poder criar uma
arquitetura dele? Fiquei com esse
peso enorme na cabeça e com a necessidade de dizer: "Que diabo, se
você criou uma arquitetura paulista,
onde ela está?".".
Em seguida, aquele emérito professor aceita a idéia de ele ter feito
"uma arquitetura diferente daquela
que se faz no Rio", sugerindo, inclusive, a existência de "uma espécie de
oposição entre Rio e São Paulo",
idéia "sem sentido". Agora, passados mais de 20 anos, vimos aqui tentar responder suas pretensas dúvidas, pois certamente estava fazendo
charme diante de Carlos Guilherme
Mota, seu argüidor.
Estas nossas reflexões evidentemente nada têm a ver com a sempre
propalada rixa entre cariocas e paulistas. Simplesmente vamos tentar
aqui discorrer sobre diferenças entre
conceitos ou comportamentos que
percebemos existir entre arquitetos
do Rio de Janeiro e de São Paulo. Tudo decorrência de escolas diversas
-e nem façamos juízos de valor daquilo que hoje se pratica.
Aspectos técnicos
Quando fundaram a Escola Politécnica de São Paulo, em 1894, Paula
Souza e Ramos de Azevedo estavam
imbuídos de uma certeza: haveriam
de criar uma entidade que ensinasse
ciências exatas, sistemas racionais
de estruturas autônomas, resistência
dos materiais e, enfim, tudo aquilo
que o progresso trazido pelo café estivesse exigindo, não só nas construções das estradas de ferro, com suas
pontes, viadutos e túneis, mas também nas obras urbanas e novos edifícios trazidos por inesperados programas, sobretudo aqueles ligados à
nascente indústria. Chegava a ser calamitosa a ausência de profissionais
habilitados.
Com esse espírito, a Politécnica
abriu suas portas. O próprio Ramos,
já nesses dias arquiteto famosíssimo,
em suas disciplinas dava aulas voltadas aos aspectos técnicos, deixando
para outros as lições sobre história
das artes, estilos e demais matérias
inspiradas no currículo da "Beaux
Arts" de Paris. A construção em si
era o que importava no momento.
São Paulo necessitava de gente apta
a enfrentar as solicitações do progresso. O professor Anhaia Mello resumiu tudo com a expressão: "Andava a arquitetura divorciada da
construção. (...)". Agora, era a vez do
edifício bem feito e belo.
No final do século 19, no Rio de Janeiro, também já se chegava a uma
conclusão semelhante àquela dos
fundadores da Politécnica paulista.
Uma comissão do Instituto Politécnico Brasileiro, ainda em 1870, comentava que o arquiteto saído da
Academia Nacional de Belas Artes
do Rio de Janeiro não tinha "noção
alguma de resistência dos materiais
e muito menos de sua estrutura,
composição química e aplicações racionais, além da natureza dos terrenos, das condições de higiene, ventilação, aquecimento etc. etc. Oferece
apenas os elementos para formar
desenhistas".
Esse texto, na verdade, sugeria que
os arquitetos cariocas saídos da academia como "desenhistas" estavam
tão-somente aptos a projetar fachadas e pormenores "artísticos" de
acabamento. Ainda 30 e tantos anos
depois, já nos princípios do século
20, o prefeito Passos inspirou os famosos concursos de fachadas para
os novos edifícios da avenida Central, confirmando a assertiva de
Anhaia Mello, demonstrando a permanência, ainda nas construções cariocas, daquele divórcio entre a arquitetura e a construção.
Hoje, daqui de São Paulo, não sabemos dizer com precisão, pensamos que aquele espírito estetizante
alheio às ciências da construção perdurou até os anos 30, quando da "revolução" pedagógica instalada por
Lúcio Costa no curso de arquitetura
da academia.
Diferentes posturas
Os anos passaram, as técnicas se
aperfeiçoaram, as escolas de arquitetura se multiplicaram, mas em plena
segunda metade do século 20 ainda
podíamos perceber no ar uma diferença de postura -ou de comportamento- entre arquitetos cariocas e
paulistas ditos modernos diante das
questões estruturais, sobretudo em
relação ao concreto armado.
No livro "Brazil Builds" [Brasil
Constrói], editado em 1942 pelo Museu de Arte Moderna de Nova York,
já vemos, até aquele ano, a hegemonia flagrante da arquitetura carioca.
Ali, os paulistas são minoritários,
com dois ou três projetos de Rino
Levi e Warchavchik. Na verdade, para os americanos, arquitetura moderna brasileira era aquela dos arquitetos formados no Rio e, com
eles, como se tivesse havido um
acordo tácito, uma mesma linguagem "tropical" envolvendo e condicionando a produção evidentemente inspirada em Le Corbusier.
A intenção plástica, tão bem identificada por Lúcio Costa, se sobrepujando a tudo, a todos os demais determinantes do partido arquitetônico. Beleza e plasticidade antes de tudo. Os velhos dogmas estéticos da
Academia de Grandjean de Montigny ainda vigiam traduzidos pela
modernidade funcionalista. E, nos
primeiros dias dos anos 40 do século
passado, Oscar Niemeyer submete o
concreto armado à sua vontade e
inaugura a liberdade plástica na arquitetura moderna brasileira. Liberdade às margens plácidas do lago da
Pampulha, em Belo Horizonte.
Na Pampulha, a igreja de São
Francisco de Assis apresenta abóbadas saídas diretamente do chão e pela primeira vez o espaço litúrgico é
definido sem o auxílio de colunas ou
de paredes. Tudo ali é inusitado, do
púlpito ao rés-do-chão, a falta de retábulo, substituído por grande pintura de Cândido Portinari, os azulejos da fachada posterior, a sineira, a
iluminação zenital da área do altar,
tudo, porém, satisfazendo ao programa milenar do ritual católico.
Continente inesperado para um
conteúdo tradicional.
É desnecessário recordar aqui toda
a trajetória da arquitetura de Oscar
depois dos anos 40. Somente devemos gravar a constatação de que a
curva, tanto na sinuosidade das lajes
como na formação das abóbadas, as
mais variadas, é uma constante consubstanciada, por exemplo, nas colunas do Palácio da Alvorada, em
Brasília. E ressurge impactante no
Museu de Niterói.
Está visto que essa imaginação
criadora esteve e está dependendo
fundamentalmente de calculistas
sensíveis e predispostos a cumprir
uma tarefa espinhosa de conciliar a
intenção do arquiteto com as normas técnicas vigentes. Acreditamos
não ser errado considerarmos, por
exemplo, Joaquim Cardozo como
co-autor das citadas colunas do Alvorada, que viraram símbolo da
própria capital brasileira.
Vemos aí a técnica submetida à intenção estetizante, não numa dócil
subordinação, mas num acordo entre iguais a partir de uma idéia original do arquiteto. Com Niemeyer o
citado "divórcio entre a arquitetura
e a construção" desaparece, dando
azo a magistrais diálogos entre a forma e a força da gravidade a ser vencida de qualquer modo.
O ponto de apoio
Temos a convicção de que o espírito politécnico paulistano ainda domina a arquitetura aqui praticada.
Aqui, a decomposição de esforços
deve ser evitada e, sempre que possível, as cargas lá de cima das edificações devem ser transmitidas verticalmente ao solo. Sempre colunas
verticais. Daí, nos anos 50, o culto a
Mies van der Rohe. Certa vez, Plínio
Croce (mackenzista, mas dependente de calculistas politécnicos) nos
afirmou que de seu escritório jamais
sairia um projeto onde houvesse
uma laje de transição, como a do Copan. Em São Paulo, colunas sempre
explícitas e verticais.
A nosso ver, Vilanova Artigas não
escapou a esse fascínio do "ponto de
apoio", tema lembrado pelo examinador Flávio Mota quando priorizava em sua argumentação as colunas
do edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP).
Ao contrário do que ocorre com a
obra de Niemeyer, nos trabalhos de
Artigas há a presença dominante da
técnica. Em certo momento, respondendo a Milton Vargas ele diz: "Eu,
como engenheiro-arquiteto, ainda
guardo a necessidade de sentir como
a técnica contribui e pode ser pensada artisticamente para determinar as
formas". Continuando, na segunda
argüição, reafirma sua posição: "Na
aula de ontem, procurei mostrar minha formação teórica, inclusive essa
da Escola Politécnica, porque você
percebe um conhecimento cujas raízes estão lá, em nossa querida célula-mater". Logo adiante, diz não praticar as "curvas da mulher amada" de
Niemeyer porque "somos personalidades diversas".
A casa paulista
Encerrando o exame, na quinta argüição, diz que no começo calculou
pessoalmente um terraço em balanço para a casa do advogado Rio
Branco Paranhos, inspirado em
Lloyd Wright, mas logo adiante recorda que imaginou para a casa de
Ivo Viterito "uma estrutura apoiada
em quatro pontos, quatro colunas e
duas vigas que correm para um lado
e outro. Num certo momento, essa
casa serviu de padrão para a elaboração de uma série de outras casas,
uma vez que colegas meus, arquitetos, viram nela algumas soluções
que podíamos transformar em soluções para a casa paulista".
Agora ele acabou de dizer tudo:
criara a receita "para a casa paulista", não para as suas, mas para as de
todas as de seus seguidores. Isso tudo estava implícito em nossa afirmação sobre a sua responsabilidade na
criação de uma arquitetura paulista,
uma arquitetura onde "é preciso fazer cantar o ponto de apoio", frase
de Perret proferida por Flávio Mota
naquele exame memorável do maior
significado político, além de encerrar com ovação a carreira professoral de João Batista Vilanova Artigas.
Nota
As argüições mencionadas neste texto comparecem no capítulo "A Função Social do Arquiteto", do livro "Vilanova Artigas - Caminhos da Arquitetura" (Cosacnaify), organizado por Rosa Artigas e José Tavares Correia
de Lira, 2004. Quanto à nossa obra citada
por Artigas, trata-se de "Arquitetura Brasileira" (Edusp/Melhoramentos, 1979).
Carlos A.C. Lemos é professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e autor de "O Que É Arquitetura" (Brasiliense) e
"História da Casa Brasileira" (Contexto).
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